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Literatura e Autoritarismo
Experiência e Esclarecimento
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 17 

LAVOURA ARCAICA E A LITERATURA BRASILEIRA DOS ANOS 1970: UMA NOVA PERSPECTIVA

Rosicley Andrade Coimbra1
Resumo: Este artigo propõe discutir alguns pontos do romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, lançado em 1975, partindo da hipótese de que o mesmo traz configurado literariamente em suas páginas o esboço de um projeto literário de seu autor. E a partir disso procuraremos traçar o perfil de um escritor-intelectual, ou seja, aquele que procura agir na esfera pública por meio de uma ação estritamente literária. Sob esse aspecto, Lavoura arcaica traz em suas entrelinhas não só uma crítica à própria literatura da época, mas também ao status quo político. Isso se dá por duas vias: uma, na qual o trabalho estético é a referência e outra, presente na postura do narrador-personagem André, indivíduo inquieto e questionador da autoridade paterna. Dessa forma, podemos ver uma ação ser iniciada na esfera privada, lugar da família, extrapolando as fronteiras desta até atingir a esfera pública, local do discurso.
Palavras-chave: Lavoura arcaica; Intelectual; Crítica e engajamento.
Abstract: This article proposes to discuss some points of novel Lavoura arcaica by Raduan Nassar, published in 1975, focusing the hypothesis that it brings literary configured in its pages an sketch of a literary project of its author. So we intent to draw the profile of a writer intellectual trying to act in public sphere through a literary action. On this point of view Lavoura arcaica brings in between lines a critic of the literature of its time and the politic status quo too. This critic uses two ways: first, through an esthetic work and other, present in state of narrator-character André, an inquiet person questioning the paternal authority. Through this way we can see an action begin in private sphere, a familiar place, extrapolating its borders reaching the public sphere, the discourse place.
Keywords: Lavoura arcaica; Intellectual; Critic and engagement.


1. Introdução
Desde que fora publicado, em 1975, Lavoura arcaica (LA), romance de estréia de Raduan Nassar, tem provocado no mundo acadêmico uma série de indagações acerca de seu lugar na literatura brasileira contemporânea. Como é sabido, nessa época o Brasil ainda se encontrava em pleno Regime Militar e ações como a censura e a repressão foram fatores determinantes para os rumos da nova narrativa brasileira. Grosso modo, pode-se dizer que havia uma espécie de polarização no campo das letras: de um lado, os engajados na luta contra o autoritarismo do novo regime, e do outro, aqueles que preferiam uma luta mais silenciosa, procurando preservar-se de um confronto direto com o Estado.
A literatura engajada procurava denunciar as incongruências do regime por meio de uma estratégia que unia à subjetividade da literatura a objetividade do jornalismo. Dessa união surge o chamado romance-reportagem. Em contra face disso havia aqueles que não se mostravam tão explícito em suas críticas e procuravam meios mais silenciosos como forma de resistência e crítica. É claro que essas afirmações são demasiado genéricas para nos fornecer uma medida exata, ou aproximada, da complexidade política e literária do Brasil pós-64. Mas as usaremos como ponto de partida para pensar LA como um romance comprometido com seu contexto.
Apesar de trazer uma temática avessa às da época, o trabalho de Nassar evidencia alguns pontos que nos levam a observá-lo sob ângulo diverso daquele que a crítica costuma fazer. Além de seu trabalho “experimental” com a linguagem, de apresentar traços memorialistas, alguns matizes envolvendo a questão cultural, além de uma hibridização dos próprios gêneros literários, pode-se dizer que LA traz algo a mais em suas linhas, ou melhor, em suas entrelinhas.
Acreditamos que o trabalho com a linguagem fazia parte do próprio projeto literário do escritor Raduan Nassar. Um projeto que ia muito além disso. Por meio da retomada de temas míticos, o autor procura pôr em xeque valores antes inquestionáveis: a tradição patriarcal dentro de um país que se cria modernizado. Dessa forma, o lócus desta espécie de crítica aos costumes, iniciada na esfera privada, correspondendo aos domínios da família, se expande, atingindo a esfera pública, lugar da política e do discurso. Assim, a partir do momento em que questionamentos oriundos do mundo familiar extrapolam as fronteiras da propriedade privada, tornando-se assim públicos e dotados de aparência, podemos dizer que sua crítica também se dilata e passa a concernir ao Estado.
Sob essa perspectiva, intentamos destacar alguns pontos sobre um (possível) engajamento político de Raduan Nassar, bem como esboçar uma hipótese para uma eventual abordagem de LA enquanto romance inteiramente comprometido com questões de seu tempo. Por meio de uma temática que retoma alguns arquétipos – como o do filho pródigo – o autor consegue configurar uma trama com traços que nos levam a perceber a existência de uma crítica não só ao status quo da política, mas também à própria literatura, que se tornara por demais superficial para tratar de assuntos relacionados ao contexto sócio-histórico.

