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Literatura e Autoritarismo
Dominação e Exclusão Social
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 11 

VIDAS SECAS E O SOL DA ESPERANÇA: UMA ANÁLISE DA OBRA DE GRACILIANO RAMOS

Victor de Oliveira Pinto Coelho1
Resumo: O presente artigo tem como motivação fazer uma breve reflexão sobre o sentido existencialista dos romances de Graciliano Ramos, tendo como foco central Vidas Secas, para, no final, fazer uma ligação da obra com a visão política adotada pelo escritor. A intenção foi promover um diálogo das obras do autor com a dimensão libertária da obra de K. Marx (tomando como parâmetro um de seus textos) e com a psicanálise. Neste sentido, procuramos afastar a imagem niilista que se pode facilmente ter sobre os romances do autor (em especial os três primeiros), e destacar, neles, a dimensão do afeto e da esperança em contraste com a da violência.
Palavras-chave: Graciliano Ramos, psicanálise, marxismo, violência, liberdade.
Abstract:The present paper has as central motivation a brief reflection on the existentialist sense of Graciliano Ramos’ novels, and has Vidas Secas as the central focus. The paper does a link between the work of Graciliano Ramos and his political view. The intention was to promote a dialogue between his work, and the libertarian dimension of K. Marx’s work (using one of his books), and Psychoanalysis. In this sense, we removed a nihilist image that we can easily get reading Graciliano Ramos’ novels (especially the first three), and bring out into them the affection and hope dimension, in opposition to the violent one.
Key-words: Graciliano Ramos, Psychoanalisis, Marxism, Violence, Freedom.
Tanto no campo da psicanálise quanto no da política, o domínio da linguagem e a autonomia da palavra são fundamentais para o exercício da liberdade. E Vidas Secas trata não só das dificuldades de uma família de sertanejos num ambiente de natureza hostil, mas nos mostra também como Fabiano, ao lidar com o patrão ou o soldado amarelo, sofre de um tipo especial de desamparo. Como chama a atenção Miriam Debieux Rosa, para além do desamparo social, é pelo desamparo discursivo que os indivíduos ficam mais sujeitos àquilo “que Pierre Bourdieu descreve como violência simbólica, que perpetua e submete os sujeitos ao discurso social dominante, promovendo sua adesão aos fundamentos da organização social que lhes atribui lugares marginais” (Rosa, 2002, p. 1).
Pretendemos realizar aqui, em parte, aquilo que foi apenas sugerido por Álvaro Lins no terceiro de seus ensaios sobre a obra de Graciliano: discutir a significação política de sua obra, e do ponto de vista do marxismo, em particular.2 Mas, nossa preocupação aqui não é a de fazer mais uma discussão sobre o caráter social dos romances do autor, mas sim produzir uma interpretação do sentido existencial da obra de Graciliano, fazendo nosso próprio diálogo de sua obra com Marx e com a psicanálise.
Os romances de Graciliano Ramos são marcados por uma escrita sem concessões a floreios líricos e, especialmente, como observa o mesmo Álvaro Lins, por um mergulho na psicologia humana, onde mesmo o cenário exterior “não aparece muito objetivamente, [...] mas somente em função de seus personagens” (Lins, 2002, p. 130). Porém, diferente do que coloca este autor, acreditamos ser a obra de Graciliano menos o fruto e a representação de “um mundo sem amor e sem alegria” (idem, p. 137), e mais uma tentativa de transcender suas dores e angústias mediante o trabalho de escrita, que traz, por sua vez, uma espécie de análise da sociedade, de algumas de suas contradições. Análise esta que só podemos perceber se fizermos como faz o próprio Graciliano com seus personagens, mergulhando na narrativa e percebermos detalhes significativos de seus romances.
Antes de mais nada, faz-se necessário afastar qualquer suspeita de que nossa leitura da obra literária de Graciliano Ramos vá tomá-la como algo auto-referente, como produto de um gênio individual, ou como referente apenas aos dramas individuais do autor. Mas, também não mais convém a análise de uma obra como mero “reflexo” do contexto ou da estrutura. Fiquemos com as palavras de João Luis Pereira Ourique: “Nota-se que pesquisadores da área da literatura preocupam-se em demasiado com a forma e a estrutura interna de um texto, sem perceberem que texto também é contexto e como tal está inserido em uma sociedade” (Ourique, 2002).
A obra literária revela muito do próprio autor, de seus dilemas e angústias pessoais, e, mesmo que não pretenda ser engajada ou reflexiva sobre sua época, não é possível ser desligada do contexto em que foi produzida. No caso de Graciliano Ramos, temos um autor comprometido com uma literatura social (que vai além de seus romances) e com uma visão política particular. Segundo Mannuella Luz Valinhas, se, por um lado, “teóricos da linguagem e historiadores da literatura acabaram conseguindo estabelecer que os textos não reproduzem a realidade de forma transparente, nem, tampouco, fixam apenas uma visão particular (do autor) sobre determinado assunto”, por outro lado, o texto também “teria como objetivo ‘remeter’ à própria realidade de produção, tendo como objetivo fundamental a tentativa de construí-la, mudá-la” (Valinhas, 2005, p. 18).
Assim, é sempre necessário fazer referência ao caráter radical da obra de Graciliano – obra, aqui, no sentido mais amplo, abarcando tanto seus textos literários quanto a trajetória política do próprio autor. E, por ser radical, entenda-se “agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem” (Marx, 2005, p. 151).
Acreditamos que o sentido político da obra de Graciliano não pode ficar circunscrito, mesmo no caso dos romances, a Vidas Secas. Mesmo que os outros três romances – Caetés, S. Bernardo e Angústia – estejam centrados em dramas particulares, há neles a mesma tensão entre violência, autoritarismo, incompreensão e brutalidade, de um lado, e a dimensão sufocada do afeto, de outro. Dizendo outra forma, parece-me que nesses três romances, a dimensão do afeto e da compreensão são valorizados numa “leitura negativa”, pela perspectiva dramática de sua não realização. Além disso, em conjunto com Vidas Secas, configurariam um tipo de literatura existencialista, mesmo que não assumida desta forma pelo autor – que preferiu explicitar seu engajamento e tomar partido da literatura social por intermédio de suas crônicas (ver Santos, 2006).
