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Literatura e Autoritarismo
Translações Culturais – Repressão e Resistência
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 13 

LITERATURA E REPRESENTAÇÃO SOCIAL: A MARGINALIDADE E A SUBALTERNIDADE EM PLÍNIO MARCOS

Wagner Corsino Enedino1
Gizylene Clímaco de Castro2
Resumo: Tomando como base os critérios propostos por Quijano (1978) para o estudo da marginalidade e nos conceitos de subalternidade proposto por Achugar (2006), este ensaio apresenta homologias entre artifícios discursivos e ideologias em Quando as máquinas param, de Plínio Marcos. A abordagem explora o texto como história e discurso, ancorando-se em princípios de distintas correntes da teoria da literatura.
Palavras-chave: Plínio Marcos; marginalidade; subalternidade.
Abstract: Based on the chriteries proposed by Quijano (1987) to study of the marginal characters and on the Achugar’s (2006) concepts about subaltern ties , this essay will show homologies between discoursive strategies and the ideologies existing in Quando as máquinas param, by Plínio Marcos. The analysis emphasizes the text as diegesis and as discourse and it is anchored on different principles of literary theory.
Keywords: Plínio Marcos, marginalities; subalternity.

Introdução
O dramaturgo Plínio Marcos desenvolveu em seus textos, entre 1958 e 1998, uma singular riqueza de facetas em que prevalece ora o social, ora o político, ora o religioso, ora o cômico, em temas diversos e por meio de uma linguagem crua, de tom incisivo. Suas palavras exprimem o duplo sentido de seu pensamento: de um lado, seu socialismo revolucionário, ligeiramente tingido de veleidades de anarquista, das suas convicções sociopolíticas; de outro, esse mesmo anarquismo, sublimado até a capacidade de construir, sobre a terra arrasada, um mundo novo, o da criação artística.
Nos textos de Plínio Marcos despontam personagens cujos comportamentos e cujo discurso projetam uma realidade social, num levantamento quase documental de situações sociais e de caracteres que, embora atuais, extrapolam limites temporais e espaciais para inscreverem-se numa cosmovisão sócio-política de cunho mundial. Além disso, o dramaturgo fez de sua obra uma espécie de tribuna para dar voz à massa excluída da sociedade.
É nesse segmento que repousa a maior parte da produção de Plínio Marcos, cuja poética mais densa está associada ao sofrimento e a dor causada pela marginalização social. Assim, no universo ficcional pliniano, revela-se um novo padrão de tragédia, uma vez que suas obras abordam possibilidades morais do comportamento dos seres humanos.
Neste artigo, a obra objeto de análise é Quando as máquinas param (1967), para cuja escolha foram considerados dois critérios: sua importância para um levantamento social do problema da marginalidade e subalternidade (desemprego), bem como a densidade ôntico-discursiva de seus protagonistas. Nesse aspecto, a peça torna-se um texto que procura denunciar a miséria humana associada à degradação física e moral das personagens.

1. Marginalidade: um breve conceito
Para alguns estudiosos como PARK (apud QUIJANO, 1978, 14) a marginalidade apresenta-se como fenômeno de desorientação psicológica dos indivíduos submetidos a uma situação de conflito cultural. Nesse segmento, marginal seria o indivíduo que “o destino condenou a viver em duas sociedades e em duas culturas, não apenas diferentes, porém antagônicas”. (QUIJANO, 1978, p.14). Ao desenvolver tal idéia, as pesquisas procuraram definir o homem marginal como aquele que sofre as incertezas psicológicas derivadas do fato de viver um processo de mudanças e de conflito culturais que se produz pelo enfrentamento entre duas culturas antagônicas, superpostas numa relação de dominação, e dentro do qual o indivíduo participa como membro da cultura dominada e exposto, por isso, às pressões de atração e de repulsão que, ao mesmo tempo, a cultura dominante exerce sobre os membros da dominada.
