O ROMANCE HISTÓRICO E O EXÍLIO: HEINRICH MANN E HENRI QUATREElcio Cornelsen1
Resumo: Nossa contribuição visa à apresentação de estratégias discursivas presentes na obra Henri Quatre, de Heinrich Mann, como exemplo da estética da resistência defendida por vários escritores de língua alemã durante o período de exílio. Neste caso, a relação entre Literatura e História desempenha um papel fundamental, pois vários autores recorreram a temas e personagens históricos para criticarem os desmandos e a violência propagada pelo Estado totalitário durante o “Terceiro Reich”.
Palavras-chave: Heinrich Mann, Henri Quatre, exílio, estética da resistência.
Abstract: This contribution aims at a presentation of discursive strategies in Heinrich Mann’s novel Henri Quatre as an example of the aesthetics of resistance defended by many writers on German language during the Exile. In this case, the relationship between Literature and History plays a fundamental role, since many authors used historical themes and characters to criticize the abuse of power and the violence propagated by the totalitarian State during the “Third Reich”.
Keywords: Heinrich Mann, Henri Quatre, Exile, aesthetics of resistance.
A literatura de língua alemã no período de 1933 a 1945 foi marcada por inúmeros esforços de escritores que, tanto no exílio como na própria Alemanha, tentaram desenvolver uma “estética de resistência” contra o nacional-socialismo. A “politização da arte”, como define Walter Benjamin (1994, p. 196) em oposição à “estetização da política”, pode ser apontada como uma vertente significativa que, embora tenha surgido com grande força antes mesmo da ascensão do nazismo ao poder, irá se impor justamente como forma de resistência e alerta contra os males da política hitlerista. No afã de se libertarem de um sistema inumano como o nazista, muitos deixaram de lado suas diferenças e convicções ideológicas, para seguirem o caminho da resistência – mesmo que desorganizada e marcadamente individual.
A necessidade de uma literatura politicamente motivada e orientada fez com que surgisse uma tendência cujas características principais eram, de um lado, a renúncia a intenções experimentais e, portanto, vanguardistas, e, de outro, a adoção de formas tradicionais, na crença de se criar uma mensagem mais direta, franca e eficaz no combate ao nazismo. Não é por acaso que os maiores êxitos literários no exílio foram alcançados por obras em prosa. A transposição da situação atual para outras épocas históricas foi uma estratégia empregada por aqueles autores que interpretavam as crises políticas e sociais como crises da cultura e da arte, de modo que os valores colocados em questão se revelam como atemporais.
Muitas vezes, a capacidade de produção literária no exílio acaba por criar a falsa impressão de que as dificuldades geradas com a expulsão da arte progressista da Alemanha eram mínimas, quando, na verdade, muitos se sentiam desorientados, vivendo em diversos centros que os acolheram, dentre eles, Zurique, Praga, Moscou, Amsterdã e Paris e, mais tarde, na América. As dificuldades materiais, a luta cotidiana pela existência, as dificuldades com as línguas estrangeiras e a incerteza frente à burocracia são apenas alguns dos aspectos que levaram alguns expoentes da literatura alemã, num ato de desespero, ao suicídio, como é o caso de Kurt Tucholsky (1890-1935), Walter Benjamin (1872-1940), Ernst Toller (1893-1939) e Stefan Zweig (1881-1942).
A crença de que a queda do nazismo seria uma questão de tempo fez com que vários autores exilados acreditassem poder manter o nível artístico atingido nas primeiras décadas do século XX, para que este fosse então transmitido às novas gerações.
Quem se decidiu pela “politização da arte” como instrumento de crítica à ditadura nazista, precisou refletir sobre formas de resistência de modo a tornar sua palavra eficaz no combate ao nazismo. Os representantes das diversas tendências artísticas e literárias foram impelidos a repensar seus programas. Antigas querelas no cenário alemão foram deixadas de lado. Talvez o maior exemplo prático desse sentimento de solidariedade entre os escritores exilados tenha sido a aproximação de Brecht a Thomas Mann em 1933, quando ambos se encontravam na Suíça. Antes da ascensão do nazismo ao poder, a relação entre ambos sempre fora marcada por muita polêmica. As diferentes concepções ideológicas de arte não permitiam outra coisa senão a discussão acirrada.
