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Literatura e Autoritarismo Dominação e Exclusão Social |
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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação ISSN 1679-849X | Revista nº 11 |
A COMPREENSÃO COMO CATEGORIA FILOSÓFICA1Rosana Cristina Zanelatto Santos2
Resumo: Na leitura de textos (literários ou não), distinguem-se dois tipos de estruturas: uma superficial e outra profunda. A princípio há uma relação diretamente proporcional entre os dois tipos se considerarmos que, ao associar os significados das palavras, podemos, por somatório, compor o sentido do todo do texto. No entanto, esbarramos em algo: a capacidade humana de intuir, armazenar e (re) processar informações, produzindo outras informações e, por conseguinte, novos sentidos. Neste ensaio, pretendemos deslindar uma percepção filosófica da compreensão. Partimos, para tanto, de considerações de Hannah Arendt, segundo quem a compreensão é um processo interminável por via do qual aprendemos a nos reconciliar com nossa realidade, tentar sentir o mundo, com suas vicissitudes, como nossa morada.
Palavras-chave: Compreensão; Filosofia; Texto Literário.
Abstract: In texts’ reading (literaries or not) two types of structures can be distinguished: a superficial and a deep one. There is a proportional relationship between them: when we unite words’ meanings, we can compose the text’s signification. However, it shocks in human capacity to feel, to store and to process information, producing other information and therefore new significations. In this essay we intent to define a philosophical perception of the comprehension. According to Hannah Arendt, the comprehension is an interminable process for human apprenticeship in reconciling with the reality, trying to feel the world and its vicissitudes as home.
Keywords: Comprehension; Philosophy; Literary Text.
Uma consideração feita por Álvaro Cardoso Gomes em A voz itinerante: ensaio sobre o romance português contemporâneo, discrimina duas chaves catalográficas que, a nosso ver, podem ser apreendidas para além do romance português. Vejamos: uma que marca “[...] a ficção artística, voltada para a concepção universal do homem, e [outra] a ficção comprometida com uma ideologia, voltada para o homem inserido em seu tempo” (GOMES, 1993, p. 30). Assim, os modos de narrar passam a ser exercitados para além da linearidade do contar uma história compromissada com o ser e com sua inserção no mundo, importando também como a linguagem e a literatura resistirão ao primado de enredos demasiadamente humanos e ideológicos.
Entre os escritores que enfeixamos na perspectiva proposta por Gomes (1993), temos, entre outros, o português António Lobo Antunes, o moçambicano Mia Couto e o brasileiro Bernardo Carvalho. Nas obras de todos eles, há, na sordidez do cotidiano e na mediocridade da vida, frágeis revoltas, esgarçáveis ao menor toque, porém não menos demonstradoras do “horror” que perpassa o olhar humano como se diante de violências físicas e psíquicas as mais devastadoras.
Romances como: A ordem natural das coisas (1996) e O esplendor de Portugal (1998), ambos de Lobo Antunes; O último voo do flamingo (2000) e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), ambos do moçambicano Mia Couto; e Nove Noites (2002) e Mongólia (2003), ambos do brasileiro Bernardo Carvalho, são pródigos no trabalho de renovação de uma visão maniqueísta de mundo, um mundo ainda interpretado sob a égide da esquerda e da direita pré-derrocada do muro de Berlim (1989).
Ao estabelecer a possibilidade de que várias vozes se manifestem em seus textos, Lobo Antunes, Mia Couto e Bernardo Carvalho evidenciam uma cosmovisão perpassada pelas feridas abertas no ser humano e não mais somente em colonizados, orientais, homossexuais, mulheres e toda uma grande minoria (que, junta, é a maioria). Como nos Bildungsromane, parece haver uma intencional preocupação em ensinar o ser humano como persona, seja ele português, moçambicano, brasileiro, mongol, norte-americano, a enxergar a si mesmo depois de depostas as máscaras superpostas por vitórias reais e imaginárias das grandes nações colonialistas e neo-colonialistas. Não é um ensino regular, que siga critérios cronológicos e associativos: é uma prática pedagógica transformada pela visão estética, em que passado, presente e um futuro sem tempo de vir se misturam. Pensamos, para justificar essa prática, em conceitos associados à categoria da polifonia, quais sejam: realidade em formação, inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo. E como se dá a associação desses conceitos? Segundo Paulo Bezerra,
[...] A inconclusibilidade e o não acabamento decorrem da condição do romance como um gênero em formação, sujeito a novas mudanças, cujas personagens são sempre representadas em um processo de evolução que nunca se conclui. [...] Na ótica da polifonia, as personagens que povoam o universo romanesco estão em permanente evolução. O dialogismo e a polifonia estão vinculados à natureza ampla e multifacetada do universo romanesco, ao seu povoamento por um grande número de personagens, à capacidade do romancista para [(re)criar] a riqueza de seres e caracteres humanos traduzida na multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada (2005, p. 191-192). Na perspectiva polifônica romanesca, há um homem no homem, isto é, há um outro que se revela ao leitor como sujeito que se livra da reificação/coisificação, para mover-se sob a liberdade vigiada do autor. Liberdade vigiada porque, ao modo de um educador, o autor traça algumas diretrizes e demonstra a autoridade dos seus saberes e dos conhecimentos do seu tempo histórico e ideológico, deixando, porém, que os seres do romance optem pela descoisificação e transformem-se em individualidades (cf. BEZERRA, 2005, p. 193-194).
