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Literatura e Autoritarismo Dominação e Exclusão Social |
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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação ISSN 1679-849X | Revista nº 11 |
O RESGATE DO NARRADORJoão Luis Pereira Ourique1
Resumo: Com o objetivo de apresentar algumas considerações sobre a arte de contar histórias, que está em vias de extinção em uma sociedade cada vez mais voltada à técnica instrumental e utilitária, tomamos como pressuposto a palavra como elemento imprescindível da condição humana. Essa perspectiva acerca da palavra como constituinte de uma experiência se ampara na abordagem de Walter Benjamin, em uma interpretação que busca o momento histórico vivido, refletindo sobre as contradições e paradoxos do homem e da cultura. A perda da habilidade de narrar, de transmitir a experiência através da palavra, reflete um dos problemas que o desenvolvimento científico e tecnológico desligado da condição humana acarretou. Ainda que existam problemas em exaltar o modelo narrativo, tendo em vista o seu aspecto conservador, é inegável a troca de experiências e o papel de interação entre os indivíduos oportunizados por ele. Dessa forma, vemos a escola, nos seus primeiros anos, principalmente como um espaço para que a arte de contar histórias enriqueça o caráter formativo do ambiente escolar, oportunizando a imaginação, o vocabulário e o possível despertar da curiosidade, entre outras possibilidades.
Palavras-chave: histórias, culturas, educação, experiência.
Abstract: Aiming at presenting some concerns on the ability of telling stories, which is becoming rarer and rarer in a society characterized by its instrumental and utilitarian technique, we took as presupposition the word as an indispensable element to the human condition. This perspective regarding the word as a constituent element of experience is based on Walter Benjamin's approach, in an interpretation which takes into account the lived historical moment, thinking about the contradictions and the man's and the culture's paradoxes. The loss of the narrating ability, of transmitting the experience through words, points to one of the problems that the scientific and technological development unlinked to the human condition has contemplated. Although there are problems concerning the act of exalting the narrative model, considering its conservative aspect, it is undeniable the change of experiences and the interaction among the individuals. This way, we evaluate the school, in its first years, mainly as a space where the act of telling stories can enrich the formative character of the school environment, making possible the imagination, the vocabulary and the awakening of the curiosity, among other possibilities.
Keywords: stories, cultures, education, experience.
1. Um narrar empobrecido
(...) é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. (BENJAMIN, 1986ª, p. 115)
A percepção de que a vida de algumas pessoas em sociedade se tornou efêmera e corriqueira pode ser relacionada com o consumismo, com o acúmulo de bens materiais e, conseqüentemente, de trabalho e de informação. Nesse contexto, as histórias a serem trocadas como experiências concretas de vida e de questionamento acerca da realidade estão cada vez mais empobrecidas.
Tomamos, nessa perspectiva, o conceito de experiência no sentido benjaminiano. Tal abordagem sustenta a experiência como sendo o processo de construção de uma consciência histórica. Partindo de um ensaio de Freud, Além do princípio do prazer, Benjamin (1989) estabelece uma correlação entre a memória (mémoire involontaire) e o consciente. Nesse sentido, o pensador ressalta que os resíduos mnemônicos seriam mais intensos e duradouros, diferentemente do consciente. Com isso, a função da memória seria a de proteção das impressões, ao passo que a da lembrança seria a da desagregação, visto que: “[s]ó pode se tornar componente da mémoire involontaire aquilo que não foi expressa e conscientemente ‘vivenciado’, aquilo que não sucedeu ao sujeito como ‘vivência’” (BENJAMIN, 1989, p. 108) – Erlebnis, vocábulo que ele opõe à Erfahrung, experiência2 .
Ignorar que a identidade particular do Ser Humano se constitui pela construção, convivência e influência dos outros, é também negar que somos constituídos da pluralidade dos indivíduos que nos cercam, por meio das trocas, sensações, emoções. Os indivíduos diferem entre si, portanto desenvolvem fazeres e conhecimentos diferentes. E para esta constituição do homem ser a mais plena possível, nada melhor que compreender o outro e resgatar suas experiências de vida através de conversas.
