APRESENTAÇÃO

Os textos que compõem este número da Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo abordam questões discutidas no âmbito das pesquisas realizadas pelo Grupo desde o início de suas atividades no ano de 2000. São questões que se encontram realçadas na produção literária e cultural de diversos países: exclusão social, relações de dominação e poder, rememoração como luta contra o esquecimento, dentre outras.

O primeiro artigo, Mário de Andrade: on being São Paulo-wise in Paulicéia Desvairada, é de autoria de David William Foster, da Arizona State University. O autor procura estudar o modo como a poesia de Mário lida com a cidade paulista do início do século XX, que, na época, é palco da alta modernidade emergente, mas é também cenário dos excluídos pela modernização: imigrantes, trabalhadores, prostitutas. Foster alude à idéia de que a poesia andradina de Paulicéia liriciza a metrópole brasileira, mas o que de fato quer mostrar é que há uma urbanização da linguagem poética no livro.

A compreensão como categoria filosófica, de Rosana Cristina Zanelatto Santos, procura chamar a atenção para a necessidade de – frente ao horror, à sordidez e à mediocridade da vida – se lançar mão de um processo reflexivo de leitura do mundo. Tomando como base obras literárias do português António Lobo Antunes, do moçambicano Mia Couto e do brasileiro Bernardo Carvalho, a autora mostra que, ao dar voz à violência que perpassa a relação colonizador-colonizado, os romances se valem de estratégias tais como a polifonia e o dialogismo para expressarem uma realidade em formação e não-acabamento, algo que exigiria do leitor um constante debate e sempre em vias de se fazer, propiciando, com isso, a formação e a reflexão.

O terceiro manuscrito, Em memória de Christa T.: dominação e exclusão social, de Rosani Ketzer Umbach, analisa o romance Em busca de Christa T., de Christa Wolf, procurando estabelecer relações entre questões que dizem respeito à alienação do sujeito dentro do sistema social e a perspectiva do fazer literário. A narradora de Em busca de Christa T. atribui grande valor à protagonista, já que esta tem uma “visão de si”, mas assume que lhe faltam elementos para dar conta da sua integridade enquanto pessoa. Através de uma obra cujos traços divergem dos padrões literários prescritos pelo “realismo socialista” e em diálogo com o contexto do nazismo e da Segunda Grande Guerra, a narradora propõe a rememoração de um passado – individual, mas ao mesmo tempo coletivo –, com suas frustrações e horrores, que, para tanto, requer a participação ativa de seu leitor, justamente para manter viva a memória de uma sociedade.

O quarto trabalho, Memória e história em De amor e de sombras: revisando um filme de Betty Kaplan, de Lizandro Carlos Calegari, centra-se no contexto chileno dos anos 70-80, procurando avaliar o conceito de história através de um componente importante da película: a luta contra o esquecimento. Tratando de temas como repressão, tortura, trauma e violência, que caracterizaram o governo Pinochet, o artigo demonstra que a história chilena se faz não através de uma narração linear de acontecimentos ou calcada em paradigmas positivistas, mas através de ruínas em que a memória desempenha papel fundamental.

O artigo de Odilon Caldeira Neto, Negacionismo e anti-semitismo nos textos da Revisão Editora, trata, além de outros aspectos, da tentativa de apagamento da memória dos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial e da propagação de valores anti-semitas pós-guerra na sociedade. Revisando livros de dois principais nomes da Revisão Editora, Siegfried Ellwanger e Sérgio Oliveira, o autor observa que, em seus manuais, persiste um discurso racista e preconceituoso que condena os judeus. O trabalho aponta para a idéia de a violência proveniente desses meios intelectualizados ganhar voz em formas de comunicação bastante populares, algo que contribuiria para a difusão do autoritarismo nas sociedades bem como para a distorção dos fatos, ferindo a história e a memória.

O estudo Vida secas e o sol da esperança: uma análise da obra de Graciliano Ramos, de Victor de Oliveira Pinto Coelho, propõe uma interpretação do existencial no romance do escritor alagoano. Partindo de considerações sobre os livros Caetés, São Bernardo e Angústia, o autor do artigo se refere à expressão do social manifesto nessas obras, mas chama a atenção também para o papel da linguagem como desmascaradora, que desnuda o real, mas que serve inclusive como meio de expressão de afeto, enfim, de desacorrentamento da perplexidade interior do sujeito. Lidando com essas fronteiras – a expressão do real e a manifestação da linguagem –, Vidas secas possibilitaria, então, uma interpretação do sentido existencial que toca seus personagens.

O resgate do narrador é de autoria de João Luis Pereira Ourique. Preocupado com a precariedade das condições de ensino e aprendizagem no contexto escolar, o autor afirma que, em função da dinamicidade do mundo contemporâneo, há um empobrecimento daquilo que Walter Benjamin denominou de experiência autêntica (Erfahrung), algo que motivaria uma fragilidade nos pressupostos da formação (Bildung). O autor sugere ainda uma volta ao passado no sentido de que a escola – caracterizada pelo excesso de informação, de opinião e de trabalho – ceda lugar ao ato de contar histórias, já que essa prática motivaria um espaço para o lúdico, o imaginário, a emoção e a sensibilidade, criando contextos de interação e propiciando o surgimento de experiência entre os participantes, o que concorreria para uma renovação nos modos de concepção das condições humanas, culturais e sociais.

Tendo em vista a dimensão social e crítica da produção literária e cultural, esperamos que a Revista contribua para ampliar o âmbito de discussão acadêmica em torno de questões como exclusão social e dominação. Agradecemos especialmente aos autores pela sua colaboração com esta publicação.