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Literatura e Autoritarismo
Dominação e Exclusão Social
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 11 

MEMÓRIA E HISTÓRIA EM DE AMOR E DE SOMBRAS: REVISANDO UM FILME DE BETTY KAPLAN

Lizandro Carlos Calegari©
Resumo: O propósito do presente trabalho é refletir sobre os conceitos de memória e de história no filme De amor e de sombras (1993), de Betty Kaplan. Tomando como base o contexto político chileno dos anos 1970 e 1980, procura-se avaliar o modo como a película em questão é uma representação das situações de repressão do momento, procurando, com isso, dar um novo sentido para a história através do papel da memória.
Palavras-chaves: História, memória, De amor e de sombras.
Abstract: A reflection on the concepts of memory and history in Betty Kaplan’s Of love and shadows (1993) is the purpose of this paper. Considering the 1970 and 1980 Chilean political context, we aim at evaluating the way how the movie is a representation of the repression in that moment, trying to give a new sense for the concept of history through the role of the memory.
Keywords: History, memory, Of love and shadows.
Contemporaneamente, escrever a história ou reproduzir fatos passaram a ser tarefas que exigem atenção e cuidado. A constatação aristotélica de que a história se constitui num conjunto de acontecimentos reais, porque verdadeiros e presenciados, ganhou sustentação até meados do século XVIII, e a historiografia iluminista, com receio de que ela perdesse seu teor erudito e elevado, levou às últimas conseqüências o rígido divórcio entre verdade e imaginação. Em última instância, o que o século das luzes pregava era a sua adesão ao positivismo. O pensamento crítico que surge no século XX, entretanto, interpreta esse momento e esse modo de pensar como uma força ideológica que não tira o homem da escuridão.
Provavelmente o acontecimento de maior destaque, no plano da arte, que tenha dado novos contornos para a maneira como a história e a imaginação fossem encaradas tenha sido o aparecimento do romance nessa virada do século XVIII para o XIX. A suposta definição de que a história pressupõe a objetividade e o distanciamento do interpretante, de que é regida por convenções de veracidade, sendo seu autor guiado pela razão, perdeu aos poucos sua sustentação. Da mesma forma, a dura constatação de que o romance seja regido por pura subjetividade, guiado pela imaginação e legitimado pela verossimilhança foi relativizada. Do século XVIII para cá, autores como Hayden White, Dominick LaCapra, Siegfried Kracauer, Mikhail Bakhtin, Roland Barthes e Linda Hutcheon, cada um a seu modo, atestaram as deficiências desse projeto que separava um domínio de outro.
Atualmente, o consenso geral reside na idéia de que as categorias históricas tais como tempo, espaço, personagem, fatos e documentos podem ser perfeitamente tomadas pela ficção. Os episódios e os personagens fictícios, por outro lado, não depõem contra a história. Embora a veracidade não possa ser comprovada, ela pode ser inferida a partir da análise do texto ficcional. Assim, o verossímil se deixa contaminar pelo verídico, e o imaginário se apresenta como um prolongamento e uma projeção do real. A propósito, no que tange a tais domínios, Walter Benjamin foi um dos autores que melhor refletiu sobre a história e sua escritura, não desprezando o papel da literatura e das artes em geral nessa tarefa de dizer o passado.
Esse pensador frankfurtiano, adepto à teoria crítica do século XX, pareceu estar à frente do seu tempo. Diferentemente do clássico historiador do século XIX, Leopold Von Ranke, que acreditava na possibilidade de uma reconstrução fiel e acabada dos fatos da história, Benjamin desmonta os pressupostos da história positivista, escrevendo-a do ponto de vista dos vencidos e dos dominados. Por esse motivo, ele busca fazer uma outra história, uma anti-história, fragmentária e descontínua, que expõe a ruína e na qual não se insere a confiança cega no progresso. A abordagem proposta pelo autor germânico acerca da história valoriza a sua interrupção pontual (determinada num aqui e agora), privilegiando a cesura no tempo, o qual, para ele, não é vazio, mas denso, poroso e inexiste sem o espaço.
