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Literatura e Autoritarismo
Experiência e Esclarecimento
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 17 

APELO DO FORA E DESENRAIZAMENTO: LEITURAS DO ÊTRE-ENSEMBLE EM MAURICE BLANCHOT

Eclair Antonio Almeida Filho*
Amanda Mendes Casal**
Resumo: Este ensaio parte de uma leitura de algumas páginas de L’Entretien infini (1969) intituladas L’Indestructible. Nelas podemos encontrar uma sucinta referência ao termo ‘comunidade’ (communauté anonyme), que nos permitiu reportá-lo à obra La communauté inavouable (1983). Nosso objetivo é, pois, a partir de uma reflexão que poderia ser a da experiência dos campos de concentração e das relações de poder, observar como o pensamento do poder – a máquina do funcionamento do possível – de cuja sulcagem escapa o não-poder – que pertence ao fora –, da dominação, da dialética do mestre e do escravo se dissolvem em se refletindo acerca da comunidade da ausência e da ausência de comunidade.
Palavras-chave: poder, exílio no fora, não-poder, homem dos campos, comunidade.
Abstract: This essay has as a purpose to analyse the meaning of blanchotian term “community” in some pages of L´Entretien Infini (Infinite Conversation) entitled L’Indestructible. Throughh them we can find a succint reference to the term ‘comunidade’ (anonyme community), that has allowed us to report it to Blanchot´work La communauté inavouable (1983). Our main goal is firstly to reflect on an experience that could be the experience of concentration camps and of theirs Power relations; secondly we purpose to remark how the thought of the Power - – the machine that makes the possible function – from whose plowing escapes the No-Power – that belongs to the Outside –. We can perceive that this no-power experiencie also escapes from the hegelian Master-Slave domination and dialectics dissolvem dissolving itself. At last we will reflect about both the community of absence and absence of community in Blanchot.
Keywords: Power, exile in the outside, no-power, the man from the concentration camps, community.

- O segredo não está ligado a um “eu”, mas à curvatura do espaço
que não se saberia dizer intersubjetiva, já que o eu sujeito se reporta
ao Outro na medida em que o Outro não é sujeito, na desigualdade
da diferença: sem comunidade; o não-comum da comunicação***.
(BLANCHOT, 1980, p. 208)
Talvez Maurice Blanchot tenha escrito alguns de seus récits para evocar a impossibilidade da reciprocidade entre o “eu” (o «je») e o Tu. Não seria inútil lembrar que o único amigo a que Blanchot tratou por tu foi Emmanuel Levinas. E é este biografema que temos de acréscimo num fragmento de Écrits politiques (2008) cujo título é Sim, o silêncio é necessário à escritura1. Mas talvez ele ganhe uma dimensão muito mais significativa – mesmo se situando no último dos dois parágrafos do fragmento – de modo que o último e abreviado parágrafo nos pareça o mais importante já que a presença de Levinas não só justifica um primeiro parágrafo que versa sobre a necessidade de um autor esvaziado de si, bem como daquilo que não se pode dizer à escritura, mas também uma amizade em cuja relação se instaura o tutoiement. Eis que a amizade de Levinas é o que há de mais importante em todo o fragmento visto que o primeiro parágrafo parece encerrar tão-somente a reiteração das últimas linhas de La communauté inavouable – publicado alguns anos antes, na década de 80 –, quando se vai de encontro a Wittgenstein a fim de se afirmar (em oposição a ele) que para calar é preciso falar. A confissão (sempre já inconfessável), que não se esgota, que não se basta, ao fim de três linhas parece entrar numa relação com o silêncio. No mais, não parece necessário obstar a relação com o amigo Levinas a partir de convenções de interpelação tão antigas quanto a aristocracia, visto que antes Levinas “ensinou” Blanchot – e é com este termo que Blanchot testemunha sua afeição por Levinas – a pensar Outrem (Autrui), quando já não é mais possível que Outro seja o segundo membro de uma equação cujo primeiro membro é o sujeito (je); quando Outrem (Autrui) destitui a presença (ou a parecença) face a face, devolvendo ao homem o reconhecimento do Outro como desconhecido.