A estética de resistência promovida por representantes do exílio teve de ser erigida a partir de um fato fundamental que a diferenciava da estética de resistência de seus compatriotas que haviam permanecido na Alemanha: ela foi concebida como uma prática artística que se encontrava afastada de seu público endereçado, e que não podia reagir imediatamente para provocar mudanças no campo de relação estabelecido entre autor e leitor. As relações entre produção literária e consumo, técnica literária e recepção individual se estabeleceram apenas de forma mediada. A função de ataque desse tipo de estética consistia em romper a mentalidade daqueles que se deixavam influenciar pelo nazismo. Pensada para um público, de certo modo, fictício, essa arte literária deveria ser criada no intuito de poder romper o discurso ideológico e demagógico do nacional-socialismo. O seu ponto central se situaria na reunião de três vertentes específicas: a tradição, o realismo e a vanguarda.
No entanto, o planejamento de uma cooperação, desejada por escritores como Brecht, Thomas e Heinrich Mann, em geral, não se concretizou no âmbito do trabalho artístico, não obstante os inúmeros esforços empreendidos, sobretudo durante os primeiros anos de exílio. Pois o grau de organização da luta de resistência política não pôde ser simplesmente projetado mecanicamente sobre a esfera da produção artística. A organização de congressos para promover o encontro de escritores exilados, a criação de clubes e organizações literárias e culturais em diversos centros, como em Paris, Praga, Londres e Nova Iorque, na prática, pôde ter apenas resultados limitados no combate ao nazismo e, sobretudo, na luta por exigir um isolamento político mais incisivo da Alemanha por parte dos países que lhes ofereciam exílio.
Para que a literatura de língua alemã pudesse sobreviver no exílio, criou-se uma base existencial a partir da fundação ou mesmo transferência de editoras proibidas na Alemanha, como a “Malik-Verlag”, em Praga, e a “Bermann-Fischer-Verlag”, em Estocolmo. As editoras e a imprensa alemã no exílio viam a palavra como arma no combate ao nazismo e, ao mesmo tempo, como possibilidade de expressão de uma “outra” Alemanha, humanista e decididamente antifascista.
A arte no exílio era permanentemente dependente das condições de produção artísticas e das relações políticas do país em que o escritor exilado se encontrava. Isto fez com que surgissem algumas especificidades na produção de uma estética de resistência em cada centro de exílio. A maioria dos exilados optou por permanecer em países visinhos da Alemanha. As estações preferidas eram, sem dúvida, a França, a Dinamarca, a Suíça, a Áustria e a antiga Tchecoslováquia. No início, não se cogitava deixar a Europa. Muitos acreditavam que a derrocada do nazismo seria marcada por um colapso econômico. Ao lado da França, a Suíça tornou-se um importante centro de autores exilados, pois as tendências da arte vanguardista e do realismo crítico se faziam intensamente presentes.
Mas havia também países em que os autores exilados se encontravam em total isolamento. Este é o caso, sobretudo, dos países escandinavos e dos Estados Unidos. Aqui, os artistas tinham apenas a alternativa entre uma arte que deveria ser pensada para um período posterior, em que a Alemanha já tivesse sido libertada do jugo nazista, ou uma arte que se ajustasse às condições e às peculiaridades estéticas do país que os acolhia momentaneamente. Um exemplo disso é a atividade criativa de Brecht e Kurt Weil no exílio americano. Durante o período em que esteve nos Estados Unidos, Brecht escreveu, sem dúvida, a maior parte de suas obras para uma futura apresentação na Alemanha. Resumindo: tudo não passava de trabalhos que acabavam “engavetados”. E Brecht não representava nenhuma exceção. Em contraponto, Kurt Weil procurou adequar suas criações artísticas às condições de produção e ao caráter estético difundido nos Estados Unidos. É de Brecht, aliás, um dos principais documentos literários do exílio, no qual o escritor representa de maneira paradigmática o estado de ânimo na condição de exilado: o poema “Über die Bezeichnung Emigranten” (1937; “Sobre a designação Emigranten”), escrito durante sua permanência na Dinamarca e publicado em 1940 (Brecht, 1967, p. 718):