A historiografia, com essa concepção de tempo, deixa de ser a narração de uma história de sucessos e se apresenta em fragmentos, estilhaços e ruínas. Aqui, a ruína representaria a síntese paradigmática entre tempo e espaço; ela seria, então, uma imagem-tempo. A visão (barroca) da história como um amontoado de ruínas, descrita tanto no livro sobre o drama barroco como nas teses sobre o conceito de história, indica um primeiro sentido do conceito de catástrofe que permeia toda a reflexão histórica de Benjamin. Logo, correlatas ao culto da ruína, tanto a filosofia da história proposta pelo teórico germânico quanto muitas das obras artístico-literárias visam à destruição da falsa aparência da totalidade, desencantando qualquer sentido totalizante e positivista.
A presunção benjaminiana de que a arte é um elemento que se alia à história não se dá em sentido restrito, isto é, de que aquela pode servir como um simples meio de representação desta. Mais do que isso, a literatura e as artes em geral – incluindo-se aí a fotografia, o cinema e a escultura – teriam como missão escovar a história a contrapelo. O pensamento de Benjamin lançou luzes para que brotasse uma força de intervenção crítica nos diversos domínios culturais. Seu método desafiou as etapas do saber universitário calcado numa cadeia de pensamento formalmente articulada, bem ao gosto do positivismo. O século XX, definido por Hobsbawm (1995, 112) como a “era da catástrofe”, se viu desprovido de encadeamentos lógicos dotados de pactos de compreensão, e a proposta que Benjamin articula é justamente a de passar a limpo um passado assentado numa concepção totalizante, homogênea e sem fissuras.
As reflexões que Benjamin (1994) elabora acerca da história e de seu processo de escritura se ligam, num primeiro momento, ao ofício de contar. Em alguns de seus mais famosos ensaios – Experiência e pobreza, O narrador e Sobre o conceito da história –, o autor germânico, calcado no crivo da narração e do discurso histórico, preconiza uma revitalização da dimensão inventiva, e não é por acaso que cita nomes como Heródoto, Sheraazade e Leskov. Estes, resguardadas suas diferenças, teriam em comum o verdadeiro dom de contar, com excelência e encanto, histórias que convidavam seus ouvintes à interlocução. Num segundo momento, essa tarefa empreendida pelo estudioso está articulada a uma teoria da memória. Em outros termos, na concepção benjaminiana, a historiografia passa a ser uma grafia da memória.
No contexto da América Latina, as questões relativas à história e à memória são de particular interesse, já que muitos países que integram tal porção do continente atravessaram experiências associadas ao autoritarismo. Uruguai, Argentina, México, Peru e Chile, nas décadas de 1960 e 1970, eram dominados por ditaduras militares. O Chile, particularmente, foi um dos únicos países a tentar uma experiência socialista por vias pacifistas. Em 1970, o candidato marxista Salvador Allende foi eleito por uma coligação de partidos de esquerda. Como presidente, nacionalizou diversas empresas estrangeiras, o que provocou reação das elites econômicas. Com o apoio dos Estados Unidos, os militares o derrubaram. O general Augusto Pinochet, articulador do golpe, assumiu plenos poderes.
O governo Pinochet caracterizou-se pela extrema violência com que reprimiu os adeptos de Allende e os opositores a seu regime. Ocorreram prisões, torturas e mortes. Nos meses que se seguiram ao golpe, cerca de 10 mil pessoas teriam sido assassinadas. No final da década de 80, a ditadura do então presidente estava fortemente abalada pelo movimento de oposição popular. Num plebiscito em 1988, a maioria dos eleitores se opôs à permanência de Pinochet no poder. Embora os civis tivessem voltado ao poder em 1989, havia um grande acerto de contas a ser feito entre a sociedade chilena e o seu passado.
A amarga experiência legada pela ditadura não se extingue com o término do regime. As repressões, os assassinatos e as chacinas, que se filiam às noções de perda, ausência e supressão, enfim, com a mais brutal das violências que a sociedade chilena viveu naquele período, deixaram um luto em suspenso que se tornou inacabado e tensional, porque irresolvido. Os chilenos, perplexos com o seu passado e com a sua história, almejavam explicações, já que queriam recuperar sua condição de povo livre e democrático. Nada disso é por acaso, é antes resultado de uma memória insatisfeita, que não se dá por vencida, o que perturba a vontade de sepultamento oficial da lembrança.
