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Literatura e Autoritarismo
       Rememoração e Reminiscência
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 16 

UM INSTANTE SINGULAR DE PAIXÃO E MORTE: CRÍTICA SOCIAL NO CONTO GRAVATA, DE CAIO FERNANDO ABREU

João Luis Pereira Ourique1
Simone Xavier Moreira2
Resumo: Com sustentação da Teoria Crítica da Sociedade, pretende-se, a partir da análise do conto Gravata, do escritor Caio Fernando Abreu, refletir sobre a sociedade na qual a personagem – contemporânea do autor - estava inserida. Este trabalho visa também discutir a relativização de valores e posicionamentos sociais.
Palavras-chave: Teoria Crítica, reflexão, cultura, sociedade, Caio Fernando Abreu
Abstract: Con el apoyo de la Teoría Crítica de la Sociedad, se pretende, a partir del análisis del cuento Gravata, del escritor Caio Fernando Abreu, reflexionar sobre la sociedad en la que el personaje - contemporáneo del autor – estaba. Este trabajo también tiene como objetivo discutir la relatividad de los valores y posiciones sociales.
Keywords: Teoría Crítica, reflexión, cultura, sociedad, Caio Fernando Abreu

1. A título de introdução:
Theodor Adorno, assim como os demais integrantes da Escola de Frankfurt, refletiu sobre o rompimento com o modo clássico de narrativa, percebendo que o artista
[...] reconhece, pelo comportamento da linguagem, o caráter ilusório da narrativa, a irrealidade da ilusão, e com isso devolve à obra de arte – nos seus termos – aquele sentido da mais alta brincadeira que ela tinha antes de haver representado, na ingenuidade da não-ingenuidade, e de maneira excessivamente íntegra, a aparência como algo verdadeiro. (ADORNO, 1983, p. 272)
Desta forma, percebe-se que para Adorno, a percepção de uma realidade conflitiva leva o artista a manifestá-la em sua obra. Segundo ele: “Os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes da sua forma”. (ADORNO, 1993, p.16).
Caio Fernando Abreu, ao realizar uma literatura que abrange a recente história brasileira – a ditadura militar e o crescente avanço da política internacional de globalização em um mundo formado e deformado pelos avanços do capitalismo – e suas consequências na esfera do individual, reafirma o que para Adorno (1983) seria a tendência do romance contemporâneo.
Na introdução de Caio Fernando Abreu: cartas, o organizador, Italo Moriconi, comenta que,
[...] do ponto de vista histórico, a obra de Caio Fernando Abreu faz a ponte entre as instigações pop-contraculturais e “malditas” ou “marginais” dos anos 70 e a pasteurização juvenil e mística dos 90, passando pela disseminação (banalização?) nos 80 dos modelos baseados na literatura policial. Caio enfrentou tais fantasmas da única maneira que o artista competente e antenado com seu tempo pode fazer: incorporando-os e transcendendo-os em seu próprio texto. A formação pop-contracultural está em todos os seus livros. (MORICONI, 2002, p. 11)
Como é possível perceber através do relato do próprio autor, ele não tinha a intenção de escrever uma literatura engajada. Em entrevista concedida a Antonio Hohlfeldt (1977, p. 14), Caio Fernando Abreu afirma que para ele sua tarefa como escritor era “documentar as coisas, isto é, a vivência de meu tempo e de minha geração”. (In: PIVA, 2001, p. 16). Caio tinha como foco o ser humano e a realidade social do seu período. Ao falar a Fátima Torri (1995) sobre o fato de estar com AIDS, ele disse acreditar que seus livros poderiam ser “uma tentativa de ajudar as pessoas a se conhecerem.” (In: PIVA, 2001, p. 25).

2. A Narrativa Literária Contemporânea: História, Memória e Testemunho
Característica significativa que o século XX trouxe para a narrativa foi a busca da participação ativa do leitor na construção do sentido do que está sendo narrado. Por meio de um encurtamento estético, o narrador do romance contemporâneo quebra a tranquilidade do leitor e impossibilita qualquer posicionamento contemplativo.
