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Literatura e Autoritarismo
Experiência e Esclarecimento
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 17 

ASSOMBRAÇÕES DO COTIDIANO1

Alexandre M. Botton2
Cecília de Campos França3
Raimundo N. C. França4
Resumo: Este artigo se traduz na tentativa de observar e compreender as relações intrínsecas entre uma narrativa fantástica popular – a história do “Cumedô de língua” ,retirada do livro Vozes do assentamento Antônio Conselheiro - em contraste com histórias sobre o processo de ocupação e consolidação do assentamento, relatadas por seus protagonistas. Neste meio, procuramos ressaltar a intercessão entre o cotidiano familiar e o elemento fantástico, presente na narrativa abordada. Para compreender o ponto de contato entre ambas, enfocaremos os aspectos míticos que, segundo podemos compreender, compõe, tanto o ambiente cotidiano, quanto a atmosfera de estranhamento que subsiste no fantástico popular. Tal leitura terá com base teórica, as idéias de Freud sobre o familiar e o não-familiar, delineadas no ensaio “O Estranho” (Unheimlich), bem como as observações de Adorno e Horkheimer sobre a instituição familiar.
Palavras-chave: Teoria crítica; Estranho; Familia.
Abstract: This article aims to observe and understand the intrinsic relation between the popular fantastic narrative - the story of "Cumedô de língua" – which is the book Vozes do assentamento Antônio Conselheiro - in contrast to stories about the process of consolidating the occupation and settlement in Antônio Conselheiro settlement, reported by its protagonists. Having that in mind, we try to emphasize the intersection between the family quotidian and the fantastic element present in this narrative. In order to understand the point of contact between these two elements, we focus on the mythical aspects that we understand as being part of the daily environment as well as of the atmosphere of strangeness that remains in the popular fantastic. Such reading has as theoretical basis, Freud's ideas about the familiar and unfamiliar, outlined in his essay "The Stranger" (Unheimlich), and the views of Adorno and Horkheimer on the family.
Keywords: critical theory; strange; family; quotidian.

1. Relatos e causos
O amálgama, muitas vezes sutil, de fatores que se mesclam para compor a identidade dos camponeses do assentamento Antonio Conselheiro, certamente está latente nos relatos levantados pela pesquisa que compilou a história que iremos analisar5. O livro, Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro, é composto por relatos de camponeses residentes no referido assentamento e está articulado em quatro partes: sendo as duas primeiras partes compostas por relatos sobre o processo de ocupação e construção do assentamento; a terceira, e maior parte, por “causos” geralmente ligados a fantásticas histórias de assombração e a quarta parte por breves comentários produzidos pelos pesquisadores.
A intenção de manter intacto não apenas o conteúdo das narrativas, mas, principalmente, sua forma, soa como insistência em não adulterar o que foi dito. A importância da fidelidade à narrativa oral é delineada desde o ponto de vista assumido pelos pesquisadores na apresentação do livro, ao tratá-lo como “uma obra de memórias” (VILALVA, 2009, 16). Assim, a ênfase na simples transcrição dos relatos visa a postular “como ponto de partida e ponto de chegada a voz do assentado, fazendo-se matéria e memória nostálgica, desencantada, triste e sofrida” (VILALVA, 2009, 16). Os fatos que envolvem a vida do assentado, a luta pela terra e a permanência nela, são o conteúdo das histórias narradas.
Contudo, aventaremos a possibilidade de intitular como mítico o elo que une intimamente a narração fática e a ficção, o acontecimento social e a subjetividade de seus personagens e, sobretudo, o cotidiano e o extraordinário. O que subjaz neste meio é a presença de elementos estáticos, indicativos de um modo de vida que, tanto na lógica do cotidiano quanto na lógica dos causos, deveria se repetir ao infinito. Assim, tenderemos a tratar como mito tudo o que é estabelecido desde sempre, como verdadeiro. Todavia, não desejaremos fazer uma análise da coletânea em sua totalidade, mas exploraremos, a partir de um de seus causos mais perturbadores, a imbricação entre fantástico e cotidiano sob a perspectiva do mito.