2. O contexto político e literário de Lavoura arcaica
Podemos dizer que o ano de 1964 é decisivo para os rumos da história do Brasil, pois é quando se dá o Golpe Militar. Como consequência direta temos a restrição da liberdade de imprensa, assim como outras arbitrariedades. Em 1968 há a promulgação do Ato Institucional nº. 5, o AI-5 como ficou conhecido, que aumenta ainda mais o poder autocrático do Estado por meio da militarização do aparelho administrativo. Por esse meio, todas as produções culturais passaram a ter o crivo da censura. Nesses termos, nada era levado a público sem o aval dos censores, que tanto podiam restringir determinados trechos de uma dada obra quanto proibi-la em definitivo. Dessa forma, conforme aponta Tânia Pellegrini, toda e qualquer produção que conseguisse liberação, “já conteria, inscrita em sua forma, elementos que visavam burlar a percepção do censor, tais como alusões, elipses, signos e alegorias, numa espécie de código cifrado que só aos iniciados seria dado deslindar” (PELLEGRINI, 2008, p.39). Em certa medida, esse primeiro acontecimento marca uma ruptura com o passado modernista, dando origem a um novo período na literatura brasileira, que por seus aspectos poderia ser chamado de pós-modernista, segundo declaração de Silviano Santiago (SANTIAGO, 1985, p.12).
Mas há ainda uma outra faceta da repressão. A política militarista impôs um toque de recolher a seus cidadãos, estendido, sobretudo a pessoa do escritor, só que com maior violência, às vezes física, às vezes moral. Conforme afirmação de Silviano Santiago, a censura e a repressão não afetaram somente em termos quantitativos a produção cultural brasileira, mas também, e principalmente, a figura do homem-artista e o artista-família, que sofreram moralmente as injustiças da censura, que, juntamente com a repressão que, em alguns casos, conseguiam “tornar um homem são doente, um ser psicologicamente sadio em uma mente paranóica” (SANTIAGO, 1982, p.49-50). Assim, o que se presenciou foi a instalação de um verdadeiro “império da censura” ou “do medo”. Situação esta que reduziu a pessoa a um “estado de pânico e paralisia” tornando-a “literalmente impossibilitada de qualquer ação no campo da cultura” (SÜSSEKIND, 1985, p.16-7).
Outro ponto determinante nos rumos da literatura brasileira, talvez não tão destrutivo, mas com consequência não mensurável, foi a criação da “Política Nacional de Cultura”, em 1975, gerando assim, o chamado boom2 literário. Através disso o governo passou a ser uma espécie de mecenas, interessado em “incentivar” a maior parte das produções culturais: livros, cinema, rádio e televisão passaram a ser de interesse do Estado. Contudo, em meio a tantos investimentos, havia outras intenções, subjacentes: o controle sobre a produção intelectual, visando mantê-la sob seus olhares vigilantes. Por este meio, a censura institucionalizada objetivava coibir aqueles que se opunham ao projeto governamental, que por sua vez se mostrava como totalmente contraditório, pois, “ao mesmo tempo em que proibia com a censura, incentivava com subvenções, reforçando a necessidade de organização em moldes empresariais, em que a profissionalização e o mercado são pontos cruciais” (PELLEGRINI, 2008, p.40).
Os dois pontos citados acima foram de suma importância para os rumos da literatura brasileira da década de 1970, mas não foram os únicos. Podemos considerá-los, guardadas as proporções, como divisores de águas dentro da tradição literária, uma vez que o mesmo período viu surgir novos escritores e obras dentro de um regime autoritário, abrindo caminho para que a produção literária adquirisse uma nova face, a do protesto. Tal conformação marcou também uma ruptura com o passado modernista, com a prosa de Graciliano Ramos, com seu romance regionalista, trazendo a crueza da vida sertaneja estampadas em suas páginas, denunciando o abandono do nordeste. Ou ainda, a prosa de Guimarães Rosa, que ao explorar a língua de forma exaustiva, conquistou um estilo em que o particular (o regional) adquiriu um valor universal, fugindo dos rótulos pitorescos.
A partir disso, a crítica traça dois caminhos dentro da produção literária desse período: de um lado um retorno do “realismo mágico” e do outro o surgimento de um realismo jornalístico. O primeiro está atrelado à própria condição da literatura latino-americana, que vivera alguns anos antes o seu boom, movimento iniciado com Jorge Luis Borges, dando notoriedade e destaque às demais produções sul americanas. O chamado “realismo mágico” procurava imprimir a um discurso metafórico, dentro do qual imperava uma lógica onírica, uma crítica mascarada a situações e fatos, que dificilmente estariam incólumes de serem censurados. Já o segundo caminho, apresentando uma espécie de notícia crua da vida real, procurava desficcionalizar o texto literário, aproximando-o de uma revelação, como se fosse uma reportagem. O então chamado “romance-reportagem” fazia duplo movimento dentro da literatura: ao mesmo tempo em que procurava atestar a veracidade dos fatos tratados, como se fosse uma notícia verídica, por outro lado, dava um tratamento mínimo no próprio texto em termos literários. Assim, o trabalho do romancista (e jornalista) girava em torno da notícia, ou da informação.
Mas, pergunta-se aqui, seriam somente essas as opções de se fazer literatura no Brasil dos anos de Golpe Militar As duas categorizações citadas acima dão conta de abranger a totalidade da produção literária da época Na verdade esses são questionamentos que se tornaram lugar-comum. De fato, houve quem procurasse outras opções estéticas, por meio de novas alternativas de fazer literatura. Como isso, passava-se ao largo de questões políticas, uma vez que a própria censura acabou se convertendo em carta marcada ou mais um personagem dentro da literatura brasileira, “talvez não tão poderoso quanto se imaginava”, segundo constatação de Flora Süssekind (SÜSSEKIND, 1985, p.12).