Para o teórico da Escola de Frankfurt [Theodor Adorno], o grande artista é capaz de reconhecer os conflitos sociais e representá-los artisticamente de forma a torná-los perceptíveis na própria obra de arte, o que pode resultar numa dificuldade de expressão. Marcas dessa constituição conflitiva aparecem em formas também conflitivas. (PORTO; PORTO, 2004, p.68)
Ao promover um choque no leitor, este é despertado para o que está sendo narrado e tem diante de si um discurso fictício que se pretende como uma forma de resistência à perda da memória e como uma chamada de atenção sobre a matéria social.
Assim, a fragmentação da estrutura, a dificuldade em precisar o foco narrativo, o enredo obscuro, a não-lineariedade do tempo, a imprecisão espacial e a dissolução da sintaxe através de experiências com a linguagem são algumas das características que surgiram a certa altura na história do romance representando a noção de incerteza que chegou com o desencantamento do mundo. Essas transformações ganharam uma proporção ainda mais radical na contemporaneidade.
Desta forma, a literatura produzida em períodos históricos marcados por acentuada violência e repressão, além de, como objeto estético, conservar marcas de seu contexto de produção, tem nas concepções de escrita, diferenças temáticas e formais como resultado de tais conflitos e, muitas vezes, carrega em si o discurso crítico e denunciador de quem o testemunhou.
O conceito de testemunho concentra em si uma série de questões que sempre polarizaram a reflexão sobre a literatura: antes de qualquer coisa, ele põe em questão as fronteiras entre o literário, o fictício e o descritivo. E mais: o testemunho aporta uma ética da escritura. Partindo-se do pressuposto, hoje em dia banal, que não existe “grau zero da escritura”, ou seja, a literatura está ali onde o sujeito se manifesta na narrativa, não podemos deixar de reconhecer que, por outro lado, o histórico que está na base do testemunho exige uma visão “referencial”, que não reduza o “real” à sua “ficção” literária. Ou seja, o testemunho impõe uma crítica da postura que reduz o mundo ao verbo, assim como solicita uma reflexão sobre os limites e modos de representação. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 85)
Para compreender uma obra literária como testemunho de dado contexto é relevante se conceber a linguagem como campo associado ao contato do indivíduo que narra, com a experiência, sua e da coletividade com a qual interage. O sujeito da enunciação do testemunho perde sua identidade individual, incorporando em si as diversas identidades de quem passou pela mesma situação: “a identidade do sujeito da enunciação é apresentada como objeto perdido, e o discurso, um esforço de elaboração (PENNA: 2003, 312). Sem identidade segura, a voz de enunciação faz da narração a busca de um sentido que não foi antecipadamente definido.” (GINZBURG, 2008, p. 4)
Márcio Seligmann-Silva (2003) reforça esta ideia ao afirmar que,
[...] não existe uma História neutra; nela a memória, enquanto uma categoria abertamente mais afetiva de relacionamento com o passado, intervém e determina em boa parte os seus caminhos. A memória existe no plural: na sociedade dá-se constantemente um embate entre diferentes leituras do passado, entre diferentes formas de “enquadrá-lo”. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 63)
Ecléa Bosi, por sua vez, em O Tempo vivo da memória (2003), ressalta que a apreensão completa do tempo passado é impossível, pois a memória parte de um presente ávido por este passado. Assim, a consciência assume o papel de ligar as apreensões instantâneas do real. Nessa perspectiva, Pesavento ressalta a impossibilidade de se obter um “fato puro” memorizado.