A questão da história e da memória, na cena chilena, requer tratamento especial. Conforme Nelly Richard (2002), o governo da Transição (1989), nesse país, produziu esforços no sentido de assinalar uma passagem de uma política de antagonismos para uma política de transação, de negociação. Nesse último caso, o que se buscou foi justamente um paradigma de normalidade e de legitimidade política com o intuito de controlar a pluralidade heterogênea do social, disciplinar os antagonismos e os confrontos. Nesse particular, a palavra, pelo seu uso banalizado, se tornaria isenta de toda convulsão de sentido, sentiria o vazio de uma falta de contexto, que “cancela diariamente seu passado de horror, separando e distanciando, cada vez mais, a lembrança histórica da rede de emocionalidade que antes o fazia vibrar coletivamente” (78-79). Como se observa, a palavra, o passado, enfim, a memória seriam reciclados pela fala mecanizada do consenso, tornando a lembrança das vítimas insignificante.
Apesar de tais esforços, a cena traumática que caracterizou o Chile num momento específico de sua história exige ser revisitada, já que o que a sociedade chilena tem almejado é justamente desconstruir a historiografia tradicional, cujos esforços se voltam para o apagamento das feridas catastróficas alojadas na mente das pessoas. Essa revisão, entretanto, não é fácil. Relacionar o passado com o trauma implica tratar desse passado de uma forma mais complexa do que o tradicional. Primeiramente, porque é difícil (talvez impossível) dominar ou lançar luzes ao passado em todos os seus pormenores; além disso, porque esse confronto com o passado requer que se abram feridas em vias de cicatrização.
O filme De amor e de sombras (1993), uma co-produção entre Argentina e Espanha, parte de um argumento adaptado do romance de Isabel Allende sobre o Chile de Pinochet evocado através da emocionante e perigosa história de amor entre uma bela jovem da classe dominante e um jovem combatente pela liberdade. Ela vivia ignorando a miséria, a violência e a injustiça reinantes no seu país. Ele arriscava tudo para lutar pelo fim da ditadura e denunciar ao mundo as atrocidades de Pinochet. E, em meio a este universo de medo e repressão, clandestinidade e resistência, viveram um apaixonante romance. A argentina Betty Kaplan assina um tocante melodrama que é uma amarga evocação dos angustiantes anos da ditadura chilena. A película é exemplar justamente porque visa a delatar as brutalidades de um regime ao mesmo tempo em que reaviva o passado desenterrando a violência sepultada pelos dirigentes.
Nos anos 70 no Chile, durante a ditadura de Pinochet, a bela Irene Beltran (Jennifer Connelly) trabalha numa revista de moda e vive num universo sócio-cultural de segurança e privilégios. Namora um jovem oficial do exército, Gustavo Morante (Camilo Gallardo) e parece ignorar a dramática realidade em que vive mergulhado o país. Porém, um dia, tudo muda radicalmente na sua vida. Apaixona-se por Francisco Leal (Antonio Banderas), um psicólogo que trabalha como fotógrafo e luta na clandestinidade contra o repressivo e brutal regime de Pinochet. Com Francisco, e através dele, Irene descobre um país diferente daquele que conhecia ou julgava conhecer. Um país empurrado para o medo e para a miséria, dominado pela violência e pela injustiça.
De amor e de sombras revela, num primeiro plano, as arbitrariedades de um sistema desumano e brutal, colocando em cena a questão da memória e do esquecimento. É justamente em torno dessas questões que a película se move e ganha vigor, ou seja, é um filme de denúncia, cujo objetivo é chamar a atenção para os traumas da violência homicida, tocando exatamente nessas feridas com o intuito de ativar a memória contra a política do esquecimento. Para tanto, e não por acaso, o protagonista, Francisco Leal, confessa a necessidade de trabalhar nas sombras, isto é, atuar por meios estratégicos de forma que a sua visibilidade seja a menor possível. O vocábulo, ainda, é uma referência ao clima do país, já que seu sentido é negativo, evocando escuridão, tristeza, falta de definição em relação aos rumos a serem tomados.