Esta espécie de terceira via também estava inserida nesse contexto, mas de maneira mais velada. A preocupação, pode-se dizer aqui, não estava na denúncia desvelada, mas no próprio papel que a literatura poderia desempenhar como meio de agir no plano ético. O romance-reportagem procurava informar sobre os males do autoritarismo. Por sua vez, o realismo mágico, com suas alegorias, procurava também denunciar as situações insólitas que aconteciam sob a égide da ordem. Já essa terceira via que apontamos buscava fazer uma crítica mais velada e direta, trazendo as discussões desde a esfera privada da família, tornando-as públicas e assim transformando-as em assunto de todos.
Assim, pensar LA nesse contexto é focalizá-la à luz dessa terceira via, na qual a crítica está nas entrelinhas do discurso do filho pródigo que questiona a autoridade do pai – e por extensão toda a tradição patriarcal.

3. Uma hipótese para uma investigação de Lavoura arcaica
Partindo do que fora exposto anteriormente, surge-nos algumas questões: a quem atribuir uma suposta paternidade literária de LA? Ou mesmo uma eventual filiação? No campo da literatura brasileira contemporânea, LA, em certa medida, ainda é um filho sem pai e um pai sem filhos. Mesmo com autores como Milton Hatoum apresentando afinidades temáticas, devido a cultura em comum com Raduan Nassar, a libanesa, ainda assim, o romance persiste em se manter sem parentesco literário definido. E isso pode, sem dúvida, ser considerado como um dos maiores méritos da obra.
Exigir uma paternidade literária de uma obra como LA é, em certa medida, dar-lhe uma camisa-de-força e exigir que o filho seja sempre a continuação do pai, ou melhor, que André seja uma continuidade do pai, o que deveras não é verdade. Querer categorizar LA é querer promover a repetição e cair num movimento espiralado, num retorno ao mundo mítico e acabado da epopeia, dentro do qual inexistem conflitos familiares. Mas LA é um romance e justamente por isso se porta como um gênero “problemático” (LUKÁCS, 2000, p.72), “inacabado” (BAKHTIN, 1990, p.397) ou mesmo “indefinido” (ROBERT, 2007, p.14), sendo aberto a tudo, inexistindo prescrições ou proibições que possam limitá-lo na escolha de um tema. Assim, o que há em LA, tanto na sua temática quanto na sua história, é dessemelhança e descontinuidade, ambas fortemente caracterizadas como uma brusca ruptura: é o filho não reconhecido, o “bastardo”, o “perdido”, a ovelha negra da família que se insurge contra a ordem e a razão ordenadora do pai. Dentro de seu enredo fica claro que não são os laços sanguíneos que garantiriam a continuidade do legado da família. Pelo contrário, seriam as semelhanças, por isso a violência, uma vez que há uma tentativa de se apagar as diferenças, por meio de uma desierarquização, de um abandono das individualidades, desembocando num nivelamento das personalidades. Dessa forma, a obra, dentro da tradição literária brasileira, não apresenta semelhanças temáticas – como se isso fosse o mais importante! –, daí sua estranheza ou estranhamento.
Ao fazer uma analogia entre família e estética, Flora Süssekind destaca que:
Filiação e paternidade definem-se em meio a um jogo familiar de semelhanças, onde do filho se exige que seja a atualização do semblante e das atitudes paternas. Filiação e paternidade definem-se numa unidade especular. Ao filho não cabe ser outro e sim a imagem refletida do pai. Quando são demasiadas as diferenças, quebra-se a possibilidade de reconhecimento mútuo, fratura-se o círculo familiar numa inquietante estranheza (SÜSSEKIND, 1984, p.21).
Semelhanças e não mais o simples parentesco: é o que definiria uma paternidade em LA. Pedro, o primogênito, é semelhante ao pai, pois carrega(rá) consigo os gestos e as palavras do patriarca, diferindo de André, que será a ovelha negra da família, a própria figura da desobediência, portanto, será também sua descontinuidade e ruptura. Uma unidade especular, espécie de face espelhada entre pai e filho, não pode ser mais encontrada no filho pródigo. André não pode ser considerado como feito “à imagem e semelhança do pai”. Pelo contrário, sua individualidade não o deixará ser uma pessoa como qualquer outra, portadora de uma persona, a máscara que o aparentaria ao pai. Conforme afirma a irmã Ana: “como vítimas da ordem, insisto em que não temos outra escolha, se quisermos escapar ao fogo deste conflito: forjarmos tranquilamente nossas máscaras, desenhando uma ponta de escárnio na borra rubra que faz a boca” (NASSAR, 1989, p.135, grifo nosso). Portanto, para ser aceito André teria que usar a máscara forjada pelo pai e que indicasse uma semelhança com este, apontando e definindo aí uma continuidade. Mas para distinguir-se, um pouco que seja do pai e da família, André deve inscrever em sua persona um riso de deboche, que sutilmente o diferenciaria dos demais. Assim, com um mínimo de sutileza (“uma ponta de escárnio”) ele próprio forja sua máscara, criando uma personalidade difusa daquela esperada pelo pai, tornando-se um estranho, um estrangeiro dentro do próprio lar: “Quero te entender, meu filho, mas já não entendo nada” (p.165), dirá o pai a certa altura. Esse buscará em André semelhanças consigo, mas não as encontrará, daí o desentendimento e a estranheza. “Ao olhar um filho e perceber nele um outro, um estranho, é com estranheza que se aprende a própria morte”, dirá Flora Süssekind (SÜSSEKIND, 1984, p.24). Entre André e o pai não há nenhum tipo de espelhamento, mas sim ruptura e descontinuidade, indicando que aquele galho da árvore familiar não frutificará. André representa assim o (des)aparecimento do pai.