[...] a memória não é o espelho mimético do vivido ou do acontecido, mesmo que possa, tal como o cinema ou mesmo a literatura, criar uma ilusão referencial capaz de substituir-se ao real e realizar a proeza de, como representação, substituir-se ao referente. Como diz Benjamin (1986, p. 37), a memória não retrata a vida como ela é ou foi, mas a realidade lembrada por quem a viveu! Temos, pois, dois elementos a compor: o da evocação/lembrança, que se articula ao da sensação/experiência, numa reconfiguração temporal. (PESAVENTO, 2000, p. 47)
Para Pesavento (2000), toda representação é uma relação entre ausente e presente, ou seja, a presentificação de um ausente. Nesse sentido, não se trata da representação do real em si, mas da construção de um sentido, de um novo real semelhante quando da representação na narrativa literária e no discurso histórico da enunciação de um “outro” que está distante no tempo e no espaço. Dessa forma, o ponto de vista está sempre presente, impossibilitando que um discurso, mesmo que científico, seja capaz de explicar os fatos com imparcialidade.
A obra de Caio Fernando Abreu oportuniza, por vezes, uma diluição entre o real e o ficcional. Ao refletir acerca do contexto no qual foi produzida, traz à tona questões existenciais, sociais, de crítica e de denúncia a uma sociedade marcada pela violência e pela dominação.

3. Caio Fernando Abreu: um homem de seu tempo
Em Rua de mão única, Walter Benjamin (2000) chama a atenção para o processo de análise e interpretação de uma obra. A partir da reflexão do autor pode-se compreender o quanto é imprescindível considerar as circunstâncias nas quais foi produzida: o contexto de produção, a finalidade da transmissão, a ação do locutor e a recepção do público.
Caio Fernando Abreu conseguiu elaborar uma literatura visceral, possibilitando discutir sobre as mudanças radicais pelas quais passava a sociedade brasileira; refletir criticamente um tempo de extrema repressão e violência, de esmagamento dos direitos individuais. Viveu em permanente tensão entre sua dedicação à escrita e as inevitáveis responsabilidades da vida. Levou uma vida itinerante, percorrendo cidades, países e continentes sempre em busca de algo a mais.

3.1 Contexto de produção
Brasil. 1964. Uma junta militar formada por representantes das três armas – Exército, Marinha e Aeronáutica – toma o poder do então presidente da República, João Goulart, com o apoio do governo norte-americano de Lyndon Johnson, alegando que estavam salvando o país da anarquia e do comunismo, em nome da segurança nacional. Era o fim da república populista e o início do regime militar, que levará “à completa absorção econômica do país na esfera dos Estados Unidos” (PICCHIO, 1997, p. 631).
No mesmo ano, Caio Fernando Abreu, que nasceu em 1948, em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, Santiago do Boqueirão, muda-se para a capital, Porto Alegre, onde publica seus primeiros contos e conclui o colegial.
Inaugura-se o período da cassação dos direitos políticos para muitos líderes pertencentes à antiga classe de governo, mas também para inúmeros intelectuais, submetidos à repressão cultural com a apreensão e queima de livros. A prisão atinge centenas de escritores, artistas, professores que começam então a se exilar em diversos países da América Latina, na Europa (França, Alemanha, Países do Norte, Itália) e nos Estados Unidos. (PICCHIO, 1997, p. 631).
Em 1967, o governo Castelo Branco consolidou o regime militar, impondo ao país a Constituição, de 24 de janeiro de 1967, que ampliava os poderes do presidente da república e restringia o direito de greve. Neste mesmo ano, Caio inicia os cursos de Letras e Artes Dramáticas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no entanto, em 1968 abandona ambos e muda-se “para São Paulo aos 20 anos de idade, ao ser escolhido para integrante da primeira equipe de jornalistas da então recém-criada revista semanal Veja” (MORICONI, 2002, p. 355).
Neste mesmo ano, manifestantes de diversos países organizavam-se contra regimes repressores: “É o ano do movimento estudantil na França, de greves e protestos operários e estudantis e do AI-5, que cassa os direitos políticos dos cidadãos no Brasil.” (In: ABREU, 2005, p. 353). Com a tentativa de despolitização dos estudantes a partir da extinção da UNE, o regime colocou "gradativamente o movimento estudantil na clandestinidade, juntando-o aos partidos comunistas, ao radicalismo brizolista e, sobretudo, às centenas de sargentos e suboficiais que haviam sido expulsos das Forças Armadas." (GASPARI, 2002, p. 226). Com Costa e Silva na presidência, se inicia o governo mais repressivo da história do país.