Podemos encarar os três primeiros romances de Graciliano como um mergulho tanto na psicologia humana quanto, obviamente, um acerto de contas do autor com seus próprios fantasmas e dilemas. É Álvaro Lins que chamou a atenção para a ligação da infância difícil de Graciliano Ramos, revelada em Infância, com o caráter cruel e trágico de seus romances, sobretudo os três primeiros. “Ele não escreveu estas memórias apenas por motivos literários, antes para se libertar dessas lembranças opressivas e torturantes” (Lins, 2002, p. 41). Álvaro Lins só erra ao emprestar às obras de Graciliano a aura de um pessimismo e niilismo, como se ele pretendesse se libertar de tais lembranças apenas para atirá-las, sem piedade – mas com estilo – na cara de seus leitores. Um “niilismo implacável e devastador” (idem, p. 142).
Para tentarmos demonstrar o equívoco de enxergar os romances de Graciliano Ramos como expressão de “sentimentos de indiferença e desprezo em face de toda humanidade” (idem, p. 141), vamos jogar luz em alguns detalhes das narrativas – mas sem pretender esgotá-los, no espaço de um artigo –, para depois percebemos como eles estão presentes em Vidas Secas, obra que, devido a seu caráter mais explicitamente social, pode ser visto como uma ponte entre os romances anteriores e a visão política do autor. Quanto aos três primeiros romances, faz-se pertinente remetermo-nos novamente a João Luis Pereira Ourique:
Não há condições de um indivíduo se alienar completamente do mundo a sua volta para produzir sua obra, ele estará pleno de traumas, recalque e revoltas, pois esse indivíduo se desnuda na arte literária, mostrando mais do que aparenta ser, ou seja, diz mais sobre si e sobre a realidade, só que de forma velada e de difícil compreensão (Ourique, 2002).
Mas, vamos nos abster aqui de fazer referências à vida pessoal de Graciliano Ramos, para nos atermos apenas às narrativas de seus romances.
1. O homem e seu lugar no mundo
O protagonista-narrador de São Bernardo é, certamente, bem diferente e distante do João Valério de Caetés e do Luís da Silva de Angústia. Paulo Honório é um fazendeiro ambicioso e bruto, e a narrativa se passa no ambiente de sua fazenda. Os outros dois são legítimos representantes do mundo urbano, respectivamente, um escrivão de uma casa comercial e um funcionário público. Aliás, Luís da Silva, que trabalha na diretoria da fazenda escrevendo artigos por encomenda, já está prefigurado em Caetés através de alguns personagens e casos relacionados ao jornal Semana.
Se a trajetória de Paulo Honório é a de um homem que conseguiu passar por cima de tudo e obter tudo que pretendia, chegando a uma situação de proeminência, João Valério e Luís da Silva sofrem com suas vidas medíocres, e o que ambos têm em comum é o desejo de se tornarem alguém especial mediante a escrita. O primeiro, motivado pela paixão por Luísa, dedicava-se a escrever a histórias dos caetés.
Eu pensei que o conhecimento daqueles pequeninos bisões de terracota afeiçoados pelos dedos rudes de um bárbaro, há milênios, numa caverna lôbrega entre penhascos, era para mim aquisição preciosa. Talvez eu pudesse também, com exígua ciência e aturado esforço, chegar um dia a alinhavar os meus caetés. Não que esperasse embasbacar os povos do futuro. Oh! não! As minhas ambições são modestas. Contentava-me um triunfo caseiro e transitório, que impressionasse Luísa, Marta Varejão, os Mendonça, Evaristo Barroca. Desejava que nas barbearias, no cinema, na farmácia Neves, no café Bacurau, dissessem: “Então já leram o romance do Valério?” Ou que, na redação da Semana, em discussões entre Isidoro e Padre Atanásio, a minha autoridade fosse invocada: “Isto de selvagens e histórias velhas é com o Valério”. (Ramos, 1978, p. 49-50)
Luís da Silva também tem frustrantes pretensões literárias. E será de outra forma que este personagem conseguirá arrebentar suas cadeias internas e derrotar aquele que mais desprezava, Julião Tavares. Neste ponto, Luís da Silva se aproxima de Paulo Honório. Se este fez de seu egoísmo, ambição e possessividade as sementes de sua tragédia, será também pela violência que Luís da Silva conseguirá obter aquilo que deseja, eliminar seu rival, aquele que não só roubara sua Marina, como também era representante da elite dominante.3
Já em estado adiantado de loucura, Luís persegue Julião Tavares à noite, num lugar ermo, próximo a linha do bonde. E, enquanto o persegue, escondido, confessa:
Ao mesmo tempo encolerizei-me por eles estar pejando o caminho, a desafiar-me. Então eu não era nada? Não bastavam as humilhações recebidas em público? No relógio oficial, nas ruas, nos cafés, virava-me as costas. Eu era um cachorro, um ninguém. _ “É-me conveniente escrever um artigo, seu Luís”. Eu escrevia. E pronto, nem muito obrigado. Um Julião Tavares me voltava as costas e me ignorava. Nas redações, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infeliz, amarrado. Mas ali, na estrada deserta, voltar-me as costas como am cachorro sem dentes! Não. Donde vinha aquela segurança? Eu era um homem. Ali era um homem.
_ Um homem, percebe? Um homem (Ramos, 1984, p. 197)
Momentos depois, Luís comete o crime, enforcando seu desafeto:
O corpo de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava arrastar-me, ora se inclinava para trás e queria cair em cima de mim. A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem por ali seriam figurinhas insignificantes. Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que meu pai me dava no poço da Pedra, a palmatória de mestre Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da revisão, a impertinência macia do diretor, tudo virou fumaça (idem, p. 198)
E é a lembrança da figura de José Baía, rude capataz de seu avô, proprietário de uma fazenda, que acompanha Luís no momento do crime.