Porém, quanto à coletânea em si, apenas gostaríamos de frisar, como virtude da publicação, a manutenção dos traços de oralidade que compõe as narrativas; os quais nos permitem perceber a persistência de elementos que traspassam o ambiente factual e ficcional das narrativas, ressaltando a mediação entre o fantástico e o cotidiano.
Enfim, A coesão entre os causos e a vida dos camponeses será inferida de momentos intrínsecos às narrativas, mais especificamente em sua forma. Mais do que nas histórias específicas sobre o movimento, ou seja, sobre o processo de ocupação da terra, consolidação do acampamento e conquista da propriedade; nos contos populares, composto de breves causos retirados do cotidiano dos camponeses, encontraremos componentes míticos indispensáveis às vivências que mantém a unidade do grupo.

2. Narrativas Factuais
Antes de abarcar as narrativas fantásticas, especialmente o causo do “Cumedô de língua”, convém ressaltar um aspecto, bastante obvio por certo, mas necessário à compreensão da formação do assentamento: o anseio pela melhora das condições de sobrevivência. Sobretudo, uma vida melhor, almejada durante a luta pela conquista da terra, é representada pela tranqüilidade rotineira, digna de quem alcançou enfim seu lugar de repouso: “A vida hoje é tranqüila; os filhos ta tudo casado. A gente vive uma vida tranqüila e sossegada, um lugar muito calmo, e bom de se viver” (VILALVA, 2009, 49). Em outros momentos, é destacada a bonança dos alimentos que a terra pôde gerar como dádiva da conquista: “Graças a Deus tudo que nós planta dá. Vivi da colheita, e agora o tomate tá sendo de ajuda. Nós ganha um dinheirinho. Que aqui mesmo nós só compra café, açúcar, que nós num sabe fazê. Nós num compra óleo, nós cria nossos porquinho” (VILALVA, 2009, 49). Então, soma-se ao ideal da construção de uma vida melhor, o resgate e a manutenção do modo de vida fundado pelo modelo religioso e familiar dos antepassados. Como afirmam seus protagonistas, um dos fatores que mais impulsionou a busca pela terra foi justamente
A grande necessidade de dar continuidade naquilo que a gente já vinha fazendo antes; desde criança, ensinado por nossos pais, então, surgiu a grande necessidade de que a gente conduzisse a igreja e desse continuidade ao trabalho de onde a gente se informou para essa grande necessidade de a gente encontrar um pedaço de terra, onde a gente pudesse criar a família. (VILALVA, 2009, 41).
Por vezes, a fartura alimentar, somada ao dever da continuidade, remete à dívida do homem em relação ao criador; débito saldado com a promessa da manutenção dos laços com o modo de vida camponês: “Pra mim, a terra significa tudo. Eu disse pra muita gente aqui: aqui vai ficar uma herança, enquanto Deus me der vida, eu quero viver dentro desse sítio, onde meus filhos criaram, cresceram, estudaram.” (VILALVA, 51, 2009).
Ocorre neste enlace o desdobramento de modo de vida assumido como ideal à ligação entre o homem e a terra. O cumprimento deste modo de vida sobrevém de maneira fixa; delineado como o resgate do tradicional cultivo da terra, herdado dos antepassados, em contraposição ao modo de produção capitalista.
Eu sempre gostei de trabalhá na terra e vivê da terra. Eu sempre pensei que o dia em que eu pegasse um pedaço de terra que desse pra mim sobrevivê, eu num saia daqui pra enriquecê fazendeiro. Porque eu num tenho profissão. A minha única profissão é trabalhá na terra.(VILALVA, 2009, 50).