Com efeito, o récit Au moment voulu (1951) endossará a relevância da questão do tutoiement tanto que a vimos quase quarenta anos depois mesmo que em caráter de exceção. O fragmento do récit que citaremos é uma sequência de frases, cada uma assinalada, de início, por travessão, sendo um travessão do «je» e outro, de Claudia: “– Por que você me trata por tu? («eu») – É sem consequência, é festa hoje! Tu, tu não tratas jamais alguém por tu ! (Claudia) (...) Ela acrescentou algumas palavras em sua bela língua. – Tu conheces esse provérbio: Um lhe diz tu, o outro a possui (BLANCHOT, 1951, p.99-100)”.
Este raro momento em que Claudia fala a alguém – já que sabemos pouco sobre a ‘identidade’ de quem levanta a primeira questão na sequência transcrita – tratando-o por tu traz três aspectos interessantes. Um está textualmente expresso acima: Claudia também pode falar numa língua que não é compreendida por aquele a quem ela se dirige de modo que isto se relacionará ao segundo aspecto, que se liga à ‘terra natal’ de Claudia, e ao terceiro aspecto, que se liga à terra da qual o outro a quem Claudia se dirige provém. Estes aspectos, que aparecem como questões no récit, nos obrigam a outra questão: quem é estrangeiro? Na sequência do fragmento transcrito, o outro sugere que no país de Claudia se tutoie comodamente e, em seguida, pergunta se é, verdadeiramente, um homem do norte. O acento da pergunta, entretanto, cai sobre ‘verdadeiramente’, elemento quase apendicular na questão uma vez que ele já é tido como estrangeiro; a ele basta saber se lhe correspondem os possíveis atributos de estrangeiro do norte. São dois estrangeiros, mas há outro que lhes permite tombar no fora desta estranheza como se neste terceiro se cumprisse um exílio – uma errância sempre estrangeira. É a palavra que os deixa no fora – que não serve para que um reconheça o outro –, este exílio em que nada se pode assimilar, estadia da separação e da diferença. Até o provérbio, frase que parece cristalizada pela repetição, aqui, é um provérbio desconhecido de um país estrangeiro, acentuando o écart2: não há, ao contrário do que possa parecer, registro que lhes seja comum, pois nada se compartilha no fora; é impossível o tutoiement tanto quanto a submissão daquele a quem se dirige, que não pode ser sequer uma coisa a se possuir.
Duas afirmações de Blanchot surgem nesse momento. Uma exclui qualquer leitura que analise o evento de Auschwitz sob a perspectiva da reificação. É assim que Blanchot nos lembra de que o homem dos campos de concentração não pode ser comparado a uma coisa, pois até uma coisa inútil é preciosa. Outra se volta para o carrasco nazi que se esforça em extrair, violentamente, um pedaço de linguagem do homem dos campos. O esforço deve ser compreendido não a partir de uma potência à qual o carrasco deve submeter ou sobrepujar, pois a potência foge ao homem a quem atingiu a desgraça. Esse homem que não diz ‘eu’ por lhe faltar o poder de dizê-lo não pertence sequer a um nicho de resistência moral nos campos se esta resistência for representada por um agrupamento social. Não é possível – não há poder se considerarmos que Blanchot nos lembra que poder é o poder de fazer, macht na língua alemã – associar-se mesmo que de modo rudimentar uma vez que o que acontece nos campos não é de ordem alguma – é tão-somente fracasso social. Como se poderia afirmar uma sociedade de homens prestes a serem queimados? Se uma sociedade se funda no poder de trabalho, como dizer que homens, que carregam pedras e depois as devolvem para o mesmo lugar realizam, vivem a teleologia do trabalho? O homem dos campos, entre frases que convidam a ‘viver’ – como ‘o trabalho liberta’ (a essencialização do trabalho) – sofre a privação (o arrancamento) do ‘eu’ (e da soberania que o ‘eu’ poderia lhe conferir) pela força dos carrascos, Moi da potência de morte. Mas a violência não se caracteriza como um movimento sádico personalógico; não há, na desgraça, pessoa alguma que a sofra ou que a cometa. Diante do carrasco, a presença vazia de outrem – outrem que é o que há de mais pavoroso e insuportável ao anti-semita visto que é impossível assujeitar o fora do sujeito – está fora de ataque: “Pode-se matar um homem presente, mas não levar o ataque à presença enquanto presença vazia jamais presente” (BLANCHOT, 1969, p.189-190). O carrasco sequer consegue dar cabo ao homem dos campos, trocando-o por outra coisa diferente de um homem, pois não se pesa não se subtrai não se apreça o que não se mede pelo poder, pois o poder não ‘poderia’ fazer desvanecer o indestrutível, que é o infinito da destruição, como vemos em L’Écriture du désastre.