No caso de João Valério, ele não chega a fazer de seus desejos e dilemas uma tragédia. Mas, o espectro dos caetés – a representação, na obra em questão, da brutalidade, dos instintos atávicos – o acompanha. Após mais uma visita a Luísa, João Valério fica entorpecido, imaginando o que poderia ter feito: “increpei-me com amargura por me não haver apoderado daquela mão que me repelia, não a ter coberto de beijos. Sou um desastrado” (Ramos, 1978, p. 104). Neste estado de entorpecimento (termo usado pelo narrador), ele despertou “com uma idéia esquisita”, que o “fez rir: o Balbino [um pobre descendente indígena] transformado em caeté de 1556. O Balbino, um podre-diabo coxo e bêbado, esfolando um homem pendurado por uma perna. Mas logo enxotei este pensamento mesquinho que toldava a passagem mais brilhante da minha vida” (idem, p. 105).
Esta estanha passagem pré-configura tanto o possessividade brutal de Paulo Honório quanto a lembrança, por parte de Luís da Silva diante dos caprichos de Mariana, de sua avó, sinhá Germana, que, “doente ou com saúde, quisesse ou não quisesse, lá estava pronta, livre de desejos, tranqüila, para o rápido amor dos brutos. Malícia nenhuma”. E completa: “Como a cidade me afastara de meus avós! O amor para mim sempre fora uma coisa dolorosa, complicada e incompleta” (Ramos, 1984, p. 106). Já Paulo Honório personifica a brutalidade áspera diante da qual a dimensão do afeto é algo anômalo.
Madalena, a mulher – humanitária, mãos-abertas – não concebe a vida como relação de possuidor a coisa possuída. Daí o horror com que Paulo Honório vai percebendo a sua fraternidade, o sentimento incompreensível de participar na vida dos desvalidos, para ele simples autômatos, peças da engrenagem rural.
[...] A bondade humanitária de Madalena ameaça a hierarquia fundamental da propriedade e a couraça moral com que foi possível obtê-la. O conflito se instala em Paulo Honório, que reage contra a dissolução sutil da sua dureza.
[...] A solução do conflito é o ciúme, que mata a mulher (Cândido, 1972, p. 20).
Enfim, a dimensão do afeto é, para os três protagonistas, algo difícil.
É pertinente aqui notar algo comum a Luís da Silva e Paulo Honório: a neurose obsessiva, que se liga tanto a uma pretensão de perfeita ordem como também a uma pulsão de domínio, pulsão esta que nos remete também à “idéia esquisita” de João Valério. É a partir da remissão à dimensão neurótica dos personagens que podemos perceber, a seguir, outra faceta dos três romances, a dimensão da violência e sua transmissão e imposição de forma vertical.
Antes, lembremo-nos daquilo que é sufocado nos três primeiros romances: o afeto. Caetés começa com João Valério beijando o pescoço de Luísa, no momento em que ela abaixava para lhe mostrar um livro. Mais tarde, embora se desculpando pelo desgosto da lembrança (Luísa era uma mulher casada), confessa: “E foi aquele o único momento feliz que tive” (Ramos, 1978: 61). Luís da Silva, apesar de implicar com Marina, tem-lhe ternura, que ele procura, via da regra, recalcar, mas mesmo o seu crime tem por motivação, em alguma dose, a compaixão por Mariana, abandonada por Julião Tavares. Mas, acaba louco e sozinho. O ciúmes doentio de Paulo Honório acaba provocando o suicídio de Madalena, e é justamente a tragédia final que o levou a escrever sua história, para tentar compreendê-la.
2. O sol da ilusão e a transmissão da violência
A partir do que colocamos inicialmente, podemos ver na tarefa auto-imposta de Paulo Honório um tênue reflexo da motivação do próprio autor ao escrever suas obras. Mas, o ponto que queremos chamar a atenção aqui é como o autor trabalha, em suas obras, a questão da linguagem também como barreira social, e, mais ainda, como demarcadora de uma hierarquia social.
Em Caetés, onde as relações entre os personagens são horizontais – como observou Antonio Cândido (1972) –, isto é apenas esboçado, indiretamente, pela antipatia e ódio latente que João Valério nutre pelos bacharéis Evaristo Barroca e Dr. Castro e suas maneiras formais e afetadas de se expressarem. Mas, interessante é o debate que se desenrola, durante do jantar de aniversário de Vitorino Teixeira, quando Dr. Castro levantou o tema da educação e Evaristo Barroca também preconizou “o esclarecimento das massas, governadas por uma elite de gênio”. Momento em que Padre Atanásio indaga: “_ Mas como é que o povo aprende, se os senhores não ensinam? Perguntou o Reverendo com acrimônia” (Ramos, 1978, p. 82). Contudo, mais adiante na conversa, há algo de mais significativo, na fala intervenção do tabelião Miranda Nazaré:
_ Isso de liberdade é pilhéria, doutor. Não precisamos liberdade, precisamos cacete. Foi assim que sempre governaram, e assim vai bem. Gostamos de levar pancada. Veja como admiram por aí os bandidos do nordeste. E a instrução, para que serve a instrução à canalha? (idem, p. 83)
Mais adiante, diz ele:
_ [...] Quando o nosso matuto tem um filho opilado ou raquítico, manda domesticá-lo a palmatória e a murro. O animal aprende cartilha e fica sendo consultor lá no sítio. Torna-se mandrião, fala difícil, lê o Lunário Perpétuo e o Carlos Magno à noite, na esteira, para família reunida em torno da candeia. Qual é o resultado? A primeira garatuja que o malandro tenta é uma carta falsa em nome do pai, pedindo dinheiro ao proprietário” (idem, p. 84).
Adrião Teixeira concorda com a avaliação, declarando “que dos matutos que ele conhecia os melhores eram os analfabetos” – “ O roceiro que soletra tem vergonha de pegar na enxada”, diz ele (idem, ibidem). Veremos, no tópico a seguir, como estes juízos são revertidos na em Vidas Secas, quando o autor assume a perspectiva dos matutos.
Em São Bernardo, a barreira da linguagem entre Paulo Honório e Madalena é algo que vem se juntar à possessividade e brutalidade do primeiro para semear a tragédia final. E, talvez uma das coisas mais interessantes nesse romance é o fato de que, somente nele, quem fala a linguagem mais elaborada é a personagem com quem somos propensos a valorizar, pois Madalena, como escreveu Antonio Cândido, incorpora a bondade humanitária, e também incorpora a dimensão do afeto.