Sempre considerei errado o nome que nos deram: Emigranten. Como muitos intelectuais, Brecht deixara Berlim no dia seguinte ao do incêndio criminoso do Reichstag, no final de fevereiro de 1933 (cf. Kammer & Bartsch, 1992, p. 180-181). Suas duas estações mais longas no exílio foram Svenborg, na Dinamarca, e Santa Mônica, nos Estados Unidos, de onde regressou à Europa em 1948. A irritação que lhe causara a designação “Emigranten” (“emigrante”), termo latinizado da palavra alemã Auswanderer (“emigrante”) parece advir do fato de que esse termo esteve associado a uma outra vertente literária na década de 30, presente não no exílio, mas sim na própria Alemanha durante o período nazista: a chamada “Innere Emigration” (“emigração interior”). Escritores que permaneceram na Alemanha após a ascensão do nazismo ao poder e as primeiras ondas de terror alegaram que não apoiariam o regime, mas que realizariam, para isso, uma espécie de “emigração” introspectiva, resguardando para si valores que se diferenciavam diametralmente daqueles apregoados pela propaganda nazista. Brecht se revoltava com essa visão de que os exilados teriam “emigrado” por opção, como o fizeram os representantes da “Emigração Interior” ao optarem pela permanência no “Terceiro Reich” e por todas as implicações que isso significava, como, por exemplo, o credenciamento obrigatório à “Câmara de Cultura do Reich”, a censura e o cerceamento da liberdade de expressão. Para os exilados, deixar a Alemanha em 1933 se tratara de uma questão de vida ou morte. O poema traz dois termos que designariam, de modo preciso, seu sentimento: “Vertriebene” (“desterrados”) e “Verbannte” (“banidos”). Portanto, o que estava em jogo era mais do que um rigor terminológico; estava em jogo uma questão de justiça para com aqueles aos quais não restou outra escolha que não a fuga rumo ao exílio.
Em termos de produção, a ampla literatura alemã que surgiu entre 1933 e 1945 fora da Alemanha foi fruto de representantes de quase todos os gêneros e tendências estilísticas. Obras que, num primeiro momento, poderiam ser consideradas desvinculadas dos acontecimentos atuais, revelam-se como bandeiras humanistas levantadas na batalha contra o nazismo, como é o caso da peça Mutter Courage und ihre Kinder (1939; “Mãe Coragem e seus Filhos”), de Brecht, da obra Amazonas (1937/38), de Alfred Döblin, e também do romance Henri Quatre (“Henrique IV”), de Heinrich Mann, publicado em duas partes: Die Jugend des Königs Henri Quatre (1935; “A juventude do rei Henrique IV”) e Die Vollendung des Königs Henri Quatre (1938; “A perfeição do rei Henrique IV”).
No início de 1933, Heinrich Mann (1871-1955) desligou-se da Preußische Akademie der Künste (“Academia Prussiana das Artes”), da qual era presidente desde 1930, e emigrou, primeiramente, para a Tchecoslováquia, seguindo, posteriormente, para a França. Com a invasão da França em junho de 1940, assim como vários escritores exilados naquele país, Heinrich Mann seguiu para os Estados Unidos, fixando-se na Califórnia. Nunca mais veria sua pátria. Em 1950, o escritor faleceu pouco antes de dar início à planejada viagem de regresso à Alemanha. Onze anos mais tarde sua urna seria trasladada para a então Berlim Oriental, onde seus restos mortais estão sepultados, no Dorotheen-Friedhof, a poucos metros das sepulturas de Brecht, de Hegel e de Fichte.
Sem dúvida, sua obra-prima do período de exílio foi o romance histórico em torno da figura de Henrique IV (1553-1610). A idéia de escrever uma obra sobre o rei da França já havia surgido em meados dos anos 20, quando Heinrich Mann visitou Pau, a cidade-natal do rei, coroado em 1589. Mas foi a urgência do momento que o levou a aproximar, pela ficção, duas épocas distantes temporalmente, mas tão próximas quando o assunto é violência: a intolerância religiosa na França do século XVI e a intolerância política e racial presente no cotidiano da Alemanha nazista.