Esta falta de comunicabilidade continua se prolongando por outro fator, a técnica, esta que aos poucos poderá substituir a experiência dos homens. Ela faz com que grande parte das coisas já esteja pronta e revelada, restando, em muitos casos, apenas a escolha do caminho da reprodução desses saberes.
A sociedade organizada com base em um modelo consumista e autoritário nos priva de narrar experiências, ela nos deixa pobres e vazios na arte de contar histórias. Ao observar a sociedade percebemos a falta de sentido e sentimentos que ela nos transmite perante a vida. A própria falta de tempo afasta, por exemplo, pais e filhos de manterem diálogo, conversas e trocas de experiências, pois grande parte destes pais está dando lugar ao comodismo e ao conformismo.
Walter Benjamin, nas teses sobre o conceito de história, afirma que é no encontro da história e da cultura que as relações se estabelecem, formando a tradição, deixando rastros e registros, como um acervo cultural, fixando “uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso” (1986c, p. 224). O conceito de história para o autor vem no sentido de que somos marcados pela época de nossa existência, e não só pelo tempo, mas também pelo contexto, onde estão inseridos nossas tradições e costumes.
A história aos poucos nos foi sendo revelada como forma de experiência narrada por outros. O passado se tornou uma vaga lembrança, por isso deve ser relembrado por e para todos com algum significado. Essa relação pode fazer com que nos conformemos com o contexto no qual estamos inseridos e, desse modo, não paremos para pensar em outras formas e práticas de vivência.
Nesse sentido, as histórias de vida narradas por pais, avós, entre outros, são tão importantes quanto as histórias livrescas. Tais narrativas pessoais podem escovar a história a contrapelo, como afirma Benjamin (1986c), para, assim, descobrirmos não apenas o que houve, mas também o que há e haverá, tornando a experiência viva por meio das histórias a serem descobertas e narradas.
Para além do treinamento e da educação, entendemos esse ato de “narrar” como uma formação (Bildung), capaz de ligar os diversos campos da cultura (música, literatura e artes plásticas, por exemplo) num jogo de imagens em que a formação se dá por mimesis ou imitação transfigurada. Assim, a Bildung “designa uma das figuras históricas determinantes - talvez a última, sublima Berman – do que ainda hoje entendemos como cultura, ao lado de παιδεια (paidéia), eruditio e Aufklãrung” (SUAREZ, 2005, p. 192).
Na educação, o compromisso com a formação não passa por optar entre a “cultura erudita” com sua carga histórica e a “cultura popular”, acessada por todos. De outro modo, o esforço pelo entendimento das questões subjacentes a estas narrativas e pelo estabelecimento de relações de significado é atitude que corrobora a formação humana. A partir destes relatos, por exemplo, podemos questionar sobre o papel do erudito, bem como sua legitimação; sobre os critérios usados para dizer que uma produção é popular ou não e mesmo a importância desta classificação.