Podemos complementar o que fora afirmado acima por meio de um resgate de uma outra fala de André. Quando se refere aos lugares à mesa, a discussão é envolvida na constituição do próprio clã, em sua árvore genealógica, substituída por André pela mesa das refeições e dos sermões e a disposição de seus membros:
Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika, e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da família (NASSAR, 1989, p.156-7).
Dois galhos de uma mesma árvore: ambos ligados pelos laços de sangue, mas separados pelas diferenças. Direito e esquerdo: destro e sinistro. O lado direito se mostra como uma continuação do pai, “um desenvolvimento espontâneo do tronco”. Ao passo que o lado esquerdo é associado ao sombrio, ao errado, configurando-se como uma verdadeira anomalia. Se Cristo está assentado à direita de Deus-Pai, e à esquerda, quem fica Os perdidos. André (um verdadeiro gauche), juntamente com a mãe, Ana e Lula, senta-se à esquerda, fazendo parte do galho mais fraco, anômalo. É o galho que pode quebrar a qualquer instante. E será André, ao questionar a autoridade paterna, quem começará por vergá-lo sob o peso de sua revolta, entrando em choque com a tradição familiar. Conforme afirma Flora Süssekind, é muito difícil que alguns dos ramos de uma árvore genealógica escape ao peso e à sombra dos demais. Tais galhos se prendem uns aos outros como elos que não podem se soltar. Do contrário, pode se desfazer toda a identidade familiar. Assim, quando não se repete o modelo paterno, “não é apenas para o filho que se volta a maldição, mas para toda a família cujas pretensões de continuidade ficam ameaçadas” (SÜSSEKIND, 1984, p.24). É aí que a postura de André desencadeia um processo que contamina a todos, causando assim a desagregação daquele mundo.
As dessemelhanças em LA podem ser justificadas pelos lugares à mesa, que estão na iminência de “romper com a continuidade da genealogia e com a identidade patriarcal”, indicando que naquele galho anômalo “não se seguirá mais nenhum broto, que pela árvore não circulará mais um sangue forte, mas uma seiva fraca, impotente” (SÜSSEKIND, 1984, p.25).
É no ponto da não-continuidade, da ruptura e do questionamento da autoridade paterna que LA se distancia dos romances de sua época. Mas, paradoxalmente, esse movimento termina por aproximá-lo ainda mais da realidade política. Encontraremos em Flora Süssekind palavras que justifiquem essa afirmação. Conforme diz a autora, os chamados romances de denúncia ainda estavam impregnados de “pieguice e conservadorismo” (SÜSSEKIND, 1984, p.185), e dificilmente questionavam o que queriam denunciar. E a autora vai além, ao afirmar que:
Se nem a autoridade paterna e os laços de família são postos em questão, quanto mais a autoridade de um pai tão forte quanto o governo militar. Se nem a “Bíblia” e os “livros volumosos” recebem tratamento crítico, quanto mais a obsessão pelos “efeitos realistas” característica da linguagem jornalística (SÜSSEKIND, 1984, p.185).
A figura paterna, e de igual modo os laços de família, permaneciam inalterados e inatingíveis. A crítica não era estendida a essa instituição: a cultura de obediência incontinenti ao pai e à tradição continuava a mesma. Podemos encontrar a face mais aguerrida da luta contra o Regime Militar na juventude com pretensões revolucionárias, que pregava um socialismo com um “governo de tipo popular-revolucionário” (ALMEIDA & WEIS, 1998, p.366). Mas, ironicamente, essa mesma juventude fazia parte de uma classe “burguesa”, a qual criticava e negava veementemente. E nos casos de maiores necessidades – prisões e perseguições –, a família ainda se constituía como um refúgio seguro: “Quando as organizações destruídas pela repressão saíam de cena, era à família que se recorria em busca de abrigo, dinheiro, providências para sair do país, além de afeto e solidariedade” (ALMEIDA & WEIS, 1998, p.408). Paradoxalmente, de um lado os revolucionários buscavam uma mea culpa pela origem pequeno-burguesa, mas, tão logo se vissem desabrigados de seus “ideais”, retornavam para casa.
O trabalho de denúncia, por meio da literatura, se mostrava tímido e temeroso, uma vez que não questionava a instituição familiar tampouco a figura patriarcal. A preocupação em ser incisivo na maioria das vezes tinha efeito reverso. Não havia ameaça nem ao pai de família nem ao papai-Estado. E, de acordo com Flora Süssekind, tudo continuaria do mesmo modo, “tudo no seu ‘devido’ lugar” (SÜSSEKIND, 1984, p.185), cada qual com seu lugar à mesa, com o pai sempre à cabeceira se responsabilizando pelo controle das “culpas e desejos do filho” ao mesmo tempo em que guardaria os valores familiares. Enquanto isso, o governo controlaria os rumos das informações referentes à sociedade brasileira (SÜSSEKIND, 1984, p.185). Assim, família e Estado trabalhavam juntas, de mãos dadas, e enquanto a primeira estivesse envolvida no controle de seus membros nada mudaria.
Por extensão, as representações literárias também traziam a figura da família e do pai em sua mais total completude e autoridade. É neste ponto que podemos pensar LA não como uma obra anacrônica ou avessa às temáticas de sua época. Ela diverge do que se cristalizou na crítica dessa época: a ideia de que toda produção literária deveria estar diretamente ligada às questões políticas, trazendo sempre a repressão e a censura como protagonistas ou coadjuvantes. Segundo esse pensamento, a questão política deveria vir estampada de forma explícita num texto literário. De certa maneira, LA recupera temas ligados à tradição familiar, mas ao invés de afirmar uma ideologia de cega obediência ao pai de família, o que se nota é exatamente o contrário. Pois é justamente essa autoridade que é posta em xeque pelo filho André, rompendo assim com uma ordem estabelecida que, é óbvio, era estendida para a esfera pública, para o papai-Estado.