A personalidade dos indivíduos submetidos a tal situação não pode deixar de refletir “as discrepâncias e as harmonias, as atrações e repulsões entre os dois mundos” (QUIJANO, op. cit., p. 14), constituindo-se, dessa maneira, numa personalidade marginal. Nesse contexto, o conceito de “marginalidade” pode ser um fenômeno psicológico de cunho individual, que consiste no conjunto de tensões e conflitos entre os elementos que provenientes de culturas antagônicas, estão incorporados à personalidade de um indivíduo numa situação de mudança e de conflito culturais, e por esta causa este não é capaz de orientar-se coerentemente em relação aos problemas de participação na cultura. Em síntese, pode-se entender o conceito de marginalidade como uma marca da personalidade. Com efeito, a ambivalência, a tensão, a irritabilidade, a excessiva consciência e a falta de confiança são postas como características da personalidade dos indivíduos que fazem parte de determinados grupos marginais.
O conceito de “marginalidade” que permeia o trabalho corresponde à “teoria da situação social marginal”, ligada, sobretudo, aos problemas do subdesenvolvimento: o indivíduo marginal seria aquele que é alvo das incertezas psicológicas derivadas do fato de estar inserido num processo de mudança e de conflitos culturais, que ocorrem pelo choque entre duas culturas diferentes, superpostas numa relação de dominação. O indivíduo é membro participante da cultura dominada e, em decorrência disso, exposto às pressões de atração e de repulsão que a cultura dominante exerce sobre a cultura dominada, aos problemas das relações e das estruturas sociais, amplamente vista em Quando as máquinas param (1967). Trata-se, assim, da “marginalidade como cidadania limitada” (Marshall apud QUIJANO, 1978, p. 21), correlacionada ao conceito de integração social.

2. Em cena, a subalternidade
Os trabalhos acerca dos Estudos Subalternos buscam encontrar a voz reprimida daqueles que se encontram na condição de subalternidade. Assim, para que se possa compreender a cultura latino-americana numa visão mais abrangente, torna-se necessário que se lance um olhar mais atento no que se refere aos aspectos de ordem crítica. Importa destacar que a subalternidade não constitui tão somente uma categoria fixa ou de caráter essencialista. Tal conceito está associado a parâmetros que se estabelecem para o processo da configuração do sujeito dominante da pós-modernidade transnacional, bem como a relação de poder deste com o subalterno. Acrescente-se que ambos fazem parte do mecanismo estrutural da sociedade contemporânea.
Com efeito, abre-se espaço para determinados questionamentos: se considerarmos que subalterno é aquele que depende do outro; os habitantes da América Latina seriam subordinados a quem? Quem somos nós? Nesse aspecto, cumpre destacar que não há uma única resposta, pois “nós” remete à heterogeneidade, deslocamento, ou seja, algo que está em constante mudança. Assim, a idéia de subalternidade está pautada, sobretudo, na idéia de reivindicação dos direitos e proclamar uma antiga e forte tradição do pensamento critico latino-americano letrado. (ACHUGAR, 2006, p.23)
De acordo com Gayatri Spivak (apud ACHUGAR, 2006, p. 24) o subalterno não pode falar, pois se fala já não é. O subalterno é falado pelos outros, pois na periferia não há linguagem, não há boca, não há discurso. Nesse aspecto, a periferia, a margem, é lugar da carência. Alguns afirmam – em uma lógica - que periferia ou margem são sinônimos, ou seja, parentes próximos do subalterno ou do excluído. (ACHUGAR , op. cit., p. 20)
Com efeito, pode-se entender que “subalterno” não constitui uma categoria, mas sim uma perspectiva e, por conseguinte, a noção de subalternidade não está empenhada em compreender tais organizações ou ações sociais per se, mas em entender suas relações “contratuais” em obediência a regras coloniais e “as formas de dominação próprias das estruturas da modernidade”. (MIGNOLO, 1989, p. 259).