Em A Filosofia e os professores, Theodor Adorno analisa as respostas dos candidatos à docência em ciências nas escolas superiores do estado de Hessen, Alemanha, tendo em vista a função formativa que o professor exerce. Um dos candidatos, por exemplo, ao ser perguntado sobre Descartes, discorreu extensivamente sobre sua filosofia, sem, no entanto, dar-se conta da transformação histórica de seu pensamento. É esta falta de reelaboração dos conceitos, num processo auto-reflexivo, que favorece a construção de jargões, a naturalização dos fenômenos ou a mitificação das ações sociais:
A colcha de retalhos formada de declaração ideológica e de fatos que foram apropriados, isto é, na maior parte das vezes decorados, revela que foi rompido o nexo entre objeto e reflexão. A constatação disso nos exames é recorrente, levando imediatamente a concluir pela ausência da formação cultural (Bildung) necessária a quem pretende ser um formador (ADORNO, 2003, p. 63). Na educação, esta falha torna-se visível quando, por exemplo, se deposita toda a esperança em reverter um quadro de violência, pobreza e ausência de autonomia na escola e se esquece que ela não possui instrumentos suficientes para isto. O homem se educa na participação nas diversas instâncias sociais, pelo contato com diferentes experiências e visões de uma realidade. Neste sentido, é importante discutir a respeito de uma política cultural mais ampla, numa sociedade em que todos se comprometam com a cultura, retirando dos professores ou da escola o peso de abarcar o patrimônio cultural e expandi-lo à sociedade em geral. Juntamente com este comprometimento coletivo, é preciso redefinir alguns papéis e concepções sobre educação, escola, professor e pedagogia do ponto de vista cultural para não recair o peso das reivindicações da sociedade nos ombros da educação: “Certamente que não há grandes nações sem boas escolas, mas o mesmo deve dizer-se de sua política, da sua economia, da sua justiça, da sua saúde e de mil coisas mais” (NÓVOA, 1998, p. 20).
Esta percepção vem da estética, presente na cultura como a dimensão que relaciona de forma diversa as manifestações humanas, atribuindo sentido, mas também instigando a formação de novos significados. A linearidade moderna mostrou ser capaz de organizar uma história universal, ainda que para isto tenha desconsiderado algumas expressões humanas. Ao reconsiderar a estética como integrante da racionalidade humana, é possível criar mecanismos de percepção das diferentes formas de expressar as múltiplas dimensões humanas.
Essa possibilidade não pode nos cegar diante de que, infelizmente, a grande maioria das pessoas confia e tem fé na política, acredita na estrutura do poder como sendo uma extensão da sua própria vontade, sem perceber que, não raras vezes, está subordinada a todo um processo ideológico de manipulação da opinião pública. Não podemos esquecer que a tomada de consciência, por si só, não faz com que as pessoas rompam com esse processo, visto que elas também colaboram conscientemente para a manutenção do status quo. Tal observação dessa realidade prova como é alto o preço que se paga pelo comodismo e costume (hábitos) quando nos afastamos de uma concepção de história que recusa toda cumplicidade para nos aliarmos àquela que colabora com essa política. Dessa forma, ficamos presos a um passado, ou melhor, a uma noção de passado que embaça nossa visão sobre o processo histórico.
A experiência – a continuidade da consciência em que perdura o ainda não existente e em que o exercício e a associação fundamentam uma tradição no indivíduo – fica substituída por um estado informativo pontual, desconectado, intercambiável e efêmero, e que se sabe que ficará borrado no próximo instante por outras informações. (ADORNO, 1996, p. 405). Theodor Adorno aponta para uma recusa a essa fácil consciência, enfatizando que necessitamos construir a realização da experiência através de pequenas (e difíceis) expectativas nas quais os perigos e obstáculos não se constituem em uma salvação da história, mas uma rememoração dos encontros com os outros e com o novo. Tal situação evidencia que se hoje somos o que nos constituiu o passado, é importante voltar sobre aquilo que foi realizado e vivido. Reviver as marcas que formaram o nosso modo de pensar, olhar, sentir, agir e expressar. Entrecruzar o atual e antigo é uma forma de enfrentarmos as dificuldades do presente. É com a arte de narrar os fatos que construímos nossa história.