Em 1969, o general Emílio Garrastazu Médici assume o governo do Brasil, dando continuidade às práticas e políticas do governo anterior. Qualquer cidadão suspeito de ser “subversivo” podia ser detido, torturado e morto. Foram perseguidos professores, estudantes, jornalistas, artistas, religiosos e até militares contrários ao regime, “o próprio Caio fora perseguido pela polícia política do Dops, no ano de 1969, pela suposta ‘subversão’ de seus contos, em razão do que passou a viver escondido por algum tempo na Casa do Sol, em Campinas, sob a proteção de sua amiga Hilda Hilst”. (BARBOSA, 2008, p. 4).
Em 26 de janeiro de 1970, a Câmara aprova a censura de livros e periódicos. Abreu recebe o prêmio Fernando Chinaglia da União Brasileira de Escritores (UBE) por sua obra Inventário do Irremediável, que foi seu primeiro livro publicado.
Com o aumento da repressão do governo, a oposição organiza ações clandestinas. O jornal O Pasquim foi um dos principais focos de resistência ao regime militar, que apesar das perseguições da censura e das constantes prisões de seus colaboradores, foi extremamente popular por toda a década de 1970. Nessa mesma época, outros grupos de oposição, que desde o governo anterior tinham decidido partir para a luta armada, renovaram suas ações: praticaram assaltos a bancos para conseguir dinheiro para as lutas e sequestraram vários diplomatas estrangeiros para trocá-los por prisioneiros políticos.
A década de 1970, que ficou conhecida como a década da discoteca, devido ao surgimento da dance music, foi também a década na qual morreram após serem torturados por agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Defesa Interna (DOI-Codi), jovens, como Stuart Angel e Alexandre Vanucci Leme, que era Militante da Ação Libertadora Nacional, e trabalhadores, como o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura e militante do Partido Comunista Brasileiro, e o metalúrgico Manuel Fiel Filho.
[...] o período ditatorial ficou marcado na História brasileira pela repressão às artes e meios de expressão e comunicação em geral e pelo excesso da violência física e moral como forma de controle e manutenção da ordem. Com os militares no poder, qualquer oposição ou suspeita de subversão ao sistema era duramente reprimida, tendo no governo do General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), o auge do autoritarismo. (OHE, 2009, p. 2)
No entanto, as conquistas do futebol – a seleção brasileira conquistava o tricampeonato mundial de futebol no México – e a ilusão do “milagre econômico”, parecem ter contagiado grande parte do povo, de forma que não enxergasse o que se passava à surdina e nas batidas realizadas pela polícia na calada da noite contra os opositores ao regime. E os militares entoavam slogans de “Para frente, Brasil!” e “Brasil, Ame ou Deixe-o!”.
Em 1971, “Caio muda-se para o Rio de Janeiro e trabalha como pesquisador e redator das revistas Manchete e Pais & Filhos. Volta a Porto Alegre, onde é preso por porte de drogas”. (In: ABREU, 2005, p. 354). Em 1972, “Trabalha como redator do jornal Zero Hora e como colaborador do Suplemento Literário de Minas Gerais.” (In: ABREU, 2005, p. 354). Em setembro deste mesmo ano, o presidente Médici inaugura a rodovia Transamazônica. No período em que Delfim Neto era ministro da Fazenda, houve um aumento e diversificação das exportações, modernização do país, mas empobrecimento do povo e crescimento da dívida externa. Este governo caracterizava-se por seus investimentos em obras faraônicas como a usina atômica de Angra dos Reis e as hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí.