Assim, não se pode evitar a análise da poética pliniana com base nos pressupostos teóricos de marginalidade e subalternidade, uma vez que a verve tratada pelo ator santista não é apenas a reflexão de um artista sobre determinado grupo social, é também a ponderação da condição humana, tanto de forma totalizadora, quanto de ordem política, pois:
A qualificação do deslocado, ou do lugar de desprezo e do não valor é produzida por outros e não pelo sujeito da enunciação mesmo que ele termine por assumi-la, com ou sem orgulho, de forma submissa ou insubmissa. É um fragmento, um balbucio. Outra coisa não pode elaborar aquele que falam da periferia ou desse lugar que alguns entende como espaço da carência. (ACHUGAR, 2006, p. 14).

3. Em cena, a fábula
A peça inicia-se com a personagem Zé jogando futebol com alguns meninos na rua de sua casa como costuma fazer. Sua esposa Nina não gosta que seu marido brinque com as crianças, bem como não gosta dos palavrões que pronunciam durante as partidas.
Com a economia doméstica fragilizada, Zé busca no futebol a válvula de escape para as suas aflições e tormentos; enquanto sua esposa busca, por meio das novelas, uma forma de alimentar a esperança de um futuro promissor.
Em decorrência da crise financeira fortalecida pela condição do desemprego, o casal passa a dever para o único lugar que ainda tem crédito: a venda que fornece alimentos. Para agravar ainda mais a situação também estão inadimplentes com o aluguel do imóvel onde moram. Com o atraso, o dono comunica a Nina que precisará da casa, mas pagará o transporte dos móveis do casal para outro destino.
Em meio a diversas crises, Nina busca, de todas as formas, amenizar o sofrimento do marido, encorajando-o a continuar a busca por um novo emprego, e ajudando nas despesas domésticas com a sua atividade de costureira. A oportunidade surge com uma fábrica em Osasco, na grande São Paulo. Entretanto, Zé não consegue a tão almejada vaga de operário, pois não tinha dinheiro para participar de um esquema de propina conduzida por um funcionário do Departamento de Recursos Humanos da empresa.
Então, Nina convence o esposo a aprender a dirigir com Zelito, um motorista de táxi que propôs sociedade com Zé, um dirigindo durante o dia; outro, à noite. Quanto à habilitação, Nina diz que pedirá ajuda financeira a sua mãe, o que desagrada amplamente o marido, bem como a possibilidade de vir a morar nos fundos da casa da sogra.
Nova discussão se instala, e Nina comunica que está grávida. A princípio Zé parece gostar da idéia de ser pai, porém quando pensa nas dificuldades que estão passando, e o que será de suas vidas com uma criança, ameaça a esposa para que ela aborte. A discussão se acentua, e Nina diz que irá para a casa de sua mãe. Num ato intempestivo de desequilíbrio e insanidade, Zé desfere um soco na barriga da esposa que se dobra lentamente caindo ao chão com expressão de angústia, dor e sofrimento olhando para a figura sagaz do marido enquanto a luz vai se apagando lentamente.

4. Sob a luz da marginalidade e subalternidade: uma análise
Nos textos de Plínio Marcos, em sua maioria, há, consideravelmente, a presença de dor e de angústia em cada personagem. É certo que tais desconfortos são nitidamente resultantes da condição de subalternidade em que se encontram, pois estão à margem da sociedade, destacando-se, sobretudo, a temática da violência. Portanto, as peças do autor são uma forma de chamar a atenção sobre o que acontece no mundo periférico, uma maneira de poder expressar a revolta, o descaso, a falta de perspectivas sociais e humanas e a luta incessante pela sobrevivência.
A proposta da peça Quando as máquinas param (1967) é trazer à tona aspectos que possam conduzir à rediscussão e ao redimensionamento do ambiente urbano, pois: “O desempregado, acumulando as frustrações de ver, impotente, escapar os seus projetos de vida, e a costureira de freguesia e ganhos minguados, resistindo, ajudada pelo romantismo das telenovelas, às dificuldades do cotidiano são um casal no limite da margem.” (LUIZ, 2001.)