Até aqui não parece haver nenhum elemento discutível no ideal de luta pela terra, ao contrário, o reconhecimento da justeza da luta pela terra é incontestável; mesmo porque é um direito reconhecido e efetivado pelo estado ao conceder, na forma do assentamento, a terra reivindicada. Há, contudo, algo incômodo quando se pensa o movimento em busca de melhores condições de vida e, ao mesmo tempo, a eterna repetição do mesmo modelo familiar e comunitário. Não se trata, necessariamente, de algum tipo de contradição, mas de certo estranhamento, ao qual pretendemos abordar e esclarecer, na medida do possível, a partir da leitura do “Cumedô de língua”.

3. Histórias de Assombrações
Diferentemente das histórias sobre o processo de ocupação e conquista da terra, da construção da comunidade e do loteamento da terra, os causos de assombração valem pela singularidade da narrativa em relação ao repetitivo curso do cotidiano; apesar de que, em último caso, tenhamos de concordar com Adorno, no sentido de que “O discurso racional e comunicativo do narrador, com sua lógica que subsume e torna semelhante tudo o que é relatado, agarra-se ao mito em busca de algo concreto e ainda distinto da ordem niveladora do sistema conceitual” (ADORNO, 2003, 48). Poderíamos pressupor, a princípio, que a singularidade do fato narrado está ligada ao estranhamento frente à regularidade da vida, sobretudo porque a prescrição inquestionável do estatuto moral do grupo logo se impõe à singularidade do evento narrado, forçando a idéia de um retorno à continuidade da vida “normal”. O sobrenatural, presente nos causos na forma de assombrações, seria, então, o resultado de algo que causa transtorno à ordem “natural” das coisas, isto é, que se opõe ao modo de vida petrificado e que, no entanto, sob a subsunção provocada pela narrativa, com um golpe de força faz tudo voltar ao seu devido lugar.
Se levarmos em conta os aspectos acima expostos, a história do cumedô de língua é das mais significativas. Portanto, leia-se o causo tal como consta no livro.
Eu sempre ouvia dizer que em Minas tinha um cumedô de língua. Eu, por exemplo, tinha muito medo à noite, mas eu num acreditava que aquilo podia ser verdade. [...].
Aí, a gente tinha ouvido falar, assim, que alguém já tinha visto esse cara e que esse cara tava pagando aquele preço, arrancar a língua da vaca pelo falso que ele levantou a mãe dele e que isso sirva pros meninos, jovem, os netos, né?
Aí, é assim: o pai trabalhava fora e, ai, diz que o pai gostava muito de língua de vaca. E esse é o início do caso. Aí, esse senhor que gostava muito de língua de vaca, e, aí, ele comprou uma língua de vaca e pediu pra mulher fazer; e foi pro mato trabalhar e falou:
- ó mulher quando a língua de vaca tiver pronta, você manda na roça pra mim; manda comida na roça.
Aí, diz que o menino muito esperto, né, que, enquanto a mãe estava aprontando a língua de vaca, ele pegou um cavalo e começou a ródia em volta da casa, no cavalo; e a mãe fazendo a comida. Aí, ela colocou na marmita e mandou ele levar pro pai. Na estrada, ao invés dele levar a comida pro pai, ele comeu a língua de vaca que estava na marmita. Aí quando ele chegou lá na roça o pai disse:
- Uai! Mau filho, cadê a língua de vaca que eu comprei pra sua mãe fazer a comida pra nós?
Ele falou assim:
- Ah? Pai, chegou uns quatro homens la em casa, minha mãe sentou e comeu a língua de vaca com os homens e mandou o arroz puro pro sinhô.
O velho azedo de estar na roça até o meio dia, chegou em casa, pegou a mãe e meteu no pau. Aí, a mulher antes de morrer falou assim:
-Eu tenho fé em Deus que vou morrer, mas você vai virá um cumedô de língua de vaca e a hora que acabe a língua de vaca, você vai voltar a comer língua de gente.
Aí logo que saiu esse comentário; não sei se era os pais que fazia medo, mas isso aconteceu no nosso sítio. (VILALVA, 2009, 63-64).