O homem para o qual a soberania é nada, alheio ao pertencimento a qualquer sociedade, quer dizer, adesão a um ser, a um órgão coletivo cuja finalidade é tornar essenciais as relações humanas parece próximo à comunidade daqueles que não têm comunidade (Bataille), epígrafe de uma das duas partes de La communauté inavouable cujo título é Comunidade negativa. Se entre homens não é possível que ocorra mais que dois eventos, a fala ou o assassínio, o homem nazi, carrasco nos campos, tortura a fim de arrancar o pedaço de linguagem, mas de modo que a violência saia da morte e penetre na tortura. Nesta via, a verdadeira palavra, palavra de outrem – dom de acolhimento –, se retrai infinitamente e a violência, que só pode assolar a presença presente, chega o mais próximo, tanto quanto lhe é possível, da impotência. Quando a possibilidade cessa, a violência já não é eficaz ou higiênica, seu poder só pode lhe ser limitado. Logo seu poder, que lhe parecia infinito, se enfraquece ante o infinito de outrem.
Voltemos ao provérbio de Au moment voulu. Sem qualquer risco de tautologias, só é possível que se possua aquilo que se pode possuir, que se pode amestrar, que se pode interpelar. O carrasco, que parece possuir mais que o homem dos campos, pode até interpelar objetos já que os objetos lhe pertencem ao passo que outrem não se circunscreve em lugar algum (leia-se lugar como presença), muito menos no lugar (na presença) das coisas que podem ser possuídas. Deste modo, cabe ao homem resguardar sua identidade pessoal (sua soberania), pois esta lhe pode faltar, isto é, pode ser rebaixada ou assolada, mas, tombado para fora do ser, na desgraça infinita, impossível é ser assimilado pela violência do carrasco. O erro do carrasco: falar como se falar fosse assujeitar, como se pudesse transmitir a outrem, sempre fora de ataque, uma ordem ou uma regra pela palavra.
Blanchot sobre o apelo dos nomes nos campos: « O nome próprio – uma cifra – é desapropriado pela potência mesma que o designa e pela potência da linguagem interminável » (1973, p.57). A linguagem que é assassina ou a palavra que porta o jogo mortal é assim que Le pas au-delà faz menção à ‘identificação’ do homem dos campos pela nominação que tem lugar a fim de se remarcar – quando se substitui um nome por um número ou se escreve um nome, que já não é civil, num cartaz de identificação – que ele já não pode mais ser identificado como pessoa. Este jogo mortal, em cuja apresentação a linguagem não só mata como também estilhaça (éclate) o anonimato e a impessoalidade que deveriam preceder ao nome, fazendo com que o nome tenha um semblante de identificação, mas que encerre o rebaixamento do pessoal para o fora de sociedade, Blanchot aproxima das “formalidades de estado-civil” cuja serventia perversa, dentro dos limites do aceitável numa “civilização refinada” e de bom gosto, é a privação da liberdade. Embora o dominador pretenda desnudar o homem dos campos – já condenado à fadiga, ao frio e à fome – de sua “desgraça privada”, lançando-o ao fora de sociedade, a linguagem mesma despista aquele que pensou amestrar pela linguagem, como se esta prometesse estadia à violência mortal. Descartar ou lançar para o fora é o que o dominador acredita ser a potência máxima da nominação nos campos, mas o fora é já outro jogo diferente do jogo da potência mortal – jogo que dribla (déjoue) o carrasco. Da denegação pela violência, o descarte (a separação) dá uma volta no dominador, tornando a separação positiva. Se, pelo nacional, pelo enraizamento ou pela assimilação, se justifica a violência, o exílio – a errância (o fora) – não implicará a afirmação de valores negativos, como abandono da pátria transcendental ou ausência de Deus visto que estes – que se circunscrevem numa metafísica negativa – não poderiam falar ao judaísmo. A palavra verdadeira, dom de acolhimento, não como casa (ou abrigo) do ser, mas como exílio no fora.