A hipótese esboçada acima se aproxima de algumas ideias de Michel Foucault, principalmente quando o filósofo destaca o papel da família, junto ao estado, como vigilantes e disciplinadores. Foucault irá destacar a presença de “um olhar vigilante e dominador” (FOUCAULT, 1979, p.215), oriundo do Panopticon, criação de Jeremy Bentham, cuja função era manter as pessoas presas sob um controle rigoroso e meticuloso, invertendo o princípio das masmorras: ao invés de sombra, a luz e o olhar de um vigia que captam melhor o que o escuro, no fundo, protegia (FOUCAULT, 1979, p.210). Segundo Foucault, era um olhar que exigiria poucas despesas, uma vez que é apenas um olhar, “que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si mesmo”, gerando uma vigilância sobre e contra si mesmo (FOUCAULT, 1979, p.218). Era como se um grande olho observasse a todos. E tal poder de vigilância constante é estendido à família, que passa a ter “olhos apreensivos”, conforme dirá André, assim como controle sobre o corpo de seus membros. E é assim que o trabalho entra como um disciplinador, exercendo ainda outras duas funções: produtiva e simbólica (FOUCAULT, 1979, p.218). A função disciplinadora nos aproxima, sem dúvida alguma, das palavras do pai em LA, ditas logo após a conversa com André: “Você está enfermo, meu filho, uns poucos dias de trabalho ao lado de teus irmãos hão de quebrar o orgulho de tua palavra, te devolvendo a saúde de que você precisa” (p.161).
Dessa forma, em LA a família, sob o olhar vigilante do pai, mantém uma função que está próxima à do Estado. Trata-se do controle de seus membros. E é a figura do pai a exercer tal função. Seus discursos visam mantê-los sob constante luz, cegando-os com tamanha alvura. Mas André se furta às prescrições paterna e ousa questionar a postura do pai, fugindo de casa. Essa fuga, para longe das cercanias da casa, é a forma encontrada por ele para poder enfim falar com maior liberdade. E ainda, ao sair de casa, André cria um espaço privilegiado para o discurso. Se num primeiro momento consideramos o quarto de pensão como reduto da intimidade, com a chegada de Pedro, tal espaço se torna propício à ação, ao discurso. E será lá, de dentro do quarto que o filho pródigo demolirá o discurso paterno. Sob esse aspecto, a figura do pai pode ser dilatada e ganhar um contorno que lembra o próprio Estado.

4. Raduan Nassar e o projeto literário de um escritor-intelectual
Como traçar o perfil intelectual de alguém que se furta a condição de escritor? Negando à literatura a função de agente ativo na esfera pública? Pois é assim que podemos ver Raduan Nassar hoje: denegando a importância da literatura como agente produtivo e ativo dentro da sociedade. Sua posição atual é a de um pacato sitiante, criador de animais que, quando indagado acerca de sua posição literária presente, responde jocosamente: “[...] não há criação artística ou literária que valha uma criação de galinhas...” (NASSAR, 2008, p.94). Nessas duras e chistosas palavras percebe-se, de certa forma, um homem desiludido com a literatura. Mas o que o fez desistir assim da arte da criação literária?
Nas poucas entrevistas que concedeu Raduan Nassar confessa que realmente “tinha um projeto literário, que [...] não trocava por nada” (NASSAR, 2008, p.100). Projeto este que o levou a abandonar a faculdade de Direito e a vida universitária, mas que ao final se desvaneceu, não sobrando nada daquela antiga garra. Já em outro momento dirá que, na verdade seu “projeto era escrever, [e] não ia além disso”. E que se deu “conta de repente de que gostava de palavras, de que queria mexer com palavras. Não só com a casca delas, mas com a gema também. Achava que isso bastava” (NASSAR, 1996, p.24, grifo nosso). Para alguns essa afirmação de Nassar pode soar um pouco ingênua, mas ela dá a exata medida do que é “fazer literatura” ou o “fazer literário”: é mexer com palavras. Nesse sentido, “mexer” com palavras é trabalhar sobre aquilo que já se calcificou e se tornou aceito por todos. É brigar com a ideologia da palavra institucionalizada, buscando driblar seu autoritarismo.
Essa espécie de confissão de Nassar nos remete, de certa maneira, às palavras de Roland Barthes, ao afirmar que a língua é “fascista”, pois não impede de dizer, pelo contrário, ela obriga a dizer, sendo que para “mexer” com ela é somente por meio de uma “trapaça salutar”, constituindo-se esse o único meio de driblar esse autoritarismo. A essa trapaça Barthes chamou de literatura (BARTHES, 2007, p.14-6). Sob esse ponto de vista, podemos tomar os verbos “mexer” e “trapacear” como equivalentes do trabalho literário. O projeto de Raduan Nassar era trapacear a língua, ouvi-la fora de seu poder fascista, percebendo aí suas virtualidade e possibilidades, trabalhando com o signo: mexendo com sua casca (significante) e gema (significado).