Já em Angústia, a linguagem está também presente como barreira, e a perspectiva volta a ser como a do primeiro romance. Por exemplo, quando Luís da Silva andava pelas ruas da periferia da cidade, entrou numa bodega e “tentava conversas com os vagabundos, bebia aguardente” (Ramos, 1984, p. 117). “Encolhia-me timidamente”, diz o narrador. “Não simpatizavam comigo, Eu estava ali como um repórter, colhendo impressões. Nenhuma simpatia. / A Literatura nos afastou: o que sei deles foi visto nos livros [...]” (idem, p. 118).
Significativa é a lembrança que tem de José Baía, no momento em que perseguia Julião Tavares. Ele se recordava do antigo jagunço de seu avô, e sentia saudade “das conversas infantis e do copiar”. E indagava: “_ José Baía, meu irmão, onde estarás a esta hora? Terás morrido de tocaia ou mofarás numa cadeia nojenta de grades pretas e gordurosas?” (idem, p. 196). Mais adiante, constatará: “José Baía não era meu irmão: era um estranho de cabelos brancos que apodrecia numa cadeia imunda, cumprindo sentença por homicídio. _ ‘Recebeu cópia do libelo?’ José Baía não soubera responder. Tinha recebido e não tinha. Que resposta devia dar àquela pergunta incompreensível?” (idem, p. 197-198). Veremos, adiante, como Vidas Secas jogará luz especial neste drama particular.
Aqui, o que o caso de José Baía coloca é a barreira da linguagem como garantia da manutenção de uma relação de poder. Dito de outra forma, a hierarquia social é reforçada pela manutenção da violência simbólica. Dentro de nossa perspectiva teórica, cabe pensar esta violência simbólica mediante o conceito de imaginário. E como as obras de Graciliano Ramos nos trazem uma perspectiva interessante de diálogo com estas questões.
Em Caetés, logo após acordar de seu delírio, quando teve aquela “idéia esquisita”, João Valério narra:
Olhei os astros. Não conheço nenhum, mas precisei comunicar com eles, repartir com a imensidade uma aventura que me esmagava. Bradei: “Luísa me ama! Estrelas do céu, Luísa me ama!” Imaginei que as estrelas do céu ficavam cientes e isto me deu satisfação. Uma delas tremeluziu mais que as outras, respondeu-me de lá, vermelha e grande. Desejei saber o nome daquele Sol complacente. Belatriz? Altair? Aldebarã? Não conheço nenhum. Se eu fosse selvagem, metê-lo-ia entre os meus deuses. Na estava ali ninguém que me pudesse informar (Ramos, 1978, p. 105).
No final da narrativa, João fará referência a esta passagem, de forma um tanto ácida. Antes dela, recordemos de novo a questão da neurose obsessiva, e é pertinente observar aqui que a neurose obsessiva se liga a um supereu (ou superego) excessivamente exigente. E Slavoj Žižek reflete bem como isto se liga à questão da autoridade:
A obediência “externa” à Lei [...] não é a submissão à pressão externa, à chamada “força bruta” não ideológica, mas sim a obediência ao Mandamento na medida em que ele é “incompreensível”, não compreendido, na medida em que conserva um caráter “traumático”, “irracional”: longe de esconder sua autoridade plena, esse caráter traumático e não integrado da Lei é uma condição positiva dela. É esse o apespecto fundamental do conceito analítico de supereu: uma injunção vivenciada como traumática e “absurda” – isto é, que não pode ser integrada no universo simbólico do sujeito. Mas, para que a Lei funcione “normalmente”, esse fato traumático de que “o costume é a eqüidade inteira, pela simples razão de que é aceito” – a dependência da Lei em relação a seu processo de enunciação, ou [...] seu caráter radicalmente contingente –, deve ser recalcado no inconsciente, através da experiência ideológica imaginária do “sentido” da Lei, de sua fundamentação na Justiça, na Verdade (ou, num sentido mais moderno, na funcionalidade) (Žižek, 1996, p. 319).
Ou seja, a obediência cega relaciona-se necessariamente a uma dimensão imaginária, que recalca a contingência, e é exatamente o processo conturbado do recalcamento que pode levar à repressão daquilo que foge à ordem. Vamos primeiro à dimensão imaginária, mas, antes, cabe observar que a dimensão imaginária, no sentido lacaniano, liga-se ao sujeito narcísico, preso ainda ao Eu Ideal, uma ilusão de ordem e completude, e Žižek faz magistralmente a ponte entre a psicanálise e a análise da ideologia – ideologia como uma ilusão imaginária no nível das relações sociais.
Graciliano Ramos, ao longo de seus romances, tem um alvo certo. Começando por Caetés, o final deste romance, embora não traga, como nos dois romances seguintes, uma dimensão de tragédia, traz a constatação de que os homens ditos civilizados, a começar pelo próprio narrador, não diferem, afinal, dos caetés:
[...]Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isto, um caeté, estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente... Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar... O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá [...]; e depois dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto, aborrecimentos sem motivo que me atiraram para a cama, embrutecimento e pesado... Esta inteligência confusa, pronta a receber sem exame o que lhe impigem... A timidez que me obriga a ficar cinco minutos diante de uma senhora, torcendo as mãos com angústia... Explosões súbitas de dor teatral, logo substituídas por indiferença completa... Admiração exagerada às coisas brilhantes, ao período sonoro, às miçangas literárias, o que me induz a perdurar no que escrevo adjetivos de enfeite, que depois risco...
[...] Um caeté, sem dúvida. O Pinheiro é um santo, e eu às vezes me rio dele, sou razão a Nazaré, que é canalha. Guardo um ódio feroz ao Neves, um ódio irracional, e dissimulo, falo com ele: a falsidade do índio. E um dia me vingarei, se puder. Passo horas escutando as histórias de Nicolau Varejão, chego a convencer-me de que são verdades, gosto de ouvi-las. Agradam-me os desregramentos da imaginação. Um caeté.
[...] Que semelhança não haverá entre mim e eles! Por que procurei os brutos de 1556 para personagens da novela que nunca pude acabar? Por que fui provocar o Dr. Castro sem motivo e fiz de um taco ivirapema para rachar-lhe a cabeça?
[...] Diferenças também, é claro. Outras raças, outros costumes, quatrocentos anos. Mas no íntimo, um caeté. Um caeté descrente.