Como retaliação dos países árabes – maioria dos constituintes da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) – aos Estados Unidos por estes terem apoiado Israel na Guerra do Yom Kippur, a OPEP triplicou o preço do barril de petróleo. Consequentemente, após a crise do petróleo de 1973, a economia mundial, e particularmente a dos EUA, entrou em recessão.
Cansado desta realidade, Caio se exilou por um ano na Europa:
Aconteceram coisas bastante duras nos últimos tempos [...], mas a conclusão, amarga, é que não há lugar para gente como nós aqui neste país, pelo menos enquanto se vive dentro de uma grande cidade. As agressões e repressões nas ruas são cada vez mais violentas, coisas que a gente lê um dia no jornal e no dia seguinte sente na própria pele. A gente vai ficando acuado, medroso, paranóico: eu não quero ficar assim, eu não vou ficar assim. Por isso mesmo estou indo embora. [...] Acho que o mundo está aí pra ser visto e curtido, antes que acabe. Vou de consciência tranqüila, sabendo que dentro de todo o bode fiz o que era possível fazer por aqui. E não sei quando volto. Nem se volto. (ABREU. In: MORICONI, 2002, p. 437)
Sua última obra foi Estranhos Estrangeiros. Ele faleceu antes da conclusão do livro. O título foi escolhido por ele, mas os contos que ele pretendia incluir não foram encontrados, com exceção do Ao simulacro da imagerie, que ocupa as primeiras páginas do livro.
Em 1994, na França, Caio descobriu-se portador do vírus HIV:
Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV positivo. (ABREU, 2005, p.112)
Morreu prematuramente, em decorrência da AIDS, exatamente na época em que seus livros ganhavam projeção internacional e fincavam seu nome como ícone de uma juventude libertária. Ele mesmo assim se definiu em 1995, após uma curta vida dedicada a ver e experimentar os altos e baixos de transcrever a realidade:
Sou uma pessoa clichê. Nos anos 50, andei de motocicleta e dancei rock. Nos anos 60, fui preso como comunista. Depois, virei hippie e experimentei todas as drogas. Passei por uma fase punk e outra dance. Não há nenhuma experiência clichê de minha geração que eu não tenha vivido. O HIV é simplesmente a face da minha morte. (FRANCO, 1996, p. 01)
O conhecimento histórico e a análise da obra a partir deste contexto são fundamentais para que se possa compreender um texto em sua totalidade, pois o contexto de produção é elemento constitutivo da obra literária, que segundo Porto e Porto (2004), “absorve e transforma em linguagem literária, num movimento que representa a própria estrutura do contexto” (p. 67). Neste sentido, desconsiderar o contexto de produção de uma obra “seria minimizar o potencial crítico apresentado pela obra” (id.).

4. Gravata
“[...] podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro dela” .
Caio Fernando Abreu
Em Gravata, conto integrante da antologia O ovo apunhalado (2008), Caio apresenta uma metáfora do indivíduo que é dominado e sufocado pela sociedade. Este sufocamento se dá a partir da submissão da identidade individual do sujeito aos padrões de consumo estimulados pelo sistema capitalista.
Desde seu início, este conto revela-se como uma reflexão acerca da repressão imposta pelo brutalismo característico da sociedade brasileira da década de 1970, entusiasmada com uma promessa de progresso e cada vez mais desumana. Como afirma Ana Paula Ohe (2009):
O “milagre econômico” brasileiro proporcionou ao país um crescimento da economia em ritmo acelerado. O ingresso maciço de capitais e empresas estrangeiras possibilitara a ampliação do mercado interno e externo. É nesse período, que pela primeira vez, a produção brasileira encontrara um mercado consumidor significativo em outros países, fazendo com que a transitoriedade dos modismos rompesse os limites territoriais para inscrever-se num âmbito global, tornando visível as mudanças nos padrões tanto de produção como de consumo. (OHE, 2009, p. 7)
Este contexto, regido pela lógica do consumo, é refletido no conto a partir da busca do personagem por se sentir incluído socialmente, através da aquisição de um bem material capaz de diferenciá-lo dos demais: “No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia” (ABREU, 2008, p. 24). A percepção de que a vida de algumas pessoas em sociedade se tornou efêmera e corriqueira pode ser relacionada com o consumismo, com o acúmulo de bens materiais e, consequentemente, de trabalho e de informação.