Benjamin (1986b) destaca que para narrar temos de observar o mundo nos seus mais brilhantes momentos, mas, principalmente, construirmos uma narrativa que estabeleça uma relação conosco mesmos. Tal narrativa – que já era rara – parece cada vez mais diluída em um processo formativo subordinado à informação e à velocidade. Destacamos, conforme Carlos Fuentes (1993), que essa informação não pode ser confundida com conhecimento, apontando a importância, cada vez maior, daquilo que a sociedade atual mais carece:
Tiempo. Tiempo y deseo. Pausa para transformar la información en experiencia y la experiencia en conocimiento. Tiempo para reparar el dano de la ambición, el uso cotidiano del poder, el olvido, el desdén. Tiempo para la imaginación. Tiempo para la vida y para la muerte. Antígona está sola, recuerda su hermana, Maria Zambrano. Necesita tiempo para vivir su muerte. Necesita tiempo para morir su vida. (p. 13). As informações não fazem – por si só - que pensemos. As notícias chegam prontas e só tem valor enquanto novidade, evitando reflexões mais profundas, o que contraria o conceito benjaminiano de narrativa. O narrador, ao interpretar a história, dá sentido a ela e, com isso, o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação, como a criação, invenção e a novidade.
A narrativa se constrói minimamente, “ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.” (BENJAMIN, 1986b, p. 205). É um ato de transformação, esse processo entra em nós, ele fica em nós, para depois retirá-lo no sentido de narrar para os outros as histórias e experiências vividas em nosso dia-a-dia. Alguns homens hoje não cultivam o que não pode ser abreviado. Estão perdendo o gosto de contar histórias no sentido de resgatar essa troca de diálogo, perdendo a capacidade de enraizar-se e conhecer seu povo. “Comum a todos os grandes narradores é a facilidade que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como uma escada” (BENJAMIN, 1986b, p.215).
2. O “brincar” de contar histórias: experienciando a vida
(...) devem os homens ser dissuadidos de, carentes de reflexão sobre si mesmos, atacarem os outros. (ADORNO, 1986, p. 35)
No contexto escolar, ainda é comum encontrarmos a visão de que o sujeito é como um técnico que visa apenas uma utilidade prática e imediata. A educação, num processo formativo mais amplo, evidencia que pensar não é só raciocinar, calcular ou argumentar, é também na verdade dar sentido ao que somos e ao que nos acontece no dia-a-dia. E damos sentidos ao nosso pensamento através das palavras, pois são elas que produzem sentidos, criam realidades e mecanismos de sujeição.
O fato de a experiência ter grandes limitações para ser comunicável atualmente, de acordo com Bondía (2002), se deve, especialmente, a quatro aspectos: primeiramente o autor aponta o excesso de informação. Na escola nos passam informações sobre os conteúdos, eles não nos tocam, falta sentido para a coisa. Aprendemos muito em pouco tempo, não experienciamos os conhecimentos da escola. Conhecimento não deveria ser dado em forma de informação, aprender não é adquirir e processar informações como a escola faz.
O segundo ponto levantado pelo autor é o excesso de opinião. A opinião é própria e particular de cada sujeito. O ser humano opina sobre tudo aquilo que lhe é informado, conferindo sentido a algo. Depois da informação vem a opinião, o excesso dela faz com que não haja a experiência.
O par informação/opinião é muito geral e permeia também, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem, inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos chamam de “aprendizagem significativa”. Desde pequenos até a universidade, ao largo de toda nossa travessia pelos aparatos educacionais, estamos submetidos a um dispositivo que funciona da seguinte maneira: primeiro é preciso informar-se e, depois, há de opinar, há que dar uma opinião obviamente própria, crítica e pessoal sobre o que quer que seja. (BONDÍA, 2002, p. 23). A comunicação de massas destrói a experiência, conforma nossas consciências, assim a escola faz com que seguimos a seguinte lógica; informação e logo após a reprodução e a opinião do aluno.
Em terceiro lugar a falta de tempo também é um empecilho para a experiência. Tudo é fugaz, instantâneo e efêmero. Os acontecimentos nos passam rapidamente, a velocidade e a obsessão pelo veloz nos impede de criar conexão dos acontecimentos de funcionar com a memória.