Contudo, confessará o escritor logo em seguida, “a literatura perdeu certa ingenuidade [...], quando você lê um texto que não toca o coração, é que alguma coisa está indo pras cucuias” (NASSAR, 1996, p.28). Mas o que o levou a tirar essa conclusão – da perda de ingenuidade da literatura Uma primeira hipótese pode ser aventada com base em outra afirmação do autor: “Literatura é coisa muito séria. Infelizmente são poucos os jovens que se atrevem a isso” (NASSAR, 1996, p.32). É contra a banalização do ato de se fazer literatura e a adoração das teorias que Nassar se rebela ao escrever LA e é contra esta última que diz em tom de deboche: “com folha de teoria a gente faz uma bolinha e manda longe com um piparote” (NASSAR, 1996, p.32). A teoria, referida aqui como uma camisa-de-força, arregimenta seguidores e tira a individualidade da voz do escritor. Daí Raduan revelar: “sempre me mantive à distância de toda especulação teorizante ou programática, sobretudo por uma questão de assepsia [...] para preservar alguma individualidade da minha voz” (NASSAR, 1996, p.33). Uma ironia cortante e mordaz atravessa cada palavra de Nassar nesse trecho, evidenciando aí um escritor em total desacordo com o presente. E é esse desacordo que faz dele um excepcional contemporâneo: sua inatualidade, deslocamento e anacronismo, o habilitam a ser um contemporâneo, uma vez que ele é “capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p.58-9). Conforme destaca Giorgio Agamben,
contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas (AGAMBEN, 2009, p.62).
O contemporâneo de Agamben não é alguém alienado por se furtar a luz constante do presente. Pelo contrário, ao se voltar para o escuro, ocupando uma posição de observador, atento aos desníveis dessa luz, o contemporâneo busca enxergar em suas dobras, resquícios dos paradoxos desse presente. Se o excesso de luz tende a cegar quem nela mergulha, o contemporâneo mantém um olhar oblíquo sobre ou sob ela, desviando-se do foco. Ao fazer isso ele consegue enxergar de onde vem a luz e quem a está produzindo. Assim, o contemporâneo não olha diretamente na luz, mas sim em quem a produz e comanda. E é nesse ponto que podemos ver Nassar: não olhando diretamente para a luz do presente político ou literário, mas sim para o ponto de onde vem essa luz e a partir daí escrever, ou melhor, fazer literatura.
Escrevendo em plena efervescência das teorias, sobretudo da “moda estruturalista”3 em voga no Brasil, Nassar parece manter-se indiferente aos modismos, procurando guiar-se somente por suas convicções: desenvolver seu aprendizado da língua, processo ininterrupto, segundo ele; fazer leituras pertinentes de alguns autores, baseado em seus critérios; fazer uma leitura da vida que acontece fora dos livros; havendo ainda outro ponto, o mais radical: “não permitir que transformassem [sua] cabeça numa lata de lixo” (NASSAR, 1996, p.31). São palavras duras, mas que representam um ponto de vista decidido em relação ao presente literário no qual vivia: “Se tivesse de me pautar pela leitura de manifestos literários, eu jamais teria escrito uma linha”, diz mais uma vez irônico (NASSAR, 1996, p.33). Portanto, se havia um projeto literário para o escritor Raduan Nassar era exatamente este: escrever sem preocupação com as teorias ou com uma crítica que se pautava na imagem do próprio crítico. Ele se aventurou a escrever um romance lírico numa época em que “já tinha sido decretada a morte do lirismo” (NASSAR, 1996, p.33). Visto assim, seu projeto era trabalhar em meio ao excesso de luz das teorias e perceber, nos interstícios desta, um facho escuro e sobre esse escuro agir4. Dessa maneira, perceber a contemporaneidade equivale a “neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes”, ainda de acordo com Agamben (AGAMBEN, 2009, p.63).
Tendo essas palavras de Agamben como parâmetro, podemos compreender um pouco mais a figura do personagem André quando afirma que a luz doméstica de sua infância era boa, mas era uma claridade que mais tarde passou a perturbá-lo (p.27-8). Ou mesmo quando diz ao pai que: “Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade” (p.160). Sob esse aspecto, André também é um contemporâneo no sentido definido por Agamben. É aquele que em meio ao excesso de ordem e de claridade, vê desordem, contradição e, principalmente, escuridão. Ele fala em meio às trevas que se ocultam no meio da luz do presente.
A crítica literária recebe duros golpes de Nassar. E o expediente de idolatrar essa ou aquela obra, também. “É tudo muito obsceno”, definirá Nassar (NASSAR, 1996, p.34). A obscenidade, segundo ele, estaria na mitificação de uma obra e também do autor, o que pode ser entendido como uma canonização de ambos: “Obsceno é dar um tamanho às chamadas grandes individualidades que reduz o homem comum a um inseto [...]; é abrir mão do exercício crítico e mentir tanto” (NASSAR, 1996, p.34). E será contra essa mesma crítica que seu último trabalho literário será endereçado. Trata-se do conto “Mãozinhas de seda”, primeiramente escrito para os Cadernos de Literatura Brasileira (publicado em homenagem ao autor em 1996) e que acaba não sendo publicado ali. O conto seria posteriormente inserido no livro Menina a caminho, de 1997, juntamente com outros textos produzidos antes mesmo de LA. Nesse conto, imerso em fina ironia, o narrador repudia a vida intelectual, na qual “o negócio é fazer média”, acusando os “eruditos, pretensiosos, e bem providos de mãozinhas de seda” de estarem “entregues a um rendoso comércio de prestígio, um promiscuo troca-troca explícito, a maior suruba da paróquia, Maria Santíssima!” (NASSAR, 1997, p.81). Um conto de denúncia contra os vícios da crítica literária que Nassar, ironicamente, evita publicar justamente no volume em que essa mesma crítica organizou para homenageá-lo. Era bater forte demais?
Em contrapartida, cabe a questão: seriam exageros as declarações acima, juntamente com as do narrador do conto Absolutamente não. Na verdade podemos ver nelas uma clara posição do indivíduo contemporâneo de Agamben, mergulhando sua pena nas trevas e escrevendo, nesse caso, falando o que deveras está contraditório no presente. O incômodo de Nassar persiste e os males que o provocaram só fizeram crescer. Prova disso pode ser encontrada em texto recente de Flora Süssekind, publicado no jornal O globo, em 200410, a propósito da morte do crítico Wilson Martins onde, dentre outros, reverbera as palavras de Nassar ditas acima. De acordo com a autora, há por parte da crítica hoje, uma espécie de
reprodução esvaziada de sentido, e desligada de vínculos efetivos com a experiência histórica, de comportamentos, práticas de escrita e certo culto à autodivulgação e à vida literária que parecem se expandir (em prêmios, concursos, revistas, blogs, antologias, bolsas de criação) em movimento inverso ao da restrição que se opera no campo da produção e da compreensão da literatura, ao da quase total desimportância de livros e mais livros que se acumulam sem maior potencial de instabilização, sem provocar qualquer desconforto, sem fazer pensar. Uma restrição que talvez indique uma incapacidade não só da crítica, mas do campo literário, de modo geral, de reinventar a sua sociabilidade, de produzir condições outras para a própria prática (SÜSSEKIND, 2010, grifos nossos).
A crítica de Süssekind também é implacável, lembrando as palavras do narrador do conto de Nassar, referindo-se ao “rendoso comércio de prestígio” (“certo culto à autodivulgação e à vida literária”). Sem mencionar o fato de que o nome do artigo: “A crítica como papel de bala”, já é uma severa assertiva que aponta a futilidade e irrelevância da crítica literária, denotando, além disso, que as obras da atualidade tem tido seus rumos e prestígios preestabelecidos de forma arbitrária por esta crítica. Nessa mesma linha, dirá também que a literatura se apresenta estagnada, sem sociabilidade, sendo feita somente para atender e agradar aos críticos.
Podemos dizer que o excesso de teoria acabou por ser determinante na própria produção literária, dando a entender que produzir uma obra seria seguir uma receita ou uma fórmula matemática. Acerca disso, Nassar não deixa por menos e destila sua ironia ao dizer que “é com as boas teorias, ou nem tanto, que se faz a má literatura” (NASSAR, 1996, p.36). É a revolta contra a forma, ou melhor, contra as formas de controle ou contra o excesso de razão ou de racionalidade que notamos nessas palavras. O que nos remete novamente às palavras de André, quando diz a Ana: “a razão é pródiga, [...] corta em qualquer direção, consente qualquer atalho, bastando que sejamos hábeis no manejo desta lâmina” (p.133). Ou mesmo quando afirma serem ambos, ele e a irmã Ana, “vítimas da ordem” (p.135). São palavras que, por sua vez, nos traz de volta ao próprio escritor Raduan Nassar, quando diz: “A razão não é seletiva, ela traça de tudo. Acho mesmo que a razão é uma belíssima putana, mas vem daí o seu grande charme, se bem que seu charme venha mais da sua humildade, passando longe da arrogância de certos racionalistas” (NASSAR, 1996, p.38). Dessa forma, fazer literatura não envolveria fórmulas nem racionalismo puro, mas uma eleição de temas, junto a um repertório de palavras, juntamente com outros componentes da escrita que, juntos, passariam “pela triagem dos nossos afetos” (NASSAR, 1996, p.37). Se houvesse uma “fórmula” para fazer literatura (em tese) seria essa, mas o resultado não estaria mais subordinado a essa fórmula – posto que, por usada, já obsoleta –, mas sim ao próprio escritor.
Aqui podemos indagar: e quanto ao restante, após o término da obra Caberia ao leitor, não ao crítico, fazer a apreciação do texto. Nas palavras de Nassar, “nada pode contra a soberania do leitor, quando essa soberania, está claro, é conquistada, o que é raro. Pro leitor independente, que não tem vocação para a obediência, as autoridades no assunto perdem a existência” (NASSAR, 2008, p.103). Tais palavras indicam novamente um diálogo com o artigo de Flora Süssekind, no qual destaca que a crítica é vista como definidora dos rumos da literatura, de sua produção e aceitação, inexistindo uma outra, que possa de fato
definir outros espaços de atuação e trânsito, lugares não demarcados (retroativamente) pelo beletrismo redivivo, nem pelas identidades estáveis do resenhista, do prefaciador, do professor judicativo, do ficcionista auto-mimético. Mas em movimentos de deslocamento nos quais a literatura e a crítica se vejam forçadas, como observa Agamben ao pensar sobre o contemporâneo, a mergulharem “a pena nas trevas do presente” (SÜSSEKIND, 2010).
Flora Süssekind retoma o conceito de contemporâneo de Agamben, aludido acima, para observar que a crítica literária hoje não está fazendo o movimento de olhar para além das luzes do presente. O que se observa hoje é uma espécie de territorialização do campo da crítica e da produção literária, por meio da eleição de alguns nomes, sem mérito algum, às vezes, e que são considerados não por sua excelência, mas pelo nome que assina a orelha do livro, ou que faz o prefácio do mesmo. Daí o que poderia ser aventado como uma justificativa de Nassar para seu abandono da Literatura, “L” maiúsculo:
Escrever era uma saída, resistência, atividade asseada, esse papo, entende Vendo depois a manipulação da produção literária, o comércio de prestígio, as paixões em jogo e etc., me dei conta de que não passamos todos duns pobres-diabos, e que fazer literatura é só um jeito maroto de cair na vida (NASSAR, 2008, p.104-5).