O contar uma história ao modo da literatura de testemunho da tradição portuguesa do século XVI, por exemplo, é apropriado por Lobo Antunes, Mia Couto e Bernardo Carvalho. Essa literatura é então metamorfoseada e recriada com base num princípio de oscilação entre o realismo descritivo de cenas domésticas e cenas dignas de pesadelos.
Se, por um lado, a literatura de testemunho portuguesa produzida do século XV ao XVII fixou alguns conceitos mitificadores, como o “novo mundo”, a “recuperação do paraíso perdido” e o “selvagem adâmico”, por outro, afirmou a presença de um projeto colonizador mercantilista e salvífico, fruto da dialética existencial do modo de ver e viver o mundo pelos portugueses e, de modo geral, pelos europeus (cf. Castro, 1985, p. 11 e seg.). Lembremo-nos, a título ilustrativo, da carta de Pero Vaz de Caminha sobre o achamento do Brasil.
As vozes dos narradores-personagens dos romances a serem analisados testemunham o resultado do projeto colonial europeu e de projetos mais recentes, como a expansão salvífica do comunismo soviético e a promessa melíflua do american way of life. Caminha-se por mundos destruídos, plenos de violência (física e psíquica), em movimentos concêntricos sem saída. No romance polifônico,
[...] não [se definem] as personagens e suas consciências à revelia das próprias personagens, mas deixa-se que elas mesmas se definam no diálogo com outros sujeitos-consciências, pois as sente a seu lado e à sua frente como ‘consciências eqüipolentes dos outros, tão infinitas e inconclusíveis’ como a dele, autor. Com o olhar deslocado do real móvel e vívido para a ficção, ele [o autor] não reflete e [não] recria um universo de objetos dóceis e surdos, passíveis de acabamento; reflete e recria as consciências dos outros e seus respectivos universos em permanente não acabamento esse que é a própria essência dessas consciências, [...] (Bezerra, 2005, p. 195). Lobo Antunes, Mia Couto e Bernardo Carvalho dão voz ao colonizado, ao colonizador e ao mestiço (aqui tomado numa acepção lato sensu, ou seja, o fruto do encontro do dominado e do dominador).
A miscigenação, a união sexual entre raças diferentes, sempre estava no imaginário europeu. Os colonizadores eram obcecados pela prole dessas uniões, considerada inferior e degradante. Embora a miscigenação fosse considerada um fenômeno amedrontador, subversivo da estabilização do poder imperial e mantenedor da separação entre selvagem e civilizado, houve um certo fascínio diante da mistura de raças. As teorias da hibridização aplicam-se à miscigenação (BONNICI, 2005, p. 41. Grifos do autor). Nas vozes das personagens dos romances a serem analisados, percebemos interrogações e tentativas de compreensão sobre as relações imaginárias que balizaram, e balizam, por séculos, a dominação e a superioridade de poucos sobre uma grande parte do mundo. No entanto, essas interrogações e suas possíveis respostas não dissimulam o “horror” das personagens, conseqüência direta da Umheimlichkeit, isto é, do sentimento de não-estar-em um lar, numa pátria que possam chamar de sua.