O título, aliás, aponta para uma particularidade inerente ao filme e que, de maneira alguma, está dissociada da questão da memória. Esse aspecto diz respeito ao sentimento que brota entre Francisco e Irene. O amor que um passa a sentir pelo outro responde, inclusive, à dinâmica social calcada na repressão. Isso acontece porque a manifestação de afeto se impõe contra uma perspectiva de destruição e perplexidade, é a luta de Eros contra Tânatos, ou seja, é a dinâmica da vida que se coloca contra a dinâmica da morte. Na película, Irene, num primeiro momento, vive alienada e a visão que tem da sociedade caracteriza-se por ser romântica e inocente. Ela vive imersa num princípio de prazer, que é confrontada por um outro princípio, o da realidade, estimulada por aquilo que Francisco vive e representa. É como se esse personagem tirasse Irene de uma extremidade (instinto de vida) e a jogasse num outro pólo (instinto de morte), exigindo que ela se juntasse a ele para voltar às condições iniciais.
Em De amor e de sombras, essa dinâmica não é gratuita nem inocente. Por encontrar-se diante das imposições de uma sociedade repressiva, e sem a possibilidade de um ambiente que permita a total liberdade, tanto Francisco quanto Irene não encontram possibilidades de concretização da felicidade, entendida como a liberação das energias instintivas. Nada supera a felicidade em seu âmago, logo a plenitude não existe, somente alguns momentos de satisfação temporária, conseqüência dos impulsos, sobretudo sexuais. A rota para que tal felicidade seja sentida em sua plenitude exige que se enfrentem obstáculos impostos pela sociedade. É justamente o processo de trilhar esse caminho, algo que envolve a necessidade de se confrontar e nomear experiências silenciadas pelo regime, que concorre para que as políticas de esquecimentos sejam confrontadas.
Até esse ponto, o que se observa é uma forma de se conceber a história que se coloca contra outra maneira que pretende ser autêntica, a calcada no positivismo. No filme, além de os episódios abordarem detalhes das vítimas de um regime autoritário, eles são narrados a partir de uma ótica feminina. Talvez pelo fato de Irene ser a narradora, isso dá um sentido particular e mais agudo ao que se presencia nessa obra, já que ela sai de um pólo de extrema ingenuidade e atravessa situações limites as quais vão imprimindo nela, originalmente, as sensações e as emoções vivenciadas. Em outros termos, ela é a mais sensível às mudanças, por isso mais sincera na manifestação dos seus sentimentos. Assim, o que se tem com De amor e de sombras é uma versão desafiante do período, uma vez que rompe com a conformidade das leituras domesticadas pelos lugares comuns do rito institucional, das tradições hegemônicas, do credo militar e dos saberes oficiais.
Essa nova sensibilização introduzida por Benjamin de como escrever ou narrar a história deve contar com a ajuda de outros participantes. No filme em questão, a luta pela democracia e pela liberdade não se resume aos esforços de Francisco e Irene. Junto a eles, outras pessoas vão tomar partido pelas causas populares. É o caso de Mario (Patricio Contreras), homossexual que, ao ser apresentado a Gustavo pela própria Irene, é agredido verbalmente. Ele estende a mão ao militar como forma de cumprimento, mas o oficial retribui da seguinte forma: “Lamento, não dou a mão a... degenerados”. Mario, em seguida, numa conversa com Francisco, alega conhecer o preconceito que tem de enfrentar: “os militares desprezam gente como eu”.
Em meio a um regime autoritário, prevalece a ordem do ditador, que busca disseminar a ideologia dominante, procurando, através dos processos de submissão da ordem instituída, fazer ou produzir o homem projetado segundo a lógica da identidade e do modelo mecanicista da natureza. Não interessa a esse padrão de conhecimento investir em um modo de pensar assentado numa lógica da diferença e, por isso mesmo, tudo o que é não-idêntico e constitui o outro da razão deve ser colocado fora de um determinado esquema de pensamento já que é suspeito de irracionalidade. A idiossincrasia aos judeus, como um comportamento alérgico e de repulsa, enquadra-se nessa dinâmica. Perseguidos historicamente, eles desenvolveram comportamentos de adaptação ao meio e de esquiva que chamam a atenção justamente porque tentavam passar despercebidos. Essa marca de perseguição desperta sentimentos de raiva, aliando-se, enfim, ao prazer do algoz em praticar a tortura. De forma análoga, toda sociedade monta o seu arcabouço de excluídos. Via de regra, negros, homossexuais, mendigos e prostitutas, só para citar alguns, são utilizados como grupos que não se enquadram na ética do sacrifício, do esforço e do trabalho. Não é por acaso, então, que em certa altura do filme, Mario confessa ter medo de ser jogado numa câmara de tortura.