[...] Descrente? Engano. Não há ninguém mais crédulo que eu. E esta exaltação, quase veneração, com que ouço falar em artistas que não conheço, filósofos que não sei se existiram!
Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo – uma estrela no céu, algumas mulheres na Terra... (Ramos, 1978, p. 216-217)
Talvez possamos pensar tanto João Valério quanto Luís da Silva como dois personagens que, semelhante a Antoine Roquentin de A Náusea (Sartre, 1991), têm uma visão desencantadora e incômoda sobre a sociedade, ao mesmo tempo em que procuram de alguma forma fugir ou superar o tédio existencial. Assim, e fazendo aqui um pontual diálogo entre os contemporâneos romances de Graciliano Ramos com aquele de Jean-Paul Sartre, João Valério, Luís da Silva e Antoine Roquentin vêem na produção de uma obra literária um possível marco para a superação de suas vis existências – e neste ponto, recordamos que a neurose se liga a uma auto-exigência (mediante o supereu), que se liga também a uma exigência excessiva para com o mundo exterior. Comparando-se J. Valério com Roquentin, há no primeiro um tom mais pessimista: a confiança no poder criativo vem, no segundo, após o sentimento de desilusão final de sua relação com Anny, e sob a inspiração da música. Já no caso de Valério, há uma desilusão com seu projeto de escrita – pois percebia que ele apenas refletia a real natureza (selvagem, no caso) da sociedade – que vem acompanhar a desilusão da relação entre ele e Luísa.
De qualquer forma, o que nos interessa apontar aqui é que, nas três narrativas – chegaremos a Luís da Silva a seguir –, há um processo de desnudamento da sociedade, feita por três personagens (e pelos autores) que, ao fazê-lo, desnudam-se eles mesmos. O que há neles é uma recusa das aparências, uma crítica ácida e feroz dos costumes tidos como civilizados e corretos. No caso dos personagens de Graciliano Ramos, é como se eles, vítimas de seu próprio feitiço, tivessem desabado definitivamente ao traumático, definido por Miriam Debieux Rosa “como a desorganização subjetiva decorrente da emergência daquilo que está fora do sentido e da significação. O traumático não designa a qualidade de um acontecimento, mas a desestruturante incidência subjetiva daquilo que irrompe por fora de uma trama de saber” (Rosa, 2002, p. 8).
Antes de prosseguirmos, é interessante notar que Madalena representará, para Paulo Honório, uma dupla perturbação de seu mundo, tanto pela dimensão do afeto, que ela encarna, quanto pelo momento fatídico de seu suicídio, que se inscreve na alma de Paulo Honório como um trauma. E o mecanismo de recalque é representado na obra pelos pios de coruja, as mesmas que tinham se alojado no forro da igreja no dia fatídico do suicídio (Vasconcelos, 2006), quando Paulo Honório foi ter com Madalena na justamente na igreja.
Defronte do escritório descobri no chão uma fôlha de prosa, com certeza trazida pelo vento. Apanhei-a e corri a vista, sem interesse, pela bonita letra redonda de Madalena. Francamente, não entendi. Encontrei diversas palavras desconhecidas, outras conhecidas de vista, e a disposição delas, terrìvelmente atrapalhada, muito me dificultava a compreensão. Talvez aquilo fosse bem feito, pois minha mulher sabia gramática por baixo da água e era fecunda em riscos e entrelinhas, mas estavam riscados períodos certos, e em vão tentei justificar as emendas. _ Ocultar com artifícios o que deve ser evidente!
Passeando entre as laranjeiras, esqueci a poda, reli o papel e agadanhei idéias indefinidas que se baralharam, mas que me trouxeram um arrepio. Diabo! Aquilo era trecho de carta, e de carta a homem. (Ramos, 1972, p. 216)
“A sentença de Paulo Honório não é necessariamente acusatória. Sendo ela uma definição do fazer literário, é afirmativa. Aquilo que precisa se tornar evidente, e ainda não é, é ocultado, guardado pelo texto literário através de artifícios, como o pio da coruja” (idem). E a opção de Graciliano Ramos era por uma escrita sem floreios, direta, e isto corresponde com o sentido existencial de sua obra.
Assim, se formos além do ponto de vista e do destino particular dos personagens e pensarmos naquilo que nos trazem as narrativas, há também a idéia presente de alguma forma de superação. É como se houvesse uma proposta de engajamento que deva partir da superação de quaisquer ilusões, para ser verdadeiramente livre, proposta esta semelhante ao que propôs Karl Marx em 1843 – e que, a nosso ver, corresponde ao núcleo libertário de sua obra:
A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, na para que o homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo e, assim, em volta de seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não circula em torno de si mesmo (Marx, 2005, p. 146).
Um ser humano desenganado, liberto de suas ilusões, que possa, a partir daí, encontrar seu verdadeiro sol. Mas, como já vimos, em Luís da Silva a “flor viva” foi substituída por uma ação de violência. Momentos antes de assassinar Julião Tavares, no momento em que o perseguia, dizia o personagem:
Nessa marchas compridas a que me habituei – um, dois, um, dois – a fadiga adormece e quase não penso. Exatamente como se uma vontade estranha me dirigisse, um sargento invisível que se descuidasse do exercício e fosse pelo campo, embrutecido pela cadência – um, dois, um, dois – esquecido da voz de comando, pensando nos versos de um Julião Tavares ou nos bilhetes de outra Marina. Ando meio adormecido. Se alguém me gritasse: _ “À direita, à esquerda”, volveria à direita, volveria à esquerda, sem procurar saber donde partia a ordem. Por que à direita? Por que à esquerda? Poderia ser meia-volta. Mas ninguém fala, e vou para a frente, sem perceber que posso voltar, libertar-me da autoridade de um sargento invisível e caminhar naturalmente, parando, observando as casas e as pessoas. De repente os trilhos desaparecem e relaxa-se a corda do boneco (Ramos, 1984, p. 191).
“Uma hora antes caminhava com animação, movia-me executando ordens, tinha os membros amarrados a cordões. Agora podia desviar-me para um lado e para outro, avançar, recuar (idem, p. 193)”, e então, como vimos, se libertou do “sargento invisível”.