A educação também faz com que os conteúdos não se fixem nas memórias de seus alunos, pois, com o constante bombardeamento de informações, o currículo escolar está cada vez mais numeroso e ao mesmo tempo cada vez com menos tempo, impedindo o aluno de experienciar os conteúdos. O tempo para o conhecimento se tornou mercadoria.
O quarto ponto é o excesso de trabalho. As pessoas têm necessidade de estar fazendo algo para existirem, para estarem vivas, não podem parar de maquinar e por isso nada lhes acontece.
Esses pontos interferem diretamente no diálogo, que não flui de forma dinâmica, acompanhando o pensamento da criança. Escutar, observar e se expressar são ações fundamentais para este processo. O contador de histórias encanta as crianças com suas narrativas mágicas e fantasiosas, mesmo sem nunca ter estudado para isso. Na escola e em outros lugares, a hora do conto, geralmente, é para as crianças um momento de euforia e entusiasmo intenso.
Segundo Leite (2004), contar histórias para as crianças pode ter uma ação educativa muito grande, a qual pode desenvolver nas crianças várias capacidades como: a expansão da linguagem, enriquecendo o vocabulário, facilitando a expressão, articulação, espontaneidade, estimula a inteligência, desenvolve o poder criador e observador do pensamento da criança; auxilia na socialização (relações sociais), revela diferenças individuais, forma hábitos e atitudes sociais e morais (valores), cultivo da sensibilidade, emoção, imaginação, memória (dá sentido ao pensamento), atenção, lógica; aprimorar conhecimentos; amplia as experiências das crianças; familiarizar a criança com os livros e as histórias e desenvolver o interesse nelas, com a curiosidade exposta no encantado mundo da vida.
Nesta fase, a criança é muito imaginativa, ela vive um mundo de faz de conta como, por exemplo, a sua boneca que adquire vida e fala. E o ato de contar histórias, para as crianças, pode ajudar a abrir canais para a imaginação e a criação. Pensando no brincar e no desenhar podemos perceber que estes são uma conseqüência inconsciente da arte de contar histórias, uma vez que nestas ações as crianças externalizarão sua imaginação, se apoderando da história narrada e assim criando imagens e significados na sua brincadeira e desenho que são somente seus.
A brincadeira é uma forma de comunicação consigo mesmo e com os outros, e faz com que a criança desenvolva formas criativas e originais de socialização, tornando-se, assim, uma narrativa que experiencia o mundo, essencial para a formação.
Pois é a brincadeira, e nada mais, que está na origem de todos os hábitos. Comer, dormir, vestir-se, lavar-se, devem ser inculcados no pequeno ser através de brincadeiras, acompanhados pelo ritmo de versos e canções. É da brincadeira que nasce o hábito, e mesmo em sua forma mais rígida o hábito conserva até o fim alguns resíduos da brincadeira. Os hábitos são formas petrificadas, irreconhecíveis, de nossa primeira felicidade e de nosso primeiro terror. E mesmo o pedante mais árido brinca, sem o saber – não de modo infantil, mas simplesmente pueril - , e o faz tanto mais intensamente quanto mais se comporta como um pedante. (...) Um poeta contemporâneo disse que para cada homem existe uma imagem que faz o mundo inteiro desaparecer; para quantas pessoas essa imagem não surge de uma velha caixa de brinquedos? (BENJAMIN, 1986d, p. 253). Devemos, portanto, refletir sobre as possibilidades de condicionamento em uma mera aplicação nos moldes de uma pedagogia tradicionalista, limitadora das experiências infantis, para que não criemos condições à implantação de brincadeiras em prol de condutas moralizantes. Esse conceito de brinquedo e brincadeira – no qual a narrativa também se consome, deixando de ser encarada como um divertimento pela criança – faz com que ela seja forçada à quietação e ao silêncio, submissa à disseminação de um discurso discriminatório, que por longo tempo normalizou as relações sociais dualistas entre dominantes e dominados, patrões e empregados, ricos e pobres.
Restam poucos professores que preferem se apoiar em histórias que foram transmitidas de geração a geração, bem como utilizar livros de literatura ou fotos antigas de suas famílias para narrar e pesquisar histórias, fatos que desencadeiam questões e sensações diversas.
Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das formas produtivas. (BENJAMIN, 1986b, p. 201). Em tempos de informação e tecnologias, as crianças estão cada vez menos dialogando entre si e com seus familiares. A comunicação oral passou a ser virtual, onde o contato físico, igualmente ao diálogo, está diminuindo continuamente. Nas escolas de Educação Infantil e Anos Iniciais se poda esta arte de narrar, dando lugar privilegiado à aquisição do alfabeto e trabalhos mimeografados, nos quais o ato da oralidade entre as próprias crianças é pouco visto nessas instituições. O espaço restrito à narrativa contribui com a construção de um sujeito carente de experiência, visto que não se expõe, conforme afirma Bondía:
Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição” (nossa maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira de propormos), mas a “exposição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e risco. Por isso é incapaz e experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre. (BONDÍA, 2002, p.25). Por esse motivo as histórias que são contadas para as crianças não deveriam ser interpretadas de maneira dogmática pelos professores, mas sim pela própria imaginação das crianças. E essa forma individual de interpretação, em um primeiro momento, poderá significar um espaço para a criatividade das crianças. Pois elas não se tornarão crianças limitadas a apenas a um ponto de vista, mas a inúmeros fatos e acontecidos que surgem em suas memórias, através do ato de narrar para os colegas e conhecidos as histórias contadas e ouvidas por eles.
Fotos antigas, notícias, paisagens, jornais, revistas e principalmente livros, com estes materiais as crianças podem auxiliar a interpretação e a percepção da sociedade e do seu contexto atual, narrando e expondo seus pontos de vistas. Fazer com que a criança se expresse oralmente na suas ações do cotidiano, valorizando suas produções culturais e respeitando suas formas de ser, pensar e agir, favorecendo a autonomia e a autoria.
Referências ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: ____. Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. ____. Teoria da semicultura. In: Revista Educação & Sociedade Campinas: Papirus, Ano XVII, dez. 1996. ____. A filosofia e os professores. In: ____. Educação e emancipação. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 51-74. BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. vol.1, Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 2. ed. Brasiliense, 1986a. ____. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. vol.1, Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 2. ed. Brasiliense, 1986b. ____. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. vol. 1, Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 2. ed. Brasiliense, 1986c. ____. Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental (1928). In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. vol.1, Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 2. ed. Brasiliense, 1986d. ____. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: ____. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. Obras Escolhidas, V. 3. p. 103-149. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: Revista Brasileira de Educação. n. 19, jan/fev/mar/abr. 2002. FUENTES, Carlos. Geografia de la novela. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993. LEITE, M.I. Linguagens e autoria: registro, cotidiano e expressão. In: OSTETTO, L. E.; LEITE, M. I. Arte, infância e formação de professores: autores e transgressão. Campinas: Papirus, 2004. NÓVOA, Antônio. Relação escola-sociedade: “Novas respostas para um velho problema”. In: SERBINO, Raquel Volpato (Org.). Formação de professores – Seminários e debates. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1998. p. 19-39. SUAREZ, Rosana. Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural). Revista Kriterion. Belo Horizonte, n. 112, p. 191-198, dez. 2005. 1 Dr. em Letras. Prof. Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS
2 Este ensaio de Benjamin se baseia na oposição entre Erfahrun e Erlebnis, traduzidas respectivamente como “experiência” (real ou acumulada, sem intervenção da consciência) e “vivência” (experiência vivida, evento assistido pela consciência). Erfahrung seria o conhecimento obtido através de uma experiência que se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem; o sujeito integrado numa comunidade dispõe de critérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas com o tempo. Erlebnis é a vivência do indivíduo privado, isolado, é a impressão forte, que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos.
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