Embora representados por alguns poucos e às vezes de forma não tão explícita ou direta, De amor e de sombras tenta fazer submergir a trajetória de vários segmentos populacionais: militares, homens, mulheres, homossexuais, crianças, pais de família, religiosos e loucos. Aliás, o que desencadeia a trama do filme e faz Irene se sensibilizar pela situação dos civis é acompanhar de perto o que aconteceu com Evangelina Ranquileo (Anita Lesa). Na comunidade em que vive, ela é considerada uma santa, por ter vertigens e, segundo alguns, por fazer milagres. Numa visita de Francisco e Irene à casa da moça, ela é acometida por ataques. Nesse exato momento, eles são surpreendidos com a chegada dos militares. Na situação, Evangelina agride o general. Depois de alguns dias, ela é levada pelo comandante e desaparece definitivamente.
Seja como for, é a pluralidade de vozes e situações que quebra a predominância de um discurso homogêneo e autoritário. Nesse caso, são vários pontos de vista que se entrecruzam e viabilizam diferentes leituras da história. O que ocorre, nesse particular, é a eliminação de toda aspereza da superfície, excessivamente polida e educada, dos signos do acordo. Conforme complementa Nelly Richard (2002), “resgatar essa memória como campo de forças plurais e divergentes serve para abri-la a uma multiplicidade de pontos de vista cujas contradições não devem permanecer silenciadas pela vontade atual de dissolver toda opacidade, de eliminar todo corpo estranho que ameace tornar turva a visão de uma história social e cultural falsamente reconciliada consigo mesma” (57).
Francisco tem uma missão bastante perigosa, mas importante: dramatizar a história e a memória. Ele – enquanto exilado, que saiu de uma Espanha ditatorial e se refugiou no Chile – sabe da importância de desenterrar os cadáveres da ditadura, para trazer de volta as várias identidades submersas e naufragadas com o propósito de fazer funcionar a justiça. Por isso, cabe a ele, enquanto psicólogo e fotógrafo, ir atrás de testemunhas e de fatos. Maria Elena (Mercedes Moran) é uma das vítimas do sistema a quem Francisco recorre para obter informações. Seu depoimento é surpreendente:
Eles nos pegaram e jogaram em um carro... Eles rodaram durante horas. Eles nos chutaram e nos ameaçaram. Eu só conseguia pensar no meu pequeno Gabrielle em casa, sozinho. Eu queria morrer. Por que não morri?... Eles nos separaram, e ele disse que, se eu não cooperasse, meu marido pagaria. Na cela ao lado, ele passou suas mãos por todo meu corpo. Eu só pensava na vida do meu marido. Eu não queria que ele... ouvisse. Quando ele voltou, uma outra vez e mais mãos no meu corpo todo. Dentro de mim. Eu queria gritar. Não queria que o meu marido ouvisse. Eles continuaram repetidas vezes... Eu devo ter desmaiado. Então eu vi... Juan... ao meu lado... pendurado num poste, assim como eu. Estavam nos torturando. Juan estava em pior estado do que eu, mas... Gabrielle estava lá. Meu filho... lá na sala de tortura... meu filhinho! Eles o seguraram pelos braços e o fizeram assistir. “Se não nos disser os nomes, faremos o mesmo com ele”. Eu não sabia os nomes. Nunca soube. Inventei nomes que eu desconhecia... Eu não agüento mais. Já chega, por favor...