As personagens que constroem as ações do drama estão imersas em problemas sociais: Nina e Zé são um casal proletário com um projeto: trabalhar, construir uma família e viver decentemente. No decorrer da trama, ela fica grávida e ele, desempregado. Os fatos provocam uma contundente crise familiar e, pois, motivam discussões sobre fome, saúde, educação, que enveredam por questões de ordem psicológica, trazendo, para a arena, um constante jogo de disputa de poder, que muitas vezes culmina em discussões de gênero, marginalidade e subalternidade.
Importa destacar que a personagem Zé, na maioria das vezes, recorre ao discurso do senso senso comum (“é melhor pedir que roubar”) – o que produz um efeito de alienação, disfarçada em conformismo. Já a personagem Nina funciona como contraponto do gênero masculino representado pela figura de seu marido. Compatíveis com o gênero que representa – diante da sociedade –, suas falas caracterizam-se pela presença do tabu linguistico, amplamente difundido nas suas falas, o que denota, de certa forma, evidências de preocupação com a moralidade.
           NINA – (Na janela) Por que não vão falar palavrão na porta de suas casas? (A molecada vaia.)
ZÉ – (Entrando) Qual é a bronca, Feola dos pobres?
           NINA – Essa molecada aí. Ficam falando palavrão aqui em frente. Por que não vão jogar noutro lugar? (PLÍNIO MARCOS,1967, p. 45)
O artista, de certa maneira, evidencia uma distância e, ao mesmo tempo, um diálogo permanente entre posições diferentes de sujeito: homem/mulher. Se, por um lado, estabelece alianças cruzadas entre as personagens (homem e mulher sem voz/ homem e mulher oprimidos), por outro, acentua os silêncios que marcam certos limites não superáveis sobre quem tem o discurso e quem ouve.
Em Quando as máquinas param (1967), paira uma espécie de inaptidão para a existência e, sobretudo, um ser vazio de valores éticos, e que por isso mesmo reflete, a despeito do autor, problemas que atormentam a nossa consciência e a nossa sensibilidade humana desde longos tempos passados:
ZÉ - Todo dia ando pra cima e pra baixo e não há meio de arrumar uma vaga.
NINA - Não pode desanimar.
ZÉ - Não pode mesmo. Mas às vezes o cara arreia. O pior é que tudo quanto é fábrica está mandando gente embora. Só a FIPAM mandou mil ontem. E dizem que vão mandar mais na semana que vem.
NINA - Que será que está havendo? (PLÍNIO MARCOS, 1967, p.47)
A personagem Zé, configura-se como um operário sem qualificação profissonal – o subalternista por definição e, por extensão, deixa-se permanecer preso à condição problemática básica de, ao mesmo tempo, afirmar a abandonar a singularidade cultural estabelecida. Ele encontra-se deslocado, perdido, à margem, afastado do seu lugar, um excluído; compartilha com Nina a experiência da humilhação e do desprezo social.
Em Quando as máquinas param (1967), o país atravessa um momento de crise. Nesse segmento, Zé entende que numa situação adversa “a corda sempre arrebenta pelo o lado mais fraco”, uma vez que, em seu entender, gente como ele sofre primeiro quanto a crise aperta. Em síntese, os problemas que permeiam o universo da personagem são resultantes da questão política vigente.
O país enfrentava graves problemas econômicos e financeiros, e o ambiente geral não pode ser sensatamente otimista. Nesse sentido, a personagem Nina representa a esperança. Ela acredita, deseja, imagina, constrói e ficcionaliza o seu lócus, resultando, em muitas falas, certo grau de alienação. Não há como evitar o processo analítico respaldado por poéticas modernas e contemporâneas do teatro de Plínio Marcos, pois o lúmen tratado pelo dramaturgo não é apenas a reflexão de um artista sobre determinado grupo social, é, antes de tudo, a ponderação, a reflexão acerca da condição humana antes a marginalidade e subalternidade.
Esses fatores estão associados ao sentido político da América Latina, pois realismo que irrompe a ação dramática das personagens, em diversas vezes, fala por si próprio, porque “o político em seus textos vem da constatação de que os problemas que mostra, existem na realidade, em função de um sistema social injusto”. (GUERRA, 1988. p. 50)
Com efeito, a ordem política presente na obra estabelece, em densidade considerável, tons de incredulidade governamental:
NINA - Que será que está havendo?