Neste ponto, é pertinente voltarmos a Marx, numa interessante passagem de sua introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel:
Lutero venceu a servidão pela devoção, mas porque pôs no seu lugar a escravidão mediante a convicção. Abalou a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Transformou o homem da religiosidade exterior, fazendo da religiosidade a essência mais íntima do homem. Libertou o corpo de seus grilhões porque com grilhões prendeu o coração.
Mas, embora o protestantismo não fosse a verdadeira solução, pelo menos pôs o problema de modo correto. Já não se tratava, portanto, da luta do leigo com o padre fora dele, mas da luta com o seu próprio padre interior, conta a própria natureza sacerdotal. E se a metamorfose protestante dos leigos alemães em padres emancipou os papas-leigos – os príncipes, juntamente com o clero, os privilegiados e os filisteus, a metamorfose filosófica dos alemães eclesiásticos em homens emancipará o povo (Marx, 2005, p. 152)
Embora diga respeito mais diretamente à história alemã, podemos tomar essa passagem no que ela revela de mais instigante para uma análise teórica. Para além da crítica mais evidente que o autor faz sobre a autoridade do Estado e da religião, o que Marx nos chama a atenção é para o fato de que uma autoridade pode exercer seu poder tanto externa como internamente, e neste último caso é pertinente mencionar, como Slavoj Žižek, o conceito freudiano de supereu (ou superego). Não adianta lutar contra a autoridade externa quando os princípios desta autoridade estão interiorizados, prendendo com grilhões nossos corações. Podemos, assim, seguir Marx e dizer que, ao trazermos a batalha para o palco de nossa interioridade, isto representa mesmo a verdadeira colocação do problema. Somente ao arrebentarmos os grilhões internos podemos garantir a eliminação definitiva das cadeias externas.
Porém, se nos três primeiros romances de Graciliano Ramos, como vimos, os grilhões externos são arrebentados somente para a desilusão ou a auto-afirmação destrutiva, mantendo presos com grilhões os corações, e se os três protagonistas não encontram nenhuma forma, mesmo que possível, de redenção ou superação, podemos agora remetermo-nos finalmente ao último romance do autor. Como veremos, estão presentes em tal obra os elementos aqui tratados, mas com uma perspectiva diferente, muito além da mudança da narrativa para a terceira pessoa e da característica dos personagens.
3. Vidas secas e o sol da esperança
Assim como Luís da Silva, no momento do crime, Fabiano, após conseguir esmorecer a lembrança dos sofrimentos passados e acender um cigarro de palha, também lança ao ar:
“_ Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas, como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frese imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
_ Você é um bicho, Fabiano (Ramos, 2002, p. 18).
Mas, embora renuncie à dimensão humana, para ele isto “era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades” (idem, ibidem). Logo em seguida Fabiano se queixa de estarem os dois filhos muito “perguntadores, insuportáveis”, e “Fabiano dava-se bem com a ignorância” (idem, p. 21).
Euclides da Cunha já havia constatado que o sertanejo é, sobretudo, um forte. Num meio-ambiente tão duro e cruel como o do sertão nordestino, adaptar-se com vigor ao meio-ambiente hostil talvez requeira, como coloca Graciliano Ramos através de Fabiano, se tornar um bicho, forte e objetivo o suficiente para vencer qualquer dificuldade. No entanto, se há a natureza cruel, há também outras formas de crueldade, mais humanas, e que, por intermédio de astúcia, se faz naturalizada.
Apesar de sua simplicidade, ao longo da narrativa, Fabiano perceberá que a ignorância acaba servindo à astúcia do patrão. No episódio “Contas”, quando foi acertar as contas com o patrão, Fabiano “notou que as operações de sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão”, mas, ao reclamar, “obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros”.
Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar alforria! (Ramos, 2002, p. 93).
Mas o “patrão zangou-se repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda”, e Fabiano “baixou a pancada e amunhecou”.
Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar conversa com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens. Devia ser ignorância da mulher, provavelmente devia ser ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra (idem, ibidem).
Interessante refletir, aqui, sobre a ignorância a que se refere Fabiano. Ele não desconhece que há má fé do patrão. “Que juro! O que havia era safadeza” (idem, p. 94). Porém, o que lhe falta é um tipo específico de saber, que diga respeito aos fundamentos daquelas relações sociais injustas. Talvez, como vem significativamente exposto no início do importante episódio “Cadeia” (sobre o qual nos concentraremos a seguir), falta-lhe a ele, Fabiano, o que era característico do seu Tomás da bolandeira: um vocabulário mais rico – que, por sua vez, significa ter uma posição social privilegiada. Aliás, embora tenha sido também forçado a “andar por este mundo de trouxa nas costas”, seu Tomás da bolandeira era “pessoa de consideração e votava” (idem, p. 27), e é com uma cama igual à sua que sinhá Vitória vive sonhando.
Mais significativo ainda é o conflito que traz o mesmo: o encontro infeliz de Fabiano como soldado amarelo, que o levou para um jogo. Embora Fabiano não quisesse, ele “atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira: / _ Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme” (Ramos, 2002, p. 27). O resultado foi que perderam no jogo, Fabiano fica zangado e se retira, apressado. Mas o soldado amarelo o persegue, o aborda, e “insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir” (idem, p. 29).
_ Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo?
Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto de reiúna em cima da alpecarta do vaqueiro.
_ Isto não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que moleque e quente é pé de gente.
O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá.
_ Toca pra frente, berrou o cabo.
Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu.
_ Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano.
Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas [...].
Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso [...] (Idem, p. 29-30)
Fabiano revolta-se, tanto por saber que poderia trucidar facilmente o soldado amarelo, mas principalmente porque não compreendia o porquê do ocorrido.
Ainda na cela, depois de despertar de uma sonolência, ouve “o falatório desconexo” de um bêbado que lha fazia companhia, e “caiu numa indecisão dolorosa”.
Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na parede. Era bruto sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. [...] Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa?
Se não fosse aquilo... Nem sabia. O fio da idéia cresceu, engrossou – e partiu-se. Difícil pensar. Vivia tão agarrado aos bichos... Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com bichos.
[...] Não podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas (idem, p. 35-36).
Já vimos como Miriam Debieux Rosa recorda que a violência simbólica “perpetua e submete os sujeitos ao discurso social dominante, promovendo sua adesão aos fundamentos da organização social que lhes atribui lugares marginais”. E esta adesão, aponta a autora, é “seguida de conformismo e/ou irrupções de violência” (Rosa, 2002: 1). E é numa tensão entre o conformismo e a violência latente que Fabiano lida com o patrão e o soldado amarelo.
Assim como o espectro do sargento ronda a mente de Luís da Silva, assim acontecerá também com Fabiano, a figura do soldado amarelo vai assombrar Fabiano. No episódio “A festa”, Fabiano se sentia deslocado, e pensava em todos que “lhe davam prejuízo”, os “caixeiros, os comerciantes e o proprietário”, e estava “convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins” (idem, p. 76). Até que se lembrou do soldado amarelo. A lembrança desagradável e o efeito da cachaça o fez tentar arrumar alguma briga, para tentar compensar a virilidade ferida.
Poderíamos nos remeter aqui à excelente análise feita por Antonio Cândido sobre a personalidade de Luís da Silva, onde recalque e obsessão caminham de mãos dadas (Cândido, 1972, p. 27-29), e, como vimos, desaguarão no assassinato do seu oponente, Julião Tavares. Poderíamos, então, pensar que o matuto Fabiano não se furtaria a fazer o mesmo com o soldado amarelo.
Ainda no final do episódio “A festa”, embriagado, “Fabiano roncava de papo para cima, as abas do chapéu cobrindo-lhe os olhos, o quengo sobre as botinas de vaqueta. Sonhava, agoniado [...]. Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavam-lhe os pés com enormes reiúnas e ameaçavam-no com facões terríveis” (Ramos, 2002, p. 84).
No final de “Cadeia”, Fabiano já questionara se deveria continuar a “arrastar” sua família. “Sinha Vitória dormia mal na cama de varas. Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardaria as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo” (idem, p. 38). E em algumas passagens da obra, a dureza da vida – que, como já observamos, não se deve somente ao meio-ambiente agreste – provoca uma transmissão da violência no interior da própria família, como os safanões que os meninos levam ou o pontapé dado em Baleia por sinhá Vitória.
Voltando a um olhar geral sobre a obra do autor, chega a escrever Antonio Candido:
Lendo Infância, concluímos que os livros de Graciliano Ramos se concatenam num sistema literário pessimista. Meninos, rapazes, homens, mulheres; pobres, ricos, miseráveis; inteligentes, cultos, ignorantes – todos obedecem a uma fatalidade cega e má. Vontade obscura de viver, mais forte nuns que noutros, que os leva a caminhos pré-traçados pelo peso do meio social, do meio físico, do meio doméstico. A vida é um mecanismo de negaças, em que procuramos atenuar o peso inevitável dessas fatalidades. E parecemos ridículos, maus, inconseqüentes. Às vezes somos fortes e pensamos esmagar a vida. Na realidade, esmagamos apenas os outros homens e acabamos esmagados por ela (Cândido, 1972, p. 44).
É “como se houvesse um sistema de barreiras que apenas a determinação da vontade permite transpor; conseqüentemente, e em consonância com a atitude pessimista, o homem se agita entre dois limites: violência e abulia” (idem, p. 52).
De volta a Vidas Secas, no episódio “Cadeia”, na cadeia, Fabiano já conseguira “arranjar as idéias”. Pensara na pobre “de sinha Vitória, inquieta e sossegando os meninos. Baleia vigiando, perto da trempe”. Conclui que o
que o segurava era a família. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos, sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo. Não. O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo. Não ficaria um para sempre. Era a idéia que lhe feria na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha” (idem, p. 37-38).
Mas, como vimos anteriormente, irá indagar se valia a pena continuar a “arrastas” a família, como quem arrasta cadeias, e pensa no destino que aguardaria seus filhos. No episódio “O soldado amarelo”, e, como na passagem fatídica de Angústia, Fabiano se depara com o desafeto, em carne e osso, num lugar ermo. Sozinho, o soldado amarelo treme diante de Fabiano, que poderia acabar com sua vida facilmente. Mas, o matuto faz diferente de Luis da Silva.
Aprumou-se, fixou os olhos no polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizaria, não valia a pena inutilizar-se. Guardava sua força (idem, p. 107).
Guardar as forças para quê? Parece que Graciliano Ramos quer um destino diferente para a família de retirantes. O conhecimento sociológico da época, assim como o marxismo, já diziam que a eliminação de um indivíduo não implica a alterações estruturais e nas relações sociais. Mas, na escala reduzida da família de Vidas Secas, o que podemos destacar é que, ao longo da obra, além de traços de brutalidade, vemos também a dimensão do afeto se manifestar dentro da família: a compaixão de Fabiano pelo menino mais velho, no meio da caminhada agreste no início da obra; as preocupações de Fabiano com a família; a admiração do menino mais novo pelo pai; a saudade e o remorso pelas mortes do papagaio (que serviu de alimento) e de Baleia (sacrificada, devido a doença); e a admiração crescente de Fabiano pelos conhecimentos de sinha Vitória, que, além de tudo, tinha conseguido ganhar corpo novamente, atraindo a atenção do marido.
Assim, diferente do que diz Antonio Cândido (1972, p. 39), embora termine com uma nova fuga da família, Vidas Secas não tem uma narrativa cíclica, que confirmaria tanto o tempo da natureza, mas também, dentro de nossa perspectiva, a dimensão fechada da neurose, o mais do mesmo naturalizado, a dimensão do fatalismo. Indaga Fabiano. Não, a narrativa termina com a união da família, e seu desejo de buscar um destino melhor. E caminham em busca desse destino.
4. Considerações finais
Se a história da família de retirantes termina com um raio de esperança, ele não emana apenas da trajetória política do autor, mas da união e do sentimento de esperança da família. Se ligação entre afeto, solidariedade e esperança é feita mais claramente em Vidas Secas (ligação esta entre os personagens e entre o autor e aqueles que os personagens representam), é porque antes o autor fez um mergulho na alma do sujeitinho burguês e do fazendeiro egoísta, desnudando-os, revelando sua sordidez humana. E fez a opção por aqueles que se encontram ainda fora daquela civilização de aparências, ou melhor, aqueles que apenas sofriam o peso do que havia de ruim que a civilização procurava disfarçar.