Esse fragmento constitui-se num testemunho. Nota-se que a vítima apresenta dificuldades de expressão. Ao repetir exaustivamente os pronomes eles/ele, o personagem mostra-se incapaz de nomear os algozes que praticaram a tortura. Além disso, são poucas as vezes em que ela faz referência às pessoas envolvidas com o uso de nomes próprios. Citar nomes se torna uma situação de tensão dentro de um relato que pressupõe imagens violentas. As reticências, na citação, são pausas do sujeito torturado. Rememorar o passado e a tortura é doloroso. A intensidade da violência suscita pausas, bloqueios psíquicos e inibições. A situação de medo suspende uma marcação temporal definida: “Eles nos pegaram e jogaram em um carro... Eles rodaram durante horas”. A vítima não tem certeza do que pode ter acontecido com ela: “Eu devo ter desmaiado”. Com o desmaio, o indivíduo perde as condições de controlar suas referências e percepções, e o resultado disso é uma elipse temporal. A sensação de perda da condição humana leva a um esvaziamento do sentido da vida: “Eu queria morrer. Por que não morri?”. Sem linguagem, sem sentido definido e acometida pela dor, a vítima é levada ao esgotamento: “Eu não agüento mais. Já chega, por favor...”.
Segundo a interpretação proposta por Márcio Seligmann-Silva (2003), testemunhar é ter passado por um evento-limite, radical, “passagem essa que foi também um ‘atravessar’ a ‘morte’, que problematiza a relação entre a linguagem e o ‘real’” (8). Conforme complementa o autor, “aquele que testemunha sobreviveu – de modo incompreensível – à morte: ele como que a penetrou. Se o indizível está na base da língua, o sobrevivente é aquele que reencena a criação da língua” (52). Essa problematização da linguagem, visível na fala de Maria Elena, ocorre porque a intensidade do acontecido, no caso, do real, foi maior do que as possibilidades de apreensão pelo sentido humano, algo que concorre para o problema do trauma. Ainda nas palavras de Seligmann-Silva (Ibidem), há uma “impossibilidade de recobrir o vivido (o ‘real’) com o verbal” (46).
É importante buscar compreender tais relações estabelecidas entre o vivido e o verbal a partir de algumas chaves psicanalíticas. Para Freud (1976, 17-85), os mecanismos mentais e psíquicos atuam no sentido de reduzir os gastos de energia e tensões com eventuais choques vividos no cotidiano. Quando se torna difícil lidar com situações externas que são agressivas, os indivíduos reproduzem a fonte de agressão segundo suas possibilidades de controle, como forma de defesa. Além disso, na medida em que os sujeitos projetam para dentro de si questões que estão fora de seu domínio, eles regulam seu estresse, porque se tornam ativos no controle dos estímulos. O sonho seria a manifestação dos conteúdos reprimidos pela mente humana, aquilo que foi internalizado e precisa ser expelido do corpo. Isso significa que o sistema psíquico constrói barreiras tanto a estímulos externos quanto internos.
Estímulos muito fortes do mundo externo poderiam quebrar tais mecanismos de proteção dos indivíduos e transformar-se em novas fontes de estímulos. Assim, por um lado, a força de agressão externa não encontraria barreiras no sistema de proteção, estando o sujeito totalmente indefeso contra tal agressão; por outro lado e em decorrência disso, esses estímulos externos violentos não seriam neutralizados pelo aparato psíquico, tornando-se parte constituinte dele, algo que concorreria para que a pessoa liberasse energia de forma descontrolada, reagindo de modo estranho. Tanto num caso quanto no outro, o vivido seria constituído por experiências cujo grau de intensidade seria maior àquele a que o indivíduo estaria acostumado a aparar e responder. Nesse particular, seu desempenho lingüístico seria insuficiente para cobrir experiências a que seu corpo não está condicionado. Na película de Kaplan, Maria Elena, a vítima que depõe a Francisco, demonstra claramente sinais traumáticos na constituição de sua fala, porque a experiência vivida foi de tamanha intensidade que ela não consegue dar legitimidade ao evento.
A rigor, o trauma que o aludido personagem carrega não deve ser pensado como algo isolado, de caráter puramente individual. Em regimes autoritários, o grau de violência não se restringe a uma ou a outra pessoa, mas à coletividade, que, como um todo, deve ser vítima das atrocidades do sistema para que o modelo se sustente. Isso significa que o trauma coletivo é algo que caracteriza tal sociedade. Assim, o que se teria é uma história como trauma, ou seja, uma história cujos agentes são descritos a partir de sua condição de horror e perplexidade frente ao vivido. O processo de escritura dessa história, se assentada nas bases positivistas, não daria conta de toda essa carga de terror vivenciada, e o que se teria seria uma falsa projeção dessa realidade. Portanto, o processo de escritura da história tal como ensina Benjamin – calcado em ruínas, estilhaços de memória, fragmentos do passado, metáforas e elipses – corresponderia mais de perto ao vivido já que se aproxima de uma experiência de linguagem feita de orações inconclusas, de vocabulários extraviados, de sintaxe desarmada, deixando em suspenso as verdades completas e absolutas.