A primeira parte – Die Jugend des Königs Henri Quatre (“A juventude do rei Henrique IV”) –, publicada em 1935, tem por contexto o conflito religioso entre católicos e huguenotes – protestantes que, em sua maioria, seguiam a doutrina calvinista. O casamento de Henrique (1553-1610), protestante, então rei de Navarra, com Marguerite de Valois (1553-1615), irmã do rei francês Carlos IX (1550-1574), católico, em 18 de agosto de 1572 deveria contribuir, simbolicamente, para uma aproximação entre católicos e protestantes, de modo que as desavenças do passado, que culminaram com guerras contra os huguenotes, se dissipassem. Todavia, ao contrário do que se esperava, o enlace foi ensejo para muita violência, culminando com mais de 70.000 assassinatos e entrando para a história como Bluthochzeit (“matrimônio de sangue”). A escalada da violência atingiu seu ápice com o massacre cometido por católicos contra protestantes na “Noite de São Bartolomeu”, na passagem de 23 para 24 de agosto de 1572, deflagrado após uma tentativa fracassada de assassinato do almirante Gaspard de Coligny (1519-1572), líder huguenote, por ordem da rainha-mãe, Catarina de Médici (1519-1589), no dia anterior. Quando os huguenotes se reuniram para vingar-se do atentado contra seu líder, Catarina e seu filho Carlos IX, juntamente com a Liga Católica, decidiram pelo massacre de todos os huguenotes reunidos em Paris, dentre eles, o próprio Coligny, que havia celebrado, no passado, a chamada Paz de Saint-Germain-en-Laye, que garantia a liberdade religiosa na França.
Para efeito de análise, selecionamos um trecho do capítulo 6 do romance – “Die Blässe des Gedankens” (“A palidez do pensamento”) –, intitulado “Was ist das: Haß?” (“O que significa: ódio?”). Nesse momento do romance, Henrique IV é prisioneiro da própria corte, impotente diante da violência crescente devido à radicalização da Liga Católica, e reconhece no fanatismo religioso o mal que impede a pacificação da França. Para estabelecer uma ponte entre a violência na França sob o reinado de Carlos IX e a violência na Alemanha nazista, Heinrich Mann utiliza uma série de recursos discursivos, como demonstra o exemplo abaixo (Mann, 1985a, p. 253):
[...] Esse era um orador de outra espécie. Ele espumava já na primeira palavra, e sua voz bruta converteu-se numa gritaria efeminada. Ele pregava o ódio contra os moderados. Não apenas os protestantes deveriam ser odiados até o extermínio. Numa noite das longas facas e de cabeças rolando, Boucher queria, sobretudo, acertar as contas com os tolerantes, mesmo que eles se denominassem católicos. Para ele, os piores de todos, em ambas as religiões, eram os condescendentes, que já estavam prontos para celebrar a conciliação e desejavam a paz para o país. Uma paz dessas o pais não deveria ter – e Boucher afirmava vociferando: o país não a suportaria, pois seria contra a sua própria honra. O tratado imposto, celebrado com hereges, resultante de uma paz ultrajante, seria com isso rasgado. Clamavam alto o solo e o sangue por violência, violência, violência, por uma depuração rigorosa de tudo o que fosse estranho, de uma civilização deteriorada, de uma liberdade degradante.3 Salta aos olhos como esse fragmento está construído com uma série de termos que remetem ao cotidiano do “Terceiro Reich”, a começar pela construção discursiva da figura do orador, Boucher, que é um retrato nada caricato do demagogo Joseph Goebbels (1897-1945), Ministro da Propaganda desde 1933, nas suas “eloqüentes” – para não falar “histéricas” – aparições, como aquela da Bücherverbrennung (“Queima de Livros”), em 10 de maio de 1933, ou aquela do anúncio da “Totaler Krieg” (“Guerra Total”), em 18 de fevereiro de 1943.