Assim, o indivíduo busca sentir-se melhor por meio da aderência a modismos, no caso do conto em análise, através da compra de uma gravata, que além de ser capaz de destacá-lo entre seus iguais – outros homens com o mesmo padrão de vestimenta e, que assim como ele, utilizam transporte coletivo –, também, por si só constitui-se em um símbolo de marcação de status. Recorrendo ao conceito apresentado no próprio conto, uma gravata é um “lenço, manta ou fita que os homens, em trajes não-caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho da camisa, atando-a adiante com um nó ou laço” (ABREU, 2008, p. 26), ou seja, algo inapropriado, ou ainda, improvável para um sujeito que em seu trabalho realize atividades que envolvam esforço físico – as quais são desvalorizadas e até vistas com preconceito pela sociedade.
O protagonista do conto – um homem solitário e de condições econômicas limitadas – se deixa seduzir por um delírio de consumo: a compra de uma gravata de seda importada. Após vê-la pela primeira vez em uma vitrine, não pôde mais esquecê-la e passou a organizar sua vida objetivando adquiri-la.
No início da narração, o leitor parece ser induzido pela estrutura arquetípica a reconhecer a descrição de um caso de amor platônico:
A primeira vez que a viu foi rapidamente, entre um tropeço e uma corrida para não perder o ônibus. Mesmo assim, teve certeza de que havia sido feita apenas para ele. No ônibus, não houve tempo para pensá-la mais detidamente, mas, no dia seguinte, saindo mais cedo do trabalho, parou em frente à vitrine para observá-la. (ABREU, 2008, p. 24)
Opção que não se exclui por completo com a continuidade da leitura, já que a relação estabelecida pelo personagem para com a gravata é apaixonada e obsessiva, como se pode perceber nos trechos a seguir:
[...] voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte de veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade, pensou. E imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. [...] surpreendeu-se a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem possuí-la. Na verdade, era mais fácil do que supunha. Alguns cigarros a menos, algumas fomes a mais. (ABREU, 2008, p. 24-25)
O desejo, a necessidade pelo objeto se apodera do indivíduo de tal forma, que este se vê absolutamente seduzido pela imagem da mesma: “Era nada menos que perfeita na sua cor vagamente indefinível, entremeada de pequenas formas coloridas, em seu jeito alongado, na consistência que pressentia lisa e mansa ao toque” (ABREU, 2008, p. 24), tanto é, que mesmo após concluir que não dispunha de meios para pagá-la, não conseguiu desistir de comprá-la.
A construção deste personagem oferece pistas substanciais para reflexão do distanciamento nas relações pessoais, do sentimento de solidão e perda de identidade que o homem experimenta nas situações características da vida urbana, que aglomera os seres, mas não os aproxima. Em trechos como: “deitado, a cama pareceu menos vazia que de costume” (Id. p. 25) e “em casa, atarefado na cozinha, dispondo pratos, panelas e talheres para o próprio jantar, conseguiu por alguns momentos não pensar – mas um pouco mais tarde, jornal aberto sobre os joelhos, olhar perdido num comercial de televisão [...]” (Id., p. 24), pode-se perceber que este homem, que segundo o próprio autor (ABREU. In: RBSTV RS, 2007), ao não receber nome poderia ser qualquer um, vive na solidão e está conectado com o mundo através dos meios de comunicação de massa, o que o torna presa fácil de campanhas publicitárias e ideológicas, que como ainda hoje, empurram os indivíduos para um consumo desenfreado e inconsequente.
O consumo não se dá pela necessidade, mas pelo simples prazer de possuir determinado produto, pelo status que pode ser adquirido através do poder de compra e, assim, como uma regra de integração, onde o indivíduo é o que tem.