A rigor, um dos elementos que confere tensão ao filme de Betty Kaplan é a incessante busca pela verdade, algo que teve sua motivação no desaparecimento de Evangelina. Quando Francisco e Irene iniciam uma investigação sobre o paradeiro da moça, se defrontam com fatos assustadores. Depois de algumas tentativas frustradas de encontrá-la, descobrem uma mina abandonada onde os militares escondem os corpos dos presos políticos mortos nos porões das cadeias chilenas. Na ocasião, Francisco entra no esconderijo e consegue tirar fotos, que, em seguidas, são reveladas e ganham destaque nas páginas dos jornais e nos noticiários apresentados na televisão local.
Convém chamar a atenção aqui para o papel da fotografia. Através dela, é possível que se criem novas redes de solidariedade com os detidos-desaparecidos, ao instalar o problema dos corpos como trajeto e circulação da notícia, já que daria visibilidade a imagens de sujeitos rasurados pelo Estado. Em outros termos, Francisco recoloca para circular a imagem de corpos como notícia, não deixando submergir os desaparecidos. Com isso, o protagonista constrói, pode-se dizer, uma alegoria benjaminiana da memória como traço e reinscrição. O resgate da notícia coloca a imagem do desenterrado – o cadáver da ditadura – para funcionar num novo contexto, agora caracterizado pela potencialidade de outras figuras até então apagadas. Como se não bastasse isso, as fotografias reúnem vítimas de modo que vai se formando um grande retrato coletivo com peças com diversas identidades. Nos termos de Nelly Richard (2003), a fotografia contribuiria na formação de
[u]m retrato genealógico no qual o heterogêneo (o não-idêntico, o não uniforme), o não sincrônico (diferentes temporalidades sociais e históricas separadas por abismos de distância), o não-representado (o menor, o subalterno) vão nos mostrando que a única identidade reconstruída, atualmente, é aquela identidade na qual lutam, antagonisticamente, memória e destempos, colapsos de sentido e forças vitais (62).
Não é por acaso que Francisco e Irene entram para a extensa lista de perseguidos pelo regime militar. Da ótica dos dirigentes, eles são subversivos, uma vez que ameaçam a integridade de um projeto calcado em paradigmas autoritários. Os argumentos de Jacques Le Goff (1992, 429), aliás, apontam para essa linha de raciocínio. O autor salienta que a possibilidade de os indivíduos excluídos da história terem acesso à memória e, por sua vez, ao passado trágico, é um fator alarmante e preocupante das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Le Goff enfatiza o seu posicionamento crítico ressaltando que os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores dos mecanismos de manipulação da memória coletiva.
Segundo se verifica nos apontamentos precedentes, os regimes autoritários têm a capacidade de estabelecer limites na autoconsciência da sociedade. A falta de reflexão, conforme indicam os aludidos estudiosos, conduz ao positivismo da interpretação, latente na pesquisa histórica burguesa, a qual, segundo Jeanne Marie Gagnebin (1982), não questiona nem sua posição, nem a maneira pela qual a história foi contada e transmitida, e ainda menos, a maneira pela qual ela se realizou. Portanto, conforme alega a autora, “[e]screver a história dos vencidos exige a aquisição de uma memória que não consta nos livros da história oficial” (67).
Essa falta de reflexão crítica sobre a maneira de se conceber a história universal explicaria também o conformismo dos grupos reprimidos, uma vez que ficaria suprimida a possibilidade de questionamento da história que fracassou, já que ela não mais constitui objeto de pesquisa. Isso abre margem para que a classe vencedora propague as suas ideologias de forma incontestável, inviabilizando, com isso, qualquer manifestação antagônica a seus interesses. Assim, segundo Benjamin (1994), é preciso construir um conceito de história que corresponda à premissa de que “o estado de exceção” em que se insere a tradição dos oprimidos constitua regra geral, justamente para que os episódios violentos não se extingam da memória dos indivíduos (226).