A palavra de outrem, que nos vem do ser-judeu não se mistura à violência do assassínio, ou melhor, a violência não pode se imiscuir na palavra verdadeira. Deste modo, o carrasco, acreditando poder amestrar a colocação no fora da exclusão, começa a se reportar ao infinito que o tornará falível, impotente, que cessará todas as suas possibilidades. Longe do alcance e da medida de poder é o fora que faz apelo, opondo-se à voz daquele que parecia poder interpelar seus escravos. Outrem, que sempre está em retração, repele o anti-semita (que sente repulsão por outrem), sendo um valor positivo em relação à exterioridade, pois outrem é fora de sujeito, bem como fora de associação. Assim, Blanchot refere-se à seguinte afirmação de Hegel: “O Deus dos judeus está na mais alta separação, ele exclui toda a união. Há no espírito do judeu um abismo insuperável e intransponível” (1969, p. 187). Para o anti-semita, o desterro nos campos ainda se faz pela linguagem violenta – a linguagem sendo aquilo que há de mais próprio –, pela linguagem-terra de modo que o choque de um nome expulsa da terra o homem dos campos. “A linguagem entendida ainda como terra em que se enterraria a raiz germinal” (BLANCHOT, 1980, p.183): esta comparação arbórea-pivotante, isto é, alegoria da organicidade arbórea do ser é patente ao gosto greco-romano (ao pensamento grego), cuja distorção é própria aos nacional-socialistas. Talvez o assombramento de Hegel possa ser comparado ao que Bataille (1980) diz ser uma mancha cega no olho – um abismo cuja invisibilidade (inacessível à ‘luz do saber’) é impossível de ser assimilada numa relação dialética (uma relação de segundo gênero, em que o Outro, substituto do Uno, é um semblant do Mesmo que assimila). Deste modo, por uma ‘ingenuidade’ resultante da soma de uma metáfora luminosa com uma metáfora arbórea, outrem não pode pertencer ao sistema hegeliano visto que é o que há de mais separado...
Blanchot acentua que o enraizamento não poderia ser a pedra de toque de todas as relações (humanas) às quais é preciso responder. Visto que na relação de primeiro gênero (já vimos a de segundo) o Uno ou o conjunto é dado por verdade, em se afirmando o desejo dos homens pela assimilação, pela identificação, pelo completamente mesmo, numa teleologia cujo mediador poderia ser o trabalho (o trabalho essencial), podemos assegurar que uma terceira via (uma relação de terceiro gênero) é necessária para que se aceite, pacientemente, a invisibilidade de Outrem. Como sugere Blanchot, Outrem é um termo cujo uso remonta à língua épica de modo que a escolha do vocábulo recaia sobre a evidência gramatical de que Outrem jamais pode ser primeira pessoa. Na relação de primeiro gênero, há um « Je » que sumariza um sujeito ao passo que na relação dialética o « Je », que se substitui por um « Moi » (digamos, um “mim” ou um “eu” no caso oblíquo), se une imediatamente ao Outro, que goza do status de primeira pessoa, substituindo o « Je » e também lhe fazendo as vezes de Sujeito. De Outrem vem a errância que “substitui a dominação do mesmo por uma afirmação que a palavra ser – em sua identidade – não saberia contentar” (BLANCHOT, 1969, p.186). É preciso que evoquemos o humanismo judeu a fim de que possamos relacionar tanto o prefixo de ex-ílio quanto o de ex-istir de tal modo que seja possível compreender, além da essência, que Outrem não é uma espécie de resto ontológico.
Num de seus mais extremos escritos políticos, Blanchot, ao comentar sobre o uso muito peculiar (por Lyotard) do termo ‘judeus’ entre aspas de modo a engendrar uma espécie de identificação entre todos aqueles que foram contemporâneos de Auschwitz, assevera que ‘judeus’ designando a todos (mesmo os não-judeus) acena para um être-ensemble, que não poderia se definir por uma raiz entre judeus e não-judeus, mas que se refere à “única dívida de uma anamnésia primeira” (2008, p.244). Fingir lembrar quando o imperativo do título do artigo de Blanchot é “não esqueçam” talvez não seja a melhor via para se compreender o ser-judeu, bem como o humanismo judeu que exige que a ética (e não a metafísica) seja a filosofia primeira. Blanchot, numa admirável leitura do Antigo Testamento, reflete sobre a questão de Deus dirigida a Adão após sua falta: Onde tu estás? Deus – ser que não se poria em questão e, por conseguinte, ser que não questiona – tem, a partir desse momento, por meio da linguagem humana, o homem como questão. A presença de Deus não somente se daria pela presença (na linguagem do homem) de Outro, mas na separação infinita da invisibilidade longínqua de Outrem. Admitamos que seja possível ver ao homem como se vê a Deus (Blanchot se refere a Jacó falando a Esaú). Disto depreendemos que tanto na relação entre homem e homem quanto na relação entre homem e Deus é possível que se encontre a presença de Outro e também – e é isto que nos importa – a presença infinita de Outrem. “Eu” posso interpelar a outrem, lhe dirigir a palavra – a palavra múltipla no fora múltiplo sem reconhecer qual é a direção da palavra, aceitando que ela é sem direção, sem retidão, desgarrada, plural –, mas a palavra é dom, isto é, não partilhando nada, sem a necessidade ou a certeza de ser acolhida (e exatamente por isso sendo acolhimento do dom da palavra), a palavra, como aquilo que não se tem, mas que se gasta, é abandonada e, somente por isso, abandonada a outrem, sem que o abandono lhe imprima direção. Não há, por isso, palavra de apoio, palavra de ordem ou palavra de reconhecimento – a palavra é errância.
Se, entre os homens, só é possível que o homem fale com outro homem ou que o mate (reiteramos), como remarca Blanchot, logo o encontro com outrem também pode se manifestar pela violência mortal. É em L’Écriture du désastre que descobriremos a relação com Outrem singularizada, em termos nada tranquilizadores, pelo esmagamento (de “mim”), conferido por Outrem, que “me” retira do “privilégio de ser em primeira pessoa” (1980, p.35). Se nós partimos da exterioridade como origem do valor positivo de modo que tentamos abordar (sem margens e sem extremos) a suspensão de um tutoiement que dissolve o poder do carrasco já que a desgraça é aquilo que Blanchot entende por fracasso social, poderíamos refletir sobre os modos de resistência nos campos, sempre em se considerando a ausência do privilégio de ser em primeira pessoa. Seria possível que nos campos houvesse alguma tentativa de resistência (coletiva) que se pautasse no “fora de si” (hors-de-soi), constituindo um Moi-Sujet no fora pela fusão dos moi arrancados do direito de ser em primeira pessoa? Não é possível afirmar que, nos campos, não tenha havido resistência social, mas o que nos importa é que se afirma, entre o negativo dialético e o neutro, uma comunidade anônima (L’entretien infini). Que se exija uma “estrutura coletiva” – como afirma Blanchot –, isto é, um Sujeito mediador que não só seja a consciência da injustiça e da desgraça, mas que instaure uma “reivindicação comum”, isto não significa a constituição de uma sociedade de outrem no fora. É preciso que não se esqueça da violência desferida contra a quase totalidade de um povo (uma afirmação próxima encontramos em Après coup) e, se a filosofia que afirma a errância e o desenraizamento do ser-judeu se choca contra a exigência de um Estado judeu, Blanchot ainda se pronuncia em favor da liberdade mesmo que esta seja conferida por um Estado. Talvez seja esta ressalva que precisávamos fazer ante a resistência anônima e estrangeira de outrem, porque, sobretudo, o imperativo, após o ataque, o evento histórico que foi Auschwitz, passa a ser o cuidado com o outro, como afirma Blanchot em Les intellectuels en question, ante as absurdas racionalizações ideológicas do instinto do sangue, da terra e do enraizamento.
Mas ainda o que resta a dizer é a impossibilidade de “acolher, como palavra, a presença infinita e infinitamente silenciosa de outrem” (BLANCHOT, 1969, p.199) nos campos. Eis que surge para que entendamos o que arrasta esta impossibilidade, uma admirável e decisiva asserção, que encontramos em L’Entretien infini: “o fracasso do poder não é nem ‘minha’ vitória e muito menos ‘minha’ salvação” (1969, p.197). É necessário, sobretudo, que se fale contra a injustiça, contra o imperativo da violência e do enraizamento, mas nos deparamos nos campos com a impotência que se manifesta como “necessidade das necessidades” (nécessité des besoins) (1983, p. 23), quer dizer, quando as carências mais simples, como a falta de pão, supervalorizam o ato de comer (“grande é o comer”3), de recolher, impetuosamente, as migalhas no chão, deveriam se tornar um imperativo de resistência, mas que, de maneira frustrada, se tornam o “egoísmo sem ego” (1969, p.196) de uma existência solitária cuja aparição é o viver como (unicamente) todo o sagrado. Contra isto talvez bastasse um grito coletivo de poder ou, depois do ataque, o imperativo “não esqueçam”, mas a palavra que sai da boca (a parole, a fala), como vemos em Le pas au-delà, ainda carrega um cetro mesmo que seja somente um bordão de mendigo ao passo que a palavra não-falante, que não estabelece nem identidade nem alteridade4, a palavra de escritura – na medida em que a palavra de escritura é a palavra que avança deixando traços e buracos, esta palavra maltrapilha do trabalho da destruição5 –, sem uso e sem obra, se aproxima da exterioridade da existência silenciosa, mas, em cujas necessidades e desgraças, ainda é possível que se encontre, mesmo sem partilha, uma associação “comum” na falta de todos, como se aquilo que faltasse (les besoins), faltasse a todos – a necessidade é a reivindicação comum insuficiente.
Uma reivindicação comum a partir de um princípio de insuficiência nos faz lembrar dois ensaios de Jean-Luc Nancy, La communauté desoeuvré e La communauté affrontée e, entre um e outro, La communauté inavouable (de Maurice Blanchot), cujos fragmentos tomamos em parte até aqui. Nancy, com efeito, em La communauté affrontée se aproxima do que seria uma aporia no emprego, digamos, filosófico do termo comunidade, preferindo, em seu lugar, afirmar o “ser-em-comum”, o “ser-junto” (être-ensemble) e o “ser-com”, que parece, sobretudo, lhe interessar mais. Em Blanchot, poderíamos optar, sem maiores temores de fundo filosófico, por ‘comunidade’ ao invés de ‘être-ensemble’ – termo que aparece no início de A comunidade dos amantes para caracterizar a associação silenciosa e anônima da multidão nas ruas de Paris, quando dos mortos na estação de metrô de Charonne, e, ademais, uma presença comum o mais próxima do comunismo que já se viu. Mas, ao mesmo tempo, se vê uma multidão silenciosa que só esteve ‘junta’ – em se sabendo que o ato de se juntar é substituído quase que imediatamente pelo ato de se separar – pela morte de outrem, pelos estrangeiros e anônimos mortos, como se, para além de toda assembleia do povo, a comunidade fosse revelada na morte de outrem, como o diz Nancy e como o endossa Blanchot. Aqui, talvez terminem as paridades (assinalá-las ou não não é nosso objetivo) entre Nancy e Blanchot de modo que o primeiro reconhece, em La communauté affronté, que lhe faltou o ‘inconfessável’ uma vez que ele, Nancy, ao afirmar o desobramento (desoeuvrement) reconheceu tão-somente que este vem após a obra e a partir dela. O inconfessável, cuja palavra (palavra de escritura, palavra de défaut) é já a partilha do secreto ou do segredo, é (sem presença) o écart da obra e do desobramento.
A comunidade inconfessável, ausência do comum, do amor, ou mesmo do être-ensemble, se abandonando em comunidade da ausência e ausência de comunidade, não poderia de outro modo estar em questão se não fosse pelo desastre já que podemos pressentir que, após a ruína da comunidade, tudo permanece no estado. Em uma das páginas que tratam da comunidade, é possível ler que “ela inclui a exterioridade que a exclui” (BLANCHOT, 1983, p.25). Mas isto não é um jogo para afirmar que ela exclui a si mesma quando resolve cuidar da exterioridade, do outrem e do mais exterior, que é a morte de outrem: ela pode se afirmar como comunidade sem sê-la exatamente porque inclui a exterioridade como valor positivo que em nada poderia se relacionar à deflagração do negativo no Aufhebung. A comunidade não é uma negativa que se afirma. O desastre arruína deixando tudo no estado. Há nisso uma grande diferença, exatamente onde a diferença não se presta a ser assimilada no Mesmo.
No artigo Não esqueçam6, bem como em L’Écriture du désastre, podemos ir ao encontro do mesmo fragmento sobre o holocausto, “queimadura total”, “dom da passividade mesma, dom daquilo que não pode se doar” (1980, p.80). O silêncio de Auschwitz, o silêncio do evento que atingiu todos os campos, ainda deixa a pergunta: como dizer que isto teve lugar? De outro modo, maio de 68 levanta esta questão sem repeti-la já que Auschwitz não deve ser repetido. O homem dos campos, na impossibilidade de receber como palavra “a presença infinita e infinitamente silenciosa de outrem” (1969, p.199), inscreve na exigência comunitária uma relação com a palavra diferente do acolhimento da palavra no judaísmo. O dom de palavra (dom daquilo que não se pode doar) é pura perda, o que denuncia o ataque que o holocausto conferiu ao ser-judeu, ou melhor, à pequena comunidade da qual provém o princípio do amor7. Assim, a palavra sem partilha, ainda numa afirmação de Blanchot, cuja suplicação para falar outrem é que torna possível, pode fazer viver solitariamente: “a comunidade, no seu fracasso mesmo, tem parte ligada com certa espécie de escritura, aquela que não busca nada além das palavras últimas: ‘vem, vem, vinde, vós ou tu ao qual não saberia convir a injunção, a oração, a súplica, a espera’” (1983, p.26). O fracasso da comunidade como aquilo que tem início na suspensão do tutoiement a partir da qual se encerra o combate de todas as assimetrias do poder com o não-poder do fora.

Referências bibliográficas

BATAILLE, Georges. L’Expérience intérieure. Paris: Tel Gallimard, 1980.
BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable. Paris: Minuit, 1983.
__________________. L’Écriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980.
__________________. L’Entretien infini. Paris: Gallimard, 1969.
__________________. Les intellectuels en question. Tours: Farrago, 2000.
__________________. Au moment voulu. Paris: Gallimard, 1951.
__________________. Le pas au-delà. Paris: Gallimard, 1973.
HOPPENOT, Éric (org). Maurice Blanchot : Écrits politiques. Paris: Gallimard, 2008.
NANCY, Jean-Luc. La communauté affronté. Paris: Galilée, 2001.
______________. La communauté desoeuvrée. Paris: Christian Bourgois Éditeur, 2004.


* Doutor em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto do curso de Letras Tradução Francês-Português da Universidade de Brasília (UnB) eclair.filho@hotmail.com
** Aluna do curso de Letras da UFOP, habilitação Estudos Literários, e bolsista Pibic pela UnBCNPQ com o projeto “Por um glossário Maurice Blanchot”. amendescasal@yahoo.com.br
*** Todas as traduções de Blanchot são de responsabilidade do professor Dr. Eclair Antonio Almeida Filho (LET-UNB)
1 O fragmento aparece, em Écrits Politiques, datado de 1990. Vejamos:
Sim, o silêncio é necessário à escritura. Por que? De encontro a Wittgenstein (pelo menos tal como ele é entendido superficialmente), direi que aquilo que não se pode dizer, é precisamente aí que a escritura encontra seu recurso e sua necessidade. Daí também, que o autor enquanto Eu deve fazer o mais possível abstração de si. Ele não tem que sobreviver, e se ele vive, em princípio ninguém o sabe e talvez muito menos ele mesmo.
Eis quase 65 anos que sou ligado a Emmanuel Levinas, o único amigo que eu trato por tu. Eu lhe devo muito, para não dizer tudo. Benção não merecida. (2008, p. 247)
2 O vocábulo écart nos parece intraduzível, mas não encontramos vocábulo melhor que possa assinalar o extremo oposto de uma abordagem que resultaria em submetimento ao Mesmo ou ao Semelhante. O écart seria o termo (sem termo) de uma distância – que não é distância por não existir um espaço em que se dê a-b – imediata inamestrável.
3 Referência a Emmanuel Levinas feita por Maurice Blanchot em L’Écriture du désastre, p. 133.
4 Cf. La communauté inavouable, p. 25.
5 Cf. L’Écriture du désastre, p.157.
6 Artigo que pertence ao cotejamento realizado por Eric Hoppenot, em Écrits politiques.
7 Nietzsche citado por Blanchot em L’Écriture du désastre, p. 188.
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