Além disso, a terminologia presente no discurso de Boucher foi escolhida de modo acurado por Heinrich Mann para estabelecer uma relação homológica entre o fanático líder da Liga Católica, no século XVI, e o discurso nazista. Nele, nos deparamos, por exemplo, com a palavra Vernichtung (“aniquilação”, “extermínio”), isso já em 1935, quando esse termo fazia parte do repertório racista e anti-semita, dentro do discurso nazista, termo, aliás, que alguns poucos anos mais tarde se cristalizaria no termo Vernichtungslager (“campo de extermínio”). Além disso, Boucher fala de “eine[-] Nacht der langen Messer und der rollenden Köpfe“ (“uma noite das longas facas e de cabeças rolando”). Tal expressão nada mais é do que uma alusão a um fato histórico ocorrido um ano antes da primeira parte de Henri Quatre ser publicada: a guerra interna das organizações nazistas, que culminou com o assassinato de vários membros, entre eles Ernst Röhm (1887-1934), líder da SA – Sturm-Abteilung (“Divisão de Assalto”), organização paramilitar fundada pelo partido nazista em 1921. O ano de 1934 pode ser apontado como o ano de consolidação da política interna nazista. Uma vez que o possível foco de oposição ao regime havia sido aniquilado com as prisões em massa e os assassinatos de políticos dos diversos partidos desde fevereiro de 1933, além da fuga de milhares de intelectuais rumo ao exterior, uma possível oposição interna só poderia, pois, surgir das próprias fileiras do NSDAP. Ernst Röhm, então chefe do Estado-Maior da SA, tencionou exigir a fusão da Reichswehr, o exército, à “Divisão de Assalto”, que deveria se tornar a milícia regular. Tanto Hitler como o corpo de oficiais da Reichswehr era contra, sobretudo porque tal intento criaria uma competição interna pelo poder. Alegando ter descoberto um suposto golpe planejado por Röhm, Hitler ordenou o assassinato do chefe e de diversos líderes da SA em 30 de junho de 1934. A noite em que isto ocorreu passou para a “História nazista” como a “noite dos longos punhais” (Nacht der langen Dolchen). Com isso, a SA tornou-se uma milícia subjugada ao comando da SS – Schutzstaffel (“Corpo de Guarda”) –, sob a chefia de Heinrich Himmler (1900-1945) (cf. Kammer & Bartsch, 1992, p. 124 e 183-184, e Selig, 1994, p. 179-182). Em termos ficcionais, Heinrich Mann produz em seu texto uma associação homológica entre os dois períodos históricos, ao aludir à “noite dos longos punhais” através da “noite das longas facas e de cabeças rolando”.
Tal estratégia discursiva perpassa o texto de Henri Quatre. No mesmo fragmento citado anteriormente, nos deparamos com a expressão [d]er Schmachfriede und aufgezwungene Vertrag (“[o] tratado imposto [...], resultante de uma paz ultrajante”), uma alusão à crítica geral dos partidos políticos alemães ao Versailler Friedensvertrag (“Tratado de Paz de Versalhes”), designado pela direita, pejorativamente, de Versailler Schanddiktat (“Ditado da Vergonha de Versalhes”), sobretudo pelo partido nazista. O sentido negativo do tratado de paz enquanto “ditado” resultou do fato de que a sua aceitação foi imposta pelos vencedores aos vencidos, sobretudo pela pressão da França nas questões de reparação e de culpa dos alemães pela deflagração da guerra, sem que estes últimos tivessem poder de decisão ou mesmo de influência sobre o texto e as cláusulas que o compuseram (cf. Salewski, 1997, p. 88). No discurso político da direita, o sentido de “Schanddiktat” tornou-se palavra de ordem não apenas como uma crítica à imposição do tratado de paz e das exigências de reparação, além da limitação do contingente do exército alemão a 100.000 homens, mas também como palavra de ordem contra a Social-Democracia, pois o Tratado de Versalhes fora assinado em 28 de junho de 1919, durante o Governo do Presidente Friedrich Ebert (1871-1925) e o partido social-democrata defendeu majoritariamente a sua assinatura (cf. Salewski, 1997, p. 92).
Outra expressão a se destacar no fragmento é “der Boden und das Blut” (“o solo e o sangue”), numa alusão à chamada Blut-und-Boden-Ideologie (“ideologia sangue-e-solo”), partilhada pela direita política alemã e explorada, sobretudo, pelo nazismo como palavra de ordem dentro do discurso racista: “o sangue seria portador das propriedades raciais”, e “um Estado sadio precisa ter seu ponto principal no próprio povo (sangue) e no próprio solo” (Kammer & Bartsch, 1992, p. 40). Associada a essa expressão aparece a “eloqüente” conclamação de Boucher ao emprego de “Gewalt, Gewalt Gewalt” (“violência, violência, violência”), que espelha, indiretamente, todo o caráter antiliberal e repressor do Estado nazista, um Estado totalitário que tinha por um de seus traços principais o terror gerado pelo emprego da violência.
Sem dúvida, embora breve, o fragmento é extremamente denso em matéria de emprego da estratégia discursiva que une ficcionalmente o momento de intolerância religiosa na França do século XVI e a repressão e o terror nazista na década de 30 do século XX. Como havíamos apontado anteriormente, o termo “Vernichtung” (“extermínio”, “aniquilação”) alude ao discurso racial e anti-semita propagado pelo nazismo. A ele se associam outros termos presentes na passagem do romance, como “Reinigung” (“depuração”), “fremd” (“estranho”, “estrangeiro”), “faul” (“deteriorado”, “podre”) e “zersetzend” (“degradante”, “corruptora”), mesmo que estes dois últimos adjetivos pareçam se referir a algo outro nas expressões “von einer faulen Gesittung” (“de uma civilização deteriorada”) e “einer zersetzenden Freiheit” (“de uma liberdade degradante”).
Noutro fragmento do Capítulo 6 da primeira parte de Henri Quatre, constata-se também a associação entre as duas épocas a partir da apresentação do “salvador” da Liga Católica (Mann, 1985a, p. 254):
Boucher tornou-lhes (i.e., aos presentes na igreja) claro que, embora todo o sistema do Estado fosse criminoso, Deus lhes teria enviado um líder! Lá está ele! Todos, então, se ajoelharam, especialmente aqueles que estavam sob suspeita de pertencerem aos moderados. Olhando de modo audaz por sobre eles e ousado para Deus lá no alto, Guise, em armadura prateada se comportava como se o assalto ao poder devesse começar imediatamente, e seus soldados armados brandiram as espadas. [...]4 A personagem histórica do duque Henri de Guise (1550-1588) aparece nessa passagem do romance como o “Führer” (“líder”), anunciado por Boucher-Goebbels. Guise fundara em 1576 a “Heilige Liga” (“Liga Sagrada”), cujo objetivo era a aniquilação dos huguenotes. O cavaleiro em armadura prateada também remete a Hitler na aparência, que gostava de ser retratado em pinturas como cavaleiro medieval trajando armadura, como, por exemplo, no quadro “Der Bannerträger” (1935; “O porta-estandarte”), pintura a óleo de Hubert Lanzinger (1880-1950), que retrata Hitler como um cavaleiro do Santo Graal, montado em seu cavalo e portando a bandeira com a suástica.5
Além disso, a crítica à República de Weimar é aludida através do termo “System” (“sistema”), expressão usada em sentido pejorativo pelos partidos de direita para designar a política da Social-Democracia (cf. Salewski, 1997, p. 94). O termo “Sturm” (“assalto”, “tempestade”), também parece ser uma alusão à organização paramilitar do partido nazista, criada no início dos anos 20, que se tornaria um dos principais instrumentos de repressão e do terror no “Terceiro Reich” (cf. Kammer & Bartsch, 1992, p.187-189).
Se a primeira parte de Henri Quatre é marcada pela violência desenfreada e pela impotência do rei diante dos acontecimentos, a segunda parte, Die Vollendung des Königs Henri Quatre (“A perfeição do rei Henrique IV”), publicada em 1938, como o próprio título já indica, apresenta um rei que havia amadurecido no poder, acompanhando, assim, a própria figura histórica de Henrique IV. Pois a guerra religiosa na França conheceria seu fim através de seu empenho ao promulgar o “Edito de Tolerância de Nantes“ em 1598, que punha termo aos conflitos entre católicos e protestantes, quando já haviam se passado dez anos desde a sua coroação.