No percurso intelectivo das personagens, instaura-se uma tentativa inconsciente de compreender, porém, não de perdoar, os projetos e os processos colonialista e neo-colonialista: para que serviu tanta violência, tanta destruição, tanto despertar de animosidades entre iguais? O ethos ocidental poderá ser julgado por alguém, dominados ou dominadores? Terá o dominado meios reais e estratégias discursivas para acusar e condenar o dominador, reivindicando um lugar no mundo e não a subsistência assistencialista e dissimulada que cria uma nova modalidade de dominação, a dependência? Ou ficarão, tanto dominados quanto dominadores, a repetir “O horror, o horror”, como o agonizante Kurtz de O coração das trevas, de Joseph Conrad?3
Eis os momentos finais de Kurtz:
Kurtz discursava. Que voz! Que voz! Ressoou profunda até o fim. Sobreviveu à sua força, para esconder nas magníficas dobras da eloqüência a estéril escuridão de seu coração. Oh, ele lutou! Ele lutou! Os restos de seu cérebro cansado eram agora assombrados por imagens terríveis – imagens de riqueza e fama, revolvendo obsequiosas em torno de seu inextinguível dom de nobre e pomposa expressão. Minha Pretendida, meu posto, minha carreira, minhas idéias – eram os temas daqueles ocasionais pronunciamentos de sentimentos elevados. A sombra do Kurtz original guardava a beira do leito da vazia impostura, cujo destino ia ser acabar enterrada no molde da terra primeva. Mas tanto o amor diabólico quanto o ódio exótico dos mistérios que ela penetrara lutavam pela posse daquela alma saciada de emoções primitivas, ávida de fama mentirosa, de falsa distinção, de todas as aparências de sucesso e poder. Kurtz encena para Marlow, o narrador, e, por extensão, para o leitor, toda a sua vida no momento de sua morte, intensificada pela interjeição “Que horror!”. E, como num texto trágico, sente-se uma comoção dentro do narrador (fascínio) e de nós (repulsa? Piedade?), leitores. Durante o decorrer da narrativa, não se encenaram os terrores produzidos por Kurtz e vividos por ele. Eles somente são referidos, como prescrito por Aristóteles em sua Poética.
Por que dar voz ao “horror” agônico de Kurtz? Para propor uma compreensão possível dessa categoria em meio ao universo literário.
Comecemos esboçando o que tomamos por “compreensão”. Na leitura de um texto (e não precisa necessariamente ser literário) distinguem-se dois tipos de estrutura: uma superficial e outra profunda. Grosso modo, a primeira apresenta-se sob a forma de palavras e a segunda refere-se ao sentido atribuído a essas palavras de modo associado. A princípio, parece uma relação diretamente proporcional se consideramos que ao associar os significados das palavras, podemos, por somatório, compor o sentido do todo do texto. No entanto, esbarramos n’algo: a capacidade humana de armazenar, processar e reprocessar informações, produzindo outras informações e, por conseguinte, novos sentidos.
Assim,
[...] o estudo da linguagem não se deve restringir à análise gramatical de sistemas de linguagem abstractos e ideais, mas que em vez disso o objecto empírico das teorias lingüísticas deve ser a utilização da linguagem num determinado contexto social (LENCASTRE, 2003, p. 15). Os estudos culturais, consorciados aos estudos literários, não se detêm somente na percepção da variação socioeconômica e cultural (in) manifesta na utilização da linguagem, mas também no como e quais são as formas que dão a conhecer essa linguagem. É uma compreensão ativa da linguagem do texto literário, isto é, que focaliza a construção do(s) significado(s) do texto, transformando “[...] a descodificação em um meio para se conseguir a compreensão, e não como um fim em si” (LENCASTRE, 2003, p. 17).
Aliada a essa visão, grosso modo mais estrutural da compreensão, interessa-nos também uma sua percepção filosófica. Em nossa pesquisa, tomamos por norte algumas considerações de Hannah Arendt, anotadas no ensaio “Compreensão e política” (1993). Segundo Arendt,
[...] a compreensão é um processo complexo, que jamais produz resultados inequívocos. Trata-se de uma atividade interminável, por meio da qual, em constante mudança e variação, aprendemos a lidar com nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo (1993, p. 39). Portanto, a compreensão é interminável, não podendo prescindir de compreensões e de juízos que lhe são anteriores.
Já a linguagem, como “a casa do ser” (HEIDEGGER, 1991, p.1), não é instrumento de luta, de destruição, de violência. A linguagem, quando transformada em clichê, perde sua qualidade de fala e de escuta e, a nosso ver, “despeja” o ser de sua morada, adquirindo o estatuto de doutrinação.
A doutrinação é perigosa por nascer principalmente de uma deturpação não do conhecimento, mas da compreensão. O resultado da compreensão é o significado, que produzimos em nosso próprio processo de vida, à medida que tentamos nos reconciliar com o que fazemos e com o que sofremos (ARENDT, 1993, p. 40). O perigo da deturpação da compreensão ronda o ser humano, fazendo-o esquecer-se de tempos em tempos de sua humanidade. Aqui nos valemos das considerações de Martin Heidegger sobre o que seja “humanidade”:
O homem, porém, não é apenas um ser vivo, pois, ao lado de outras faculdades, também possui a linguagem. Ao contrário, a linguagem é a casa do ser; nela morando, o homem ex-siste (sic) enquanto pertence à verdade do ser, protegendo-a. A perda da humanidade do ser pode ser traduzida, a nosso ver, como foi proposto por Arendt, na “[...] na perda da busca de significado e da necessidade de compreender” (1993, p. 48).
Ao seguir esta percepção, caminhamos rumo a algumas proposições de Theodor W. Adorno na sua Teoria estética. O lugar da arte no mundo e sua autonomia, segundo Adorno, foram abaladas na mesma proporção em que a sociedade tornou-se menos humana (cf. 1997, p. 241). Ao assumir aos “clichês de um esplendor [re] conciliante” (ADORNO, 1997, p. 242), a arte passou a ocupar um lugar de pretensa redenção, de um pretenso perdão, expurgação das culpas humanas. Porém,
A identidade estética deve defender o não-idêntico que a compulsão à identidade oprime na realidade. Só em virtude da separação da realidade empírica, que permite à arte modelar, segundo as suas necessidades, a relação do Todo às partes é que a obra de arte se torna Ser à segunda potência. As obras de arte são cópias do vivente empírico, na medida em que a este fornecem o que lhes é recusado no exterior e assim libertam daquilo para que as orienta a experiência externa coisificante. Enquanto que a linha de demarcação entre a arte e a empiria não deve ser ofuscada de nenhum modo, nem sequer pela heroicização do artista, as obras de arte possuem no entanto uma vida sui generis, que não se reduz simplesmente ao seu destino exterior. As obras importantes fazem surgir constantemente novos estratos, envelhecem, resfriam, morrem (ADORNO, 1997, p. 245-246). A negatividade, a sombra, a maldade, o horror que habitam o ser também lhes atribui humanidade e têm seu lugar na linguagem da arte. Como obra do ser a arte também morre.
A força da negatividade na obra de arte mede o abismo entre a práxis e a felicidade. Sem dúvida, Kafka não desperta a faculdade de desejar. Mas, a angústia do real, que responde aos escritos em prosa como a Metamorfose ou a Colônia Penal, o choque da náusea, da aversão, que sacudindo a physis, tem mais a ver, enquanto defesa, com o desejo do que com o antigo desinteresse que a ele e aos seus sucessores se atribuía. O desinteresse seria grosseiramente inadequado para os seus escritos. Reduziria a arte àquilo de que Hegel escarnecia, a carrilhão agradável ou útil da Ars Poetica de Horácio5 (ADORNO, 1997, p. 255-256). No ensaio “Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo”, Márcio Seligmann-Silva observa que
O abjeto é a manifestação dessa violenta Urspaltung (proto-cisão); é um não-sentido que nos oprime — assim como o sublime é um sobre-sentido que nos escapa. Diferentemente do sublime a manifestação privilegiada do abjeto é o cadáver (1999, p.8). Intentamos, portanto, compreender como e quais as formas literárias que o “horror”, não mais como a sublimidade idealista, porém como o abjeto que “nos oprime” ainda que não o sintamos, assume em O coração das trevas (1902), de Joseph Conrad (que será nossa situação-padrão); A ordem natural das coisas (1996) e O esplendor de Portugal (1998), ambos do português António Lobo Antunes; O último voo do flamingo (2000) e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), ambos do moçambicano Mia Couto; e Nove Noites (2002) e Mongólia (2003), ambos do brasileiro Bernardo Carvalho.
Já sabemos, e nosso percurso investigativo encaminha-se para isso, que o horror é um desnudamento brutal da alma do ser. Por isso, esbarra na ordem do indizível, na insuficiência das palavras, no caráter irredutível das experiências humanas. Porém, se não buscarmos dizer e compreender o horror, esbarraremos no esgarçamento do tecido social, na esterilização da vida pública e na desumanização do ser. Neste ponto, reside o nosso próximo desafio: como se diz o horror na literatura e de que adianta fazê-lo?