A presença do elemento fantástico no “Cumedô de língua”, sobretudo a partir da trágica morte (assasinato) da mãe, é um convite à consultar o ensaio de Freud acerca do estranho (unheimlich). No referido texto, Freud caracteriza como estranho o aspecto não familiar característico das histórias de horror, que, segundo a tese por ele defendida, origina-se em seu oposto, isto é, o familiar (heimlich). Freud rejeita a suposição de que o estranho seja correlato a tudo o que é desconhecido e novo, uma vez que nem todo desconhecido é assustador. Ele pretende indicar que há algo mais na relação entre ambos, e é na investigação das afinidades entre o estranho e o familiar (Unemelich e Emelich) que se concentra a análise freudiana. Assim, ele aproxima o estranho e o familiar, até constatar que “unheimlich é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (FREUD, 1995, 238). Grosso modo, o estranho (unheimelich) é uma subespécie do familiar (heimelich) na medida em que representa aquilo que é ocultado dentro do familiar.
Um esquema familiar, de papéis fixos, permeia o horizonte dos causos do livro, desde o Cumedô de língua até as mais variadas histórias de assombração. Sobretudo em narrativas de cunho moral – como na “História do filho e da mãe” (VILALVA, 2009,105) na qual esta se transforma em mula para pregar uma lição naquele – prevalece um esquema familiar constantemente ameaçado pelo não cumprimento dos papeis pré estabelecidos. No caso do “Cumedô de língua”, poderíamos denominar como familiar, a harmonia entre os papeis que constituem o cotidiano da família, e como estranha, a violência que daí nasce. Evidentemente quando a manutenção da condição harmônica da família exige que estes papeis sejam incondicionalmente cumpridos, como se fossem uma condição de existência à qual o indivíduo deve enfim se adaptar. O não familiar, o estranho, é aquilo que, a partir de alguma fissura da harmonia, flagra a violenta constituição do que deveria parecer natural. A autoridade implícita, cotidianamente aprumada pela resignação de cada membro à sua função, explode em atos de violência e na representação de assombrações. O “falso” levantado contra a mãe desencadeou uma tragédia unicamente porque feriu o cerne da estrutura.

4. O cotidiano e a assombração
Referindo-se ao papel da instituição familiar na formação do indivíduo, Horkheimer (1990, 213) nos lembra que, além do controle racionalizado que a família e a as demais instituições impõem ao indivíduo para adaptá-lo ao modo de vida por ela preconizado, existem processos não controlados, tais como os exemplos cotidianos e o simples cumprimento dos papeis fundamentais à naturalização dos modelos de família e de trabalho. Cria-se, a partir destes processos, a imagem de uma identificação umbilical e imediata entre ser humano e instituição, que emite a aparência de uma simbiose acima de qualquer suspeita. Contudo, se ampliarmos um pouco o foco de nossas observações e, principalmente, se incluirmos as presentes narrativas no contexto descrito pelos próprios protagonistas, notaremos que: trabalho, família e religião são partes de um todo, sob o qual a luta pela subsistência está intimamente ligada à manutenção de um modo de vida orientado pela fixidez dos papeis pré definidos pelos costumes. Não há, portanto, dissociação entre modo de vida, trabalho e manutenção das instituições; de forma que, tudo o que ameaça a instituição é percebido também como nocivo à sobrevivência.