É justamente a partir desse ato de Henrique IV que Heinrich Mann constrói uma mensagem literária para o presente, resgatando o legado humanista do rei francês. O romance se encerra com um “pronunciamento” do rei assassinado, que enviaria, do além, suas palavras aos franceses (Mann, 1985b, p. 562-563):
Pronunciamento de Henrique IV São vários os aspectos presentes na referida passagem, que demonstram a admiração que Heinrich Mann nutria pela França como berço das idéias revolucionárias fundamentadas pelo Iluminismo. Isto nos faz lembrar, por exemplo, da crise que se instaurou entre os irmãos Mann quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial. Enquanto Thomas Mann falava de “Geist” (“espírito”) como atributo da Alemanha e de “Zivilisation” (“civilização”) como expressão da França, Heinrich Mann acreditava justamente no caráter internacionalista que emanaria da França revolucionária como uma resposta aos nacionalismos dos diversos Estados europeus. Não é por acaso que encontramos a expressão “der Vorposten der menschlichen Freiheiten“ (“o posto avançado das liberdades humanas“), um lugar onde “Gerechtigkeit und Wohlstand sind für jeden erreichbar“ (“justiça e bem-estar são passiveis de ser alcançados por todos”).
Além disso, temos de considerar também a própria situação de Heinrich Mann enquanto exilado em Paris, na época em que escreveu o romance. Henri Quatre significa um apelo a uma atitude revolucionária que pudesse por fim aos desmandos políticos que assolavam a Alemanha. É uma conclamação à revolução para derrubar os “Unterdrücker des Volkes” (“aqueles que querem subjugar o povo”). Em suma, Heinrich Mann demonstra uma coerência entre sua postura política durante o período de exílio e aquela defendida nas décadas anteriores. Não obstante essa imagem criada ao final do romance, na qual o rei surge como um mensageiro do além, ele acaba por ocupar a posição divina, enquanto rei esclarecido, que volta a se dirigir ao povo, por ter sido “gerufen” (“chamado”, “convocado”) por “jemand” (“alguém”). Esse “alguém” é o próprio autor que busca no passado histórico uma mensagem de humanismo e de luta revolucionária para o presente.
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2 Immer fand ich den Namen falsch, den man uns gab: Emigranten.
Das heißt doch Auswanderer. Aber wir Wanderten doch nicht aus, nach freiem Entschluß Wählend ein anderes Land, dort zu bleiben, womöglich für immer. Sondern wir flohen. Vertriebene sind wir, Verbannte. Und kein Heim, ein Exil soll das Land sein, das uns da aufnahm. Unruhig sitzen wir so, möglichst nahe den Grenzen Wartend des Tags der Rückkehr, jede kleinste Veränderung Jenseits der Grenze beobachtend, jeden Ankömmling Eifrig befragend, nichts vergessend und nichts aufgebend Und auch verzeihend nichts, was geschah, nichts verzeihend. Ach, die Stille der Sunde täuscht uns nicht! Wir hören die Schreie Aus ihren Lagern bis hierher. Sind wir doch selber Fast wie Gerüchte von Untaten, die da entkamen Über die Grenzen. Jeder von uns Der mit zerrissenen Schuhn durch die Menge geht Zeugt von der Schande, die jetzt unser Land befleckt. Aber keiner von uns Wird hier bleiben. Das letzte Wort Ist noch nicht gesprochen. Todas as citações traduzidas do alemão para o Português ao longo do texto são de nossa autoria. 3 [...] Dies war ein Redner von neuer Art. Er schäumte beim ersten Wort, und seine rohe Stimme überschlug sich zum weibischen Gekreisch. Er predigte den Haß gegen die Gemäßigten. Nicht nur die Protestanten sollten verabscheut werden bis zur Vernichtung. In einer Nacht der langen Messer und der rollenden Köpfe wollte Boucher besonders abrechnen mit den Duldsamen, auch wenn sie sich katholisch nannten. Die Schlimmsten waren ihm in beiden Religionen die Nachgiebigen, die sich bereitfanden zur Verständigung und dem Lande den Frieden wünschten. Den sollte das Land nicht haben, und Boucher behauptete tobend, dass es ihn gar nicht aushalten würde, weil er gegen seine Ehre wäre. Der Schmachfriede und aufgezwungene Vertrag mit den Ketzern würde hiermit zerrissen. Laut schrien der Boden und das Blut nach Gewalt, Gewalt, Gewalt, nach einer kraftvollen Reinigung von allem, was ihnen fremd wäre, von einer faulen Gesittung, einer zersetzenden Freiheit.
4 Boucher machte ihnen klar, das ganze System des Staates wäre zwar verbrecherisch, aber Gott hätte ihnen einen Führer gesandt! Dort steht er! Alle knieten denn auch hin, besonders die im Verdacht der Mäßigung standen. Kühn über sie fort und dreist zu Gott hinan blickte Guise – in silberner Rüstung, als sollte der Sturm auf die Macht gleich losgehen, und seine Bewaffneten rasselten mit Eisen. [...]
5 Heidnisches und christliches Heldenbild. Disponível em: http://www.lmg-varel.de/faecher/geschichte/clio/heldbild.htm; Acesso em: 25 jul. 2008.
[6] Ansprache Heinrichs des Vierten
Königs von Frankreich und von Navarren von der Höhe einer Wolke herab, die ihn für die Dauer eines Blitzstrahls sichtbar macht, dann sich wieder über ihm schließt. [...] Bewahrt euch all euren Mut, mitten im fürchterlichen Handgemenge, in dem so viele mächtige Feinde euch bedrohen. Es gibt immer Unterdrücker des Volkes, die habe ich schon zu meiner Zeit nicht geliebt; kaum, dass sie ihr Kleid gewechselt haben, keineswegs aber ihr Gesicht. Ich habe den König von Spanien gehaßt, der euch unter anderen Namen bekannt ist. Er denkt noch lange nicht daran, zu verzichten auf seine Anmaßung, Europa zu verführen, und zuallererst mein Königreich Frankreich. Nun, dieses Frankreich, das das meine war, behält das im Gedächtnis; es ist immer noch der Vorposten der menschlichen Freiheiten, die da sind: die Gewissensfreiheit und die Freiheit, sich satt zu essen. Es ist einzig in seiner Art, dieses Volk, das seiner Natur nach ebenso gut zu sprechen wie zu kämpfen weiß. Es ist, alles in allem, das Land, in dem die meiste Güte lebt. Die Welt kann nur durch die Liebe gerettet werden. In einem Zeitalter der Schwachheit hält man Gewalttätigkeit für Festigkeit. Einzig die Starken können es sich herausnehmen, euch zu lieben, wenn ihr es ihnen auch schwer genug macht. Ich habe viel geliebt. Ich habe gekämpft, und ich habe die Worte gefunden, die packen. Die französische Sprache ist die Sprache meiner Wahl: selbst den Fremden will ich ins Gedächtnis zurückrufen, dass die Menschheit nicht dazu geschaffen ist, ihren Träumen zu entsagen, die nur ungenügend bekannte Wirklichkeiten sind. Das Glück ist wirklich da. Gerechtigkeit und Wohlstand sind für jeden erreichbar. Und man kann die Völker nicht umbringen. Fürchtet euch nicht vor den Messern, die man gegen euch zückt. Ich habe sie grundlos gefürchtet. Macht es besser als ich. Ich habe zu lange gewartet. Die Revolutionen kommen nicht immer wie gerufen; darum heißt es, ihnen bis zu Ende nachgehen, und das mit aller Kraft. Ich habe gezaudert, sosehr, wohl aus menschlicher Schwäche wie deshalb, weil ich euch schon von zu hoch oben her sah, euch Menschen, euch, meine Freunde. Ich bedaure einzig meinen Anfang, als ich mich herumschlug, noch ohne zu wissen, was alles mir in der Folge zukommen sollte: Größe und Majestät, hernach bitterer Verrat und, noch vor meinem Sterben, das Absterben der Wurzel meines Herzens, die nie wieder ausschlagen wird. Wenn ich mir recht darin trauen darf, sprach ich zu euch ja wohl nur von Waffengeklirr und von Glocken, die ein wundersames Getöse machen, als sie überall zum Sturme läuteten und die Stimmen dazwischen unaufhörlich schrien: „Drauf und dran! Drauf und dran!“ und „Nieder mit ihnen! Nieder mit ihnen!“ ich wäre beinahe, an die dreißig Male, umgekommen in diesem Hurenhaus. Gott hat sich vor mich gestellt. Und nun seht den alten Mann, dem es nicht sauer geworden ist, euch zu erscheinen, da mich jemand gerufen hat. Wie ein Vorhang schließt sich die goldene Wolke wieder über dem König. |
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