“Manipulação da produção literária”, “comércio de prestígios” e “paixões em jogo”: três expressões que corroboram perfeitamente a afirmação citada no início desse tópico, quando Nassar afirma que, “não há criação artística ou literária que valha uma criação de galinhas”. Essa é a posição de um intelectual ensimesmado, que preferiu silenciar diante do “troca-troca explícito” e do “rendoso comércio de prestígio” da crítica de um modo geral, acadêmica ou não. E quanto ao projeto? Bem, esse se encontra hoje em “fazer, fazer, fazer”, segundo ele, dentro de um “espaço em constante transformação [a fazenda], o que não deixa de ser uma outra forma de escrever” (NASSAR, 1996, p.39), conclui o autor (e chacareiro) Raduan Nassar em sua última entrevista, deixando claro que seu labor continua.

5. Considerações finais
As considerações feitas neste artigo procuraram apontar um comprometimento do romance LA, de Raduan Nassar, com o contexto político no qual estava inserido. De igual maneira, a posição de seu autor também nos levou a entendê-la como engajada. LA surge em momento de tensão no campo político e artístico: de um lado, os primeiros indícios de que o Regime Militar estava enfraquecendo, do outro, a preocupação de que ele poderia se fortalecer. Nesse ínterim, a literatura engajada dá mostras de esgotamento ou de certa ineficácia em denunciar o autoritarismo. É sob esse aspecto que podemos visualizar LA como um texto comprometido. Por meio de uma retomada de temas em desuso, Raduan Nassar procura imprimir nas entrelinhas de seu romance uma crítica a essa espécie de falência literária, na qual o fazer literário havia sido afastado em detrimento da informatividade dos novos romances. Essa onda de informação tornou-se lugar-comum e a intelectualidade preocupada em “dizer a muda verdade” não havia percebido que sua posição não era mais essa.
Conforme palavras de Michel Foucault, o papel do intelectual não é mais informar as massas, mas “lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso” (FOUCAULT, 1979, p.71). Pois é exatamente dessa luta que trata Raduan Nassar em LA: André luta contra as formas de poder, presente na postura do pai. Ao afirmarmos que a crítica de Nassar é contra a instituição familiar, não queremos afirmar com isso que a família devesse ser desestruturada por completo. Pelo contrário, a crítica feita pelo escritor segue o caminho do questionamento do status quo, observando, sobretudo, que em seu funcionamento jaz inconsistências e o poder, distribuído nas malhas do discurso, possui a clara intenção de mantê-lo. Partindo desse questionamento, pode-se dilatá-lo até atingir o Estado, procurando enxergar nas dobras dessa malha discursiva o ponto nodal que devesse ser atacado. André revira os discursos do pai buscando e apontando incoerências e faz isso sem receio de uma retaliação. É essa crítica velada, porém muito mais incisiva, faz de LA, em certa medida, um romance contemporâneo, mostrando que a literatura poderia agir no espaço público ao mesmo tempo em que manteria sua autonomia como objeto esteticamente configurado.

Referências bibliográficas

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______ A crítica como papel de bala. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2010/04/24/a-critica-como-papel-de-bala-286122.asp (acessado em 20 de junho de 2010).


1 Mestrando em Literatura e Práticas Culturais, no Programa de Pós-Graduação em Letras, da Faculdade de Comunicação, Artes e Letras, da Universidade Federal da Grande Dourados. Bolsista CAPES. E-mail: rosicleycoimbra@yahoo.com.br.
2 Conforme constata Tânia Pellegrini, o chamado Boom de 75 “aparece como extremamente contraditório, pois, na medida em que cresceu o mercado editorial, decresceu o público leitor real (não o virtual, criado a partir do maior número de escolarizados nos diversos níveis)” (PELLEGRINI, 1996, p.126). Por outro lado, conforme afirma Flora Süssekind, essa foi a época em que as restrições se tornaram mais rigorosas (SÜSSEKIND, 1985, p.20).
3 Lembremos aqui do polêmico artigo de José Guilherme Merquior, “O estruturalismo dos pobres”, publicado no Jornal do Brasil, em 27 de janeiro de 1974, no qual acusava os modismos e pedantismos da crítica brasileira ao se alimentar do “mito do Modelo mecanicamente aplicável”. Mas esse texto de Merquior não foi o único, havendo uma espécie de espetacularização intelectual, em que os estruturalistas são acusados de prestarem serviços ao poder militar, fazendo trabalhos nos quais as abordagens sociológicas são deixadas à margem, favorecendo assim as chamadas “análises estruturais”, com sua linguagem pseudocientífica (SÜSSEKIND, 1985, p.30).
4 A questão da censura pode ser trazida aqui novamente como forma de justificar a grande onda de romances de denúncia. Segundo Flora Süssekind, as opções literárias como o romance-reportagem, o conto-notícia, depoimentos de políticos, presos, exilados, estariam ancoradas numa resposta a censura, de forma direta, “como se o seu grande interlocutor fosse efetivamente a censura”, esquecendo-se assim do diálogo que mantém com a tradição e seu público (SÜSSEKIND, 1985, p.10).
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