Transcrevemos, a seguir, a letra da canção The End (1967), do The Doors, que fecha (e não por acaso) o filme Apocalipse Now, ambos “textos” – a letra do Doors e o filme – que nos suscitaram um olhar de compreensão sobre o horror (vale lembrar que o roteiro de Francis Ford Coppola para o Apocalipse Now foi baseado no romance de Conrad O coração das trevas):
Este é o fim
Este é o fim Belo amigo Este é o fim Meu único amigo, o fim Dos nossos elaborados planos, o fim De tudo que permanece, o fim Sem salvação ou surpresa, o fim Eu nunca olharei em seus olhos...de novo Você pode imaginar o que será? Tão sem limites e livre Precisando desesperadamente...de alguma...mão de estranho Numa terra desesperada? Perdido numa romana...selva de dor E todas as crianças estão loucas Todas as crianças estão loucas Esperando a chuva de verão, sim Há perigo no extremo da cidade Passeie pela estrada do rei, baby Cenas estranhas dentro da mina de ouro Passeie pela estrada do este, baby Passeie pela serpente, passeie pela serpente Para o lago, o antigo lago, baby A serpente é longa, sete milhas Passeie pela serpente… Ela é velha e sua pele é gelada O oeste é o melhor O oeste é o melhor Vá lá, e nós faremos o resto O ônibus azul está nos chamando O ônibus azul está nos chamando Motorista, aonde está nos levando? O matador acordou antes do amanhecer, ele pôs suas botas Ele tirou uma foto da antiga galeria E andou pelo corredor Entrou no quarto em que sua irmã vivia, e...então ele Pagou a visita a seu irmão, e então ele Ele andou pelo corredor, e E ele veio até a porta...e ele olhou para dentro "Pai?", "Sim filho?", "Eu quero te matar" "Mãe...Eu quero...te foder" Venha bem, tente conosco Venha bem, tente conosco Venha bem, tente conosco E me encontre atrás do ônibus azul Fazendo um foguete azul, no ônibus azul Fazendo um rock triste, vamos, sim Matar, matar, matar, matar, matar, matar Este é o fim, belo amigo Este é o fim, meu único amigo, o fim Dói te libertar Mas você nunca vai me seguir O fim da gargalhada e das mentiras suaves O fim das noites em que tentávamos morrer Este é o fim (MORRISON, 1967). Ao final deste breve ensaio, perguntamo-nos (já sabendo a resposta) para que serve estudar e tentar compreender o horror nas narrativas literárias? Uma questão tão capciosa quanto outra que lhe é similar: para que serve a literatura? Hannah Arendt afirma (e concordo consigo):
[Vários] acreditam que livros possam funcionar como armas e que se pode lutar com palavras. As armas e a luta, entretanto, pertencem à atividade da violência, e a violência, distinguindo-se do poder, é muda; a violência tem início onde termina a fala. Quando usadas com o propósito de lutar, as palavras perdem sua qualidade de fala; transformam-se em clichês. O modo como os clichês instalaram-se em nossa linguagem cotidiana e em nossas discussões pode ser um bom indicador não só do ponto a que chegamos ao nos privarmos de nossa faculdade da fala, mas também de nossa presteza para usar meios de violência mais eficazes do que livros ruins (e somente livros ruins podem ser boas armas) para impor nossos argumentos (1993, p. 41). O horror considerado como categoria positiva lida nos (bons) textos literários e serve a dois propósitos básicos: como parte formativa da biografia coletiva do homem e como elemento assimilado por uma identidade coletiva humana. Em ambos os casos, o horror não pode ser silenciado; ele deve ser dito e (com) partilhado, a fim de que a mentalidade do homem não padeça do endurecimento individualista que cada vez mais nos assombra.
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2 Doutora em Letras pela USP. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – nível 2. Docente do Curso de Graduação em Letras do Depto. de Letras da UFMS – Campus de Campo Grande, do Programa de Pós-Graduação em Letras (Mestrado) do CPTL/UFMS e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do CCHS/UFMS.
3 Esses questionamentos nos foram suscitados com base na leitura especialmente do Capítulo II: Brancos e negros na África de Conrad, do livro O redemunho do horror: as margens do ocidente, de Luiz Costa Lima.
4Segundo Heidegger, “A ex-sistência [...] não é apenas o fundamento da possibilidade da razão, ratio, mas a ex-sistência é aquilo em que a essência do homem conserva a origem de sua determinação.
[...] É por isso que a ex-sistência nunca poderá ser pensada como uma maneira específica de ser entre outras espécies de seres vivos; isto naturalmente supondo que o homem foi assim disposto, o que deve pensar a essência do seu ser e não apenas elaborar relatórios sobre a natureza e a história da sua constituição e das suas atividades (1991, p. 10).
5 “Os poetas desejam ou ser úteis, ou deleitar, ou dizer coisas ao mesmo tempo agradáveis e proveitosas para a vida” (HORÁCIO, 1997, p. 65. Tradução Jaime Bruna).
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