Segundo este modelo de instituição, “o pai de família é o procurador da lei, o dono incontrolado do poder, o provedor, o cura de almas e o sacerdote da lei” (HORKHEIMER, 1990: 215). Porém, é necessário notar que a autoridade do pai é legitimada muito mais pela fixidez das relações familiares, restabelecida em cada novo núcleo familiar, do que na simples obediência. Ou seja, este modelo de autoridade está longe de ser unilateral. Para seu bom funcionamento, ele não requer somente a força e autoridade paterna. O poder concentrado na figura do pai - a prima vista uma espécie de autoridade absoluta - é, na verdade, constituído pelo modo de formação e reprodução da vida familiar como um todo, nos seus mínimos detalhes e excepcionalmente nos vínculos entre família e comunidade. Tal como ensina a Igreja:
Que a paz doméstica tem relação com a felicidade da coletividade, ou seja, que a concórdia organizada dos membros da família no mandar e no obedecer é proporcional à harmonia organizada dos cidadãos no mandar e no obedecer. É por isso que o pai de família tem que tirar da lei da comunidade os preceitos pelos quais deve dirigir sua casa de modo a adaptar-se a paz da comunidade. (Apud, HORKHEIMER, 1990, 214)
As palavras de Agostinho sintetizam, de maneira bastante clara, os laços que constituem as relações de poder entre família e comunidade na produção de um modelo familiar fixo. Se é verdade que o pai é o responsável pelas leis familiares, também é fato que a disposição para a obediência contribui para o imperativo de que a paz deriva da “harmonia” entre o mandar e o obedecer. No final das contas, a harmonia parece ser a própria razão daquela autoridade, e cada membro da constituição familiar e comunitária é responsável por sua manutenção. Essa harmonia é vista sempre como a própria natureza das relações e encobre a violência com que a estrutura é reproduzida. Assim, atentemos para o fato de que, mesmo no esquema fixo, não é o caráter de violência que primeiro transparece nas relações familiares, mas a harmonia; de forma que, aquela só se mostrará de fato quando falharem as concordâncias entre o mandar e o obedecer.
Na explosão da violência que se forma sob o escudo da harmonia familiar, podemos aventar algo sobre a relação intrínseca entre o fantástico e o cotidiano. Para tanto, ressaltaremos a coincidência do modelo familiar presente no conto – assumido como natural em todas as narrativas do livro – e o modelo familiar vivenciado pelos narradores. Suas características gerais são muito semelhantes àquelas descritas por Agostinho e Horkheimer. Tal coincidência é bastante clara, por exemplo, na história imediatamente posterior ao “Cumedô de língua”, contada pela mesma narradora. Ela própria é a protagonista do causo, a qual recebe a visita de uma “velha esmolambada”(VILALVA, 2009, 66), que lhe aponta o dedo e diz:“ Essa doninha xingou muito essa noite e é por isso que eu tô aqui” (VILALVA, 2009, 66). A aparição fantasmagórica da velha com o dedo em riste é logo percebida como lição pelo fato da esposa ter, no dia anterior, xingado o marido e exigido que ele executasse uma tarefa doméstica, naturalmente, de obrigação dela.
No “cumedô de língua”, as implicações morais condenatórias à atitude do filho tendem a justificar o injustificável: a morte violenta. A figura do pai, tal qual a da mãe, são pintadas com as cores da justeza, desde que não infrinjam seus papeis. Ele “trabalha fora” e gosta de comer língua de vaca. Seu comportamento violento não é abordado pelo narrador até o incidente fatal; e quando inevitável, a violência é racionalizada: a honra fora ferida pela infidelidade - e a fidelidade vale muito, até mais do que a vida - tanto que a expiação do assassinato recai sobre o filho, pois o pai possui o álibi da honra. A mãe não possui voz alguma, até o momento fatal em que roga culpa e castigo ao filho, tendo reconhecido, portanto, a prerrogativa de que seria justo pagar com a vida a infidelidade. Sua voz é, na verdade, o laço familiar exposto, o elo entre o terror da morte violenta e a resignação acachapante que a mantinha protegida.
Porém, é necessário notar que, desde há muito tempo – ao menos desde que existem os contos de fada – a infidelidade é um motivo que desencadeia e justifica as maiores atrocidades.