Denunciar os horrores do regime autoritário adotado por Pinochet é uma meta tanto de Francisco quanto de Irene, mas é um objetivo comum a várias outras pessoas. O fato de Evangelina ter sido assassinada brutalmente sensibiliza inclusive o Sargento Faustino Rivera (Pedro Segni), primo da moça. Não só ela foi morta pelos militares, mas também o seu irmão Pradelio Ranquileo (Julio Galan). Rivera, que considerava tanto Evangelina quanto Pradelio como irmãos, numa conversa com Irene, confessa querer justiça contra a morte dos dois, fato esse que o estimula a contar toda a verdade à jovem jornalista. Não só isso, o Sargento entrega à moça uma caderneta contendo o nome de vítimas e de pessoas que seriam assassinadas. Faustino, como se observa, coloca-se contra um sistema no qual ele próprio está inserido, e isso é motivo para que seja perseguido e executado. O mesmo destino é reservado a Irene: ela é baleada em plena luz do dia, sendo forçada, juntamente com Francisco, a deixar o país, contando com a ajuda de Mario e de José (Diego Wallraff), irmão do protagonista.
Os dois ficam exilados na Espanha durante 15 anos e, quando a democracia é restaurada pacificamente no Chile em 1989, eles voltam para suas famílias. No final, é bastante sugestiva a fala de Irene: “Francisco e eu pensamos na melhor forma de contar a história das vidas confiadas à nossa memória”. Dessa colocação, pelo menos três considerações podem ser levantadas. A primeira é a de que essa porção da história do Chile não é narrada do ponto de vista dos militares, ou seja, ela não é apresentada a partir do olhar dos dominantes, o que concorre para que uma das premissas benjaminianas seja satisfeita, qual seja a de contar uma história que não consta nos livros ou documentos oficiais. A segunda diz respeito a uma possível ambigüidade da frase: que “vidas” são essas a que Irene se refere? Possivelmente não seja somente a sua história de vida e a de Francisco, mas a de todos que, de uma forma ou de outra, foram vítimas das atrocidades de um sistema. A terceira envolve a maestria de como essa história foi transmitida. Numa época em que, segundo Benjamin, a arte de narrar perdeu-se gradativamente – e isso não é por acaso –, torna-se louvável a forma como Irene resgatou o passado, indo contra uma história oficial e positivista, dando luz a uma memória em vias de extinção.
A memória desempenha funções importantes. Segundo Benjamin (1994), ela propicia uma releitura da história, levando as classes oprimidas ao inconformismo e, como decorrência disso, a uma tomada de consciência no que se refere às suas condições passadas e presentes, orientando-as, assim, em direção à libertação. Geoffrey Hartman (2000), nessa mesma linha argumentativa, confere à memória um aspecto que aponta rumo ao futuro. Arthur Nestrovski (2000) descreve o seu papel nos seguintes termos: “[c]ada memória resgatada, cada relance é como um talismã, um instrumento para nos fazer sentir alguma coisa de novo, antes que a repetição e as defesas cubram a percepção com o véu da indiferença”(192).
Portanto, o não esquecimento dos fatos trágicos consignados pelos regimes autoritários é importante no sentido de se evitar a repetição das experiências históricas que têm proporcionado o desconforto das classes menos favorecidas. Com isso, De amor e de sombras, ao exprimir momentos da sociedade chilena passada, desempenha, no presente, um papel que orienta em direção ao futuro. Em outros termos, ao ser revelada a memória dos excluídos, é possível refletir o passado e propor novos rumos para a sociedade reprimida. Conforme os termos usados por Francisco para aconselhar Maria Elena: “Você deve se cuidar, lutar e ser forte. E lembre-se: não se esqueça... também precisamos de nomes, para que isso nunca mais aconteça. Nunca mais!”.

Referências

Filmografia

De amor e de sombras. Direção de Betty Kaplan. Roteiro de Donald Freed. Versátil, Argentina-Espanha [País de origem: Estados Unidos], 110 min., 1993.

Bibliografia

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