Depois de Vidas Secas, Graciliano Ramos
Sente-se constrangido na ficção e abandona-a para sempre, no apogeu das capacidades e apenas com quatro livros publicados. O desejo de sinceridade cai doravante levá-lo a retratar-se no mundo real em que se articulam as suas ações; já instalado na primeira pessoa do singular como artifício literário, vai deslizar para a sua experiência real dentro da mesma perspectiva de narração, mas sem qualquer subterfúgio (idem, p. 53).
Porém, podemos tomar esse desvio do autor para sua experiência real não apenas para a escrita de suas memórias – em Infância e em Memórias do Cárcere –, como aponta Antonio Cândido. Mas, também como a passagem definitiva de Graciliano Ramos como verdadeiramente um ator, digamos, um “homem em primeira pessoa”. Ao se filiar ao Partido Comunista, pensamos que há menos o desejo – neurótico – de re-estabelecer uma ordem no mundo, mediante o socialismo científico da época (idem, p. 56), e mais algo que “brotava de imperativos pessoais e era esculpida por eles”,4 e “nada tinha de imposição exterior”.
Era algo obtido por construção interior e postulado livremente no plano de comportamento, com uma grande liberdade de vistas, desinteresse pela palavra de ordem mecanicamente aceita, ausência de sectarismo. Para ele, o comportamento político – forma superior de ânsia de testemunho – foi um tipo de manifestação pessoal em que a sua imperiosa personalidade se completou, harmonizando-se livremente com uma imperiosa ideologia. Conciliando a fidelidade a sim mesmo aos princípios, foi realmente um homem na mais alta acepção da palavra, ao obter essa integração em profundidade, sevindo sem se trair e oferecendo o terreno amargo da sua obra às florações do ideal (idem, p. 57, grifo no original)
Apropriando-nos novamente das palavras de Antonio Cândido, pouco importa, aqui, se o caminho que decidiu traçar para a família de retirantes – que vão buscar na cidade grande um destino melhor – e para ele mesmo tenham se mostrado, em grande parte, cheios de dificuldade e ainda com muitas ilusões. Como observou o próprio Antônio Cândido, a amargura que brota de suas obras é menos uma negação do ser humano que a “atitude permanente de desconfiança em face das normas que lhe regem a conduta e o solicitam para caminhos quase nunca favoráveis à realização plena” (idem, p. 50).
Assim, mesmo que o novo caminho traçado tenha tido seus problemas e desilusões, importa apontar que um outro caminho havia sido percorrido: o do acerto de contas com os espectros da violência e do autoritarismo, tanto externos como internos. E, na linguagem psicanalítica, a passagem necessária do Eu Ideal para os Ideais do Eu, sem a qual é impossível o indivíduo viver de forma mais livre e de forma mais plena sua relação com os outros.

5. Referências

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MARX, Karl. 2005. “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”. In: Crítica da filosofia do direito de Hegel (tradução Rubens Enderle e Leonardo de Deus; supervisão e notas Marcelo Backes). São Paulo: Boitempo, p. 145-156.
OURIQUE, João Luis P. 2002. “Produção literária: ruptura e transformação”. In: Literatura e Autoritarismo, nº 2. http://coralx.ufsm.br/grpesqla/revista/num2/ass04/pag01.html
RAMOS, Graciliano. 1978 [1933]. Caetés. 14. ed. Rio de Janeiro: Record.
____. 1972 [1934]. São Bernardo. 17. ed. São Paulo: Martins.
____. 1984 [1936]. Angústia. 29. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record.
____. 2002 [1938]. Vidas Secas. 85. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record.
ROSA, Miriam Debieux. 2002. “Uma escuta psicanalítica das vidas secas”. http://www.ip.usp.br/docentes/debieux/%5Cpdf%5C2004escutavidassecas.pdf
SANTOS, Robson dos. 2006. “Literatura em Fragmentos: história, política e sociedade nas crônicas de Graciliano Ramos”. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp.
SARTRE, Jean-Paul. 1991. A Naúsea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
VALINHAS, Mannuella Luz de O. 2005. “Corpo e persuasão no século XVIII. Uma análise da idéia de corpo no Compêndio Narrativo do Peregrino da América (1728) de Nuno Marques Pereira e nas Reflexões Sobre a Vaidade dos homens (1752), de Matias Aires”. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG.
VASCONCELOS, Lucas Jório. 2006. “O pio da coruja e esta cidade agreste”. Mimeo.
ŽIŽEK, Slavoj. 1996. “Como Marx inventou o sintoma?”. In: Um mapa da ideologia (org.; tradução Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Contraponto.

1 Bacharel e Mestre em História pela UFMG. Professor da Faculdade ASA de Brumadinho.
2 Escreveu Álvaro Lins, em 1947: “Tinha imaginado discutir desta vez a significação política da sua obra, e com uma opinião contrária à que se acha estabelecida, no que me vejo impedido pelas circunstâncias exteriores, pois não seria leal e correto abrir esse debate num memento que lhe é pouco oportuno, prestando-se a minha atitude a explorações extraordinárias” (Lins, 2002, p. 143-144). O autor se referia à “perseguição policial zoologicamente feroz e brutal por parte do governo do marechal Dutra” aos comunistas, como explica em nota. Na mesma nota, esclarece que o próprio Graciliano esteve interessado na realização de um estudo sobre sua obra “sob o ponto de vista do marxismo, aproveitando a circunstância de ter-se inscrito ele, dois anos antes, como membro do Partido Comunista” (Lins, 2002, p. 144, nota 10).
3 “Uma pátria dominada por dr. Gouveia, Julião Tavares, o diretor da minha repartição, o amante de d. Mercedes, [e] outros desta marca, era chinfrim” (Ramos, 1984, p. 174).
4 Pensamos ser interessante pensar a escolha feita por Graciliano Ramos com o que Miriam Debieux Rosa definiu como “escuta psicanalítica”. “A escuta psicanalítica é, desde Freud, transgressora em relação aos fundamentos da organização social; para se efetivar, implica um rompimento do laço que evita o confronto entre o conhecimento da situação social e o saber do outro como um sujeito desejante. Dessa escuta, principalmente quando o sujeito se revela enquanto tal, como um dizer, não se sai isento - um posicionamento ético e político é necessário” (Rosa, 2002, p. 7).
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