Seja Barba Azul ou o feiticeiro no Pássaro Estranho, fica claro que quando o homem entrega à mulher a chave de um quarto, e ao mesmo tempo lhe dá instruções para não entrar nele, está testando a fidelidade dela às suas ordens ou, em um sentido mais lato, a ele próprio. (BETTELHEIN, 1980, 339)
No caso do “cumedô de língua” não foi exatamente o teste infligido pelo marido que flagrou a mulher em adultério; mas a perspectiva do adultério serviu, e foi aceita pela lógica do causo, como justificativa para o assassinato. Do mesmo modo, por ter permanecido fiel até o instante derradeiro - não por ser objeto de violência- a mãe é considerada inocente, e de sua voz - a voz da resignação - emana a sentença final: “você vai virar um cumedô de língua” (VILALVA, 2009, 64).
É assustador notar que, na lógica do causo, a mulher foi considerada vitima do filho, pois ele “estava pagando aquele preço, arrancar a língua da vaca, pelo falso que ele levantou à mãe dele” ( VILALVA, 2009, 63); mas em nenhum momento, da cruel violência do marido que “azedo de estar na roça até o meio-dia, chegou em casa, pegou a mãe e meteu no pau” ( VILALVA, 2009, 64). Essa constatação nos indica que, na verdade, a lógica do narrador é a mesma que move o causo: e é esta lógica que chamamos de elemento mítico. Portanto, mito é o elo que une o cotidiano familiar ao conto fantástico, preservado no ideal da comunidade desde que nela se cristalizem padrões de comportamento. Assim, “o tempo do mito despreza o encadeamento dos fatos – a possibilidade humana de agir portanto – bastando-se com impor-lhes um padrão” (SCHWARZ, 1981: 63). O Cumedô de Lingua é, no início, uma assombração da qual o narrador “sempre ouviu dizer” e da qual “tinha medo muito medo à noite” (VILALVA, 2009, 63), porém, logo ficamos sabendo o que levou seu protagonista a permanecer, para sempre, daquela forma: ele estava pagando o preço “pelo falso que ele levantou a mãe dele” (VILALVA, 2009, 63). Essa observação reitera o caráter mítico do castigo como a permanência que se impõe a quem, mesmo acidentalmente, rompe com o estabelecido.
Contudo, na vivência cotidiana, “a história é transformada em imagem pela precedência ontológica do mito; este, por sua vez, não pode revelar a nós homens seu interior, mas apenas a sua face externa” (SCHWARZ, 1981: 66). No caso do Cumedô de Lingua, a face externa do mito é representada pela a naturalização de um modelo familiar, estatuído como o único legítimo. Contudo, no final do conto, ao dizer, “não sei se era os pais que fazia medo ” (VILALVA, 2009, 64) o narrador revela o que no fundo todos sabem, ou seja, que a finalidade do causo é somente aquela anunciada no início da história: “que isso sirva pros meninos, jovem, os netos, né?” (VILALVA, 2009, 63).
Tal como o estranho freudiano, a história de assombração representa aquela parte oculta do mito, a face interna que eclode quando não pode mais ser mantida sob o escudo da harmonia, ou seja, quando explode a violência.
Tudo o que há de nebuloso e obscuro, sob cujos fundamentos de ergue a instituição do matrimônio, o bárbaro poder da disposição do homem sobre a propriedade e o trabalho da mulher, a não menos bárbara repressão sexual, que obriga tendencialmente o homem a assumir por toda a vida a responsabilidade por aquela com a qual dormir propiciava-lhe outrora prazer – tudo isso arrasta-se dos porões e do subsolo para a luz do dia quando a casa é demolida. (ADORNO, 1993, 25).
Que a luta pela terra não tenha modificado o cotidiano; que as relações conjugais e comunitárias se mantenham conservadoras, não obstante a perspectiva de uma vida nova, pode parecer paradoxal. Mas o paradoxo se desfaz se pensarmos no ideal da relação umbilical entre homem e terra, tal como apresentamos na primeira parte deste trabalho. Notaremos neste ideal a mesma configuração mítica formadora do modelo familiar do “Cumedô de língua”, pois assim como a mulher pode ser punida se não servir ao marido, o homem se sente testado em sua fidelidade à missão de ser lavrador: “Aqui uma oportunidade que o governo me deu prá me testa se eu sou mesmo lavradô e trabalhadô da terra” (VILALVA, 2009, 51). Do mesmo modo, a infidelidade de quem vendeu a terra é censurada:
E muitas pessoas que não deram o devido valor a terra, venderam e foram embora, hoje tão na pior (choro). Famílias que a gente considerava famílias de bem, achavam que não era suficiente e que não tava bom, venderam, e hoje tão em ponta de rua, passando necessidade. (VILALVA, 2009, 49)
A evidente insistência em afirmar que a condição de miséria dos que venderam a terra é conseqüência de não terem “dado valor” a vida que levavam, não deixa de ser uma reprimenda ao fato de que a busca de uma vida melhor poderia modificar os perímetros do cotidiano. O choro – indício de auto-piedade - da narradora, soa como indicativo de que a resignação não é tão tranqüila quanto parece, mesmo que alguns protagonistas insistam em dizer que “Deus tem abençoado grandemente a nossa vida” (VILALVA, 2009,49). A reprovação dos que não souberam se contentar com o que lhes foi reservado é do mesmo teor mítico que transcorre nos causos: seu motivo principal é a conservação do modo de vida estabelecido.
Entretanto, a consciência de que o que é dado como eterno foi, na verdade, historicamente constituído poderia abalar a harmonia familiar e, no entanto, abalaria muito mais a carga opressora do mito. Não se trata de reprovar a vida familiar, mas, ao contrario, pensar modelos em que a idéia família e comunidade excedam uma estrutura fixa e somente um padrão verdadeiro. Poderíamos pensar, por exemplo, que
um casamento decente seria somente aquele em que ambos possuíssem uma vida própria, independente, sem a fusão de uma comunidade que deriva de interesses imposta pela necessidade econômica, e no qual, em compensação, assumissem livremente a responsabilidade um pelo outro (ADORNO, 1993, 24).
Todavia, o modelo proposto por Adorno no fazer pensar que o desejo de uma vida melhor não se limita à concretização da conquista da terra, mas vai muito além. E se não há nenhuma mudança no modelo de vida familiar e comunitária, do ponto de vista da situação do indivíduo em relação à instituição; a vida nova, almejada pelo movimento, pode ser apenas vinho novo em barris velhos.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor. Minima Moralia. Trad. Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Editora Ática, 1993.
________________. Sobre a ingenuidade épica. In. Notas de literatura. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: editora 34, 2003.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Tradução: Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
FREUD, Sigmund. O “Estranho” . In. Edição Standard brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Pag. 235 – 271.
HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica. Tomo I. Tradução de Hilde Cohn, São Paulo: Pesrspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1990.
SCHWARZ, Roberto. A sereia e o desconfiado. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
VILALVA, Valnice Matos (org). Vozes do assentamento Antônio conselheiro. Tangará da Serra: Sanches, 2009.


1 O presente texto é resultado parcial da execução do projeto de pesquisa MIGRAÇÃO, TRABALHO E POLÍTICA DE IDENTIDADE NO MÉDIO-NORTE MATOGROSSENSE, financiado com recursos da FAPEMAT.
2 Professor de Filosofia na UNEMAT – Campus de Tangará da Serra, doutorando em Teoria e História Literária pela UNICAMP e bolsista do CNPq. Email: alexbotton@gmail.com
3 Professora de Psicologia da Educação no campus e Tangará da Serra, profa. do Mestrado em Educação no campus de Cáceres, formada em Psicologia e Pedagogia, mestrado e doutorado em Educação pela PUC/SP. E-mail: cecilfran@yahoo.com.br
4 Professor de Sociologia UNEMAT – campus de Tangará da Serra e Doutorando em Ciências sociais na UFRN. Email: raimundofranca@gmail.com
5 “Cumedô de língua” In. VILALVA, Valnice Matos (org). Vozes do assentamento Antônio conselheiro. Tangará da Serra: Sanches, 2009.
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