Através de elementos fantásticos – como a última cena descrita: “ergueu os olhos para o espelho e, antes de rodar sobre si mesmo para cair sobre o assoalho, ainda teve tempo de ver um homem de olhos esbugalhados, [...] duas pontas de seda estrangeira movimentando-se feito cobras sobre o peito [...]” (ABREU, 2008, p. 28) –, da ironia e do exagero, Abreu faz uma crítica a esse modo de vida, no qual as identidades individuais entram em conflito diante dos padrões e papéis sociais que necessitam exercer. Não se pode ignorar que a identidade particular do Ser Humano se dá através da construção, convivência e influência dos outros, por meio das trocas, sensações, emoções.
Houve, ao longo da narrativa, indícios de que este homem mantinha um nível, ainda que pouco expressivo, de consciência, o que garante o conflito deste conto ao apresentar a tentativa do sujeito de racionalizar a situação e libertar-se dela e, finalmente, sua derrota. O homem via a vida acontecer pela janela e sentia-se apartado do convívio social: “Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se apressasse podia ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo. Vou viver uma madrugada de domingo – disse para dentro, num sussurro” (ABREU, 2008, p. 28).

5. Considerações finais
O contexto de produção deste conto é marcado por grandes e intensas transformações econômicas, políticas e sociais. Com a crescente industrialização e a expansão acelerada das cidades, os valores sociais e o modo de vida das pessoas é diretamente afetado, resultando em indivíduos cada vez mais desumanizados e consumistas.
Do ser humano, a subjetividade e a interioridade não são reconhecidas nem avaliadas. O interesse mercadológico e vontade de ascensão social, que definem a busca dos personagens dos contos de Caio Fernando Abreu, assinalam para uma perspectiva social em que o homem e o valor deste enquanto ser humano são superados pelo apreço ao objeto, concretizado em bens materiais. (PORTO; PORTO, 2004, p.65)
Em sua obra, Caio enfoca a interioridade de personagens, que reagem de várias maneiras aos fatos. Por um viés psicológico, enfatiza o ponto de vista sob o qual os eventos externos são assimilados e sobre a forma como estes, libertos do aspecto meramente social, fundem-se aos conflitos do inconsciente. Desta forma, Caio dá uma mostra tão concreta de seu tempo, tão sensível às transformações de seu contexto histórico, que acaba por dialogar com a realidade contemporânea, constituindo-se como um autor extremamente atual.
Assim, neste mundo cada vez mais fragmentário e massificado, Caio continua se comunicando com o leitor através da busca pela identidade individual e pelo subjetivismo.
A literatura que eu faço é basicamente urbana, eu acho que na grande cidade todas as emoções e todos os mistérios das pessoas se diluem muito, então, quando uma personagem minha não tem nome é porque ela é muita gente e um nome a tornaria demasiado individual. (RBSTV RS, 2007)
Desta forma, como reflete Lima e Silva, “Pensar a produção de Caio F. como prosa poética poderia significar a total exclusão da perspectiva de sua representatividade social. No entanto, é justamente pelo intenso mergulho na individualidade de suas personagens que seus textos atingem um grau elevado de vínculo com as questões sociais que cercam esses sujeitos”. (LIMA E SILVA, 2008, p. 212)
Percebe-se que Caio olha para o marginalizado e, com isso, estimula seu leitor a sair da passividade. Suas narrativas instigam a reflexão sobre a condição humana, num contexto de violência e degradação, em que não é mais possível manter laços com o outro. Esse sujeito é fragmentado porque o espaço em que circula e vive também o é. Através da obra de Caio, questões como identidade e a perda de seus referenciais, ou a degradação do ser humano diante de uma sociedade de consumo, de repressão e violência, são trazidas à tona e questionadas, o que suscita reflexões acerca do papel de cada sujeito.

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1 Professor Adjunto da Universidade Federal de Pelotas - UFPel
2 Mestranda em Letras - FURG.
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