ZÉ - O que? Esse governo.
NINA - Mas tem que melhorar um dia!
ZÉ - Pior não pode ficar. (PLÍNIO MARCOS, 1967, p.47)
O discurso patriarcal – senão machista – que determina ao homem o papel de gestor das finanças e responsável pelo sustento da família vem à tona pela voz de Nina:
ZÉ – Deixa de onda. Que é que tem? Bater bola nunca fez mal a ninguém. Até ajuda a esquecer.
NINA – Esquecer? Sei. Que adianta esquecer?
ZÉ – Pelo menos não me arde o coco.
NINA – Arde o meu.
ZÉ – Quem manda ficar bronqueada à toa?
NINA – À toa? Quem agüenta os cobradores aí na porta sou eu. (PLÍNIO MARCOS,1967, p.45)
Produzindo uma solidária estratégia narrativa de vertente política, de uma personagem de gênero masculino que cede lugar central da enunciação ao sujeito feminino, o autor vai dando cores de opressão à peça. Opressão que envolve as camadas menos abastadas da sociedade, opressão que surge por vozes silenciadas pelo contínuo processo de globalização e, com efeito, estabelecendo a mão-de-obra disponível no mercado de trabalho como algo descartável.
Articulando desejos da mulher e questões éticas gerais, Plínio Marcos produz uma colaboração solidária entre autor/enunciador/homem e o discurso/personagem/feminino. Tendo recebido o poder parcial da enunciação, a personagem Nina deixa de ser apenas representação para se constituir efetivamente em um sujeito da enunciação na obra. Sem qualquer intenção de neutralidade, a voz da personagem se imiscui no discurso com seu “eu masculino”, gerando dois timbres: o masculino e o feminino, no que se refere a questões de educação:
           NINA – A culpa é dos pais, que não toam conta dos filhos. Essa molecada vive largada o dia inteiro na rua.
           ZÉ – Cada um faz o que pode. Vão prender dentro de casa? Moleque é moleque.
NINA – Deviam botar ele numa escola.
           ZÉ – Fácil falar. E o tutu? Pensa que é só querer botar os filhos na escola? Custa dinheiro.
           NINA – Bota o filho de aprendiz de mecânico, ou qualquer outra coisa. Não é todo mundo que precisa ser doutor. Aprende um ofício. Ta aí uma grande coisa. (PLÍNIO MARCOS, 1967, p52)
A obra de Plínio impõe desde já um diferencial no que se refere à representação da mulher. Sem deixar de considerar as variantes e exceções, temos na literatura modernista o desejo de revelar a opressão contra a mulher a partir da representação das relações sociais desiguais, marcadas pela quase invariável submissão feminina e a suposta “perda da identidade”. São obras que exploram os conflitos gerados pela impossibilidade de o sujeito feminino realizar-se e realizar seus projetos de vida. Em contrapartida, o projeto estético/literário no qual se insere Plínio Marcos procura contrapor ao estado de opressão um sujeito feminino que busca afirmar-se e marcar seus posicionamentos no processo de construção de sua identidade, uma vez que:
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento - descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. (HALL, 2003, p. 09)
O teatro brasileiro dos anos sessenta, em sua vertente engajada, chama a si a tarefa de desvendar os mecanismos do sistema de exploração político e social. É solidário com o destino do povo, e segundo Anatol Rosenfeld.(1967, p. 42) tem sê-lo, para que se possa caracterizar como nacional e popular.
Os dramaturgos da geração de Plínio Marcos gozavam a esperança de poder construir um novo país. Para orientar a arte em direção ao seu desejo, precisaram criar novas personagens que representassem, desde a sua gênese, a linguagem do meio em vivem ou sobrevivem. Em outras palavras: o engajamento político de grande parte dos dramaturgos ativos no início dos anos sessenta exigia como premissa que o povo fosse alçado ao estado de herói. Importa, todavia, esclarecer que, em teatro, essa condição pertença exclusivamente ao mito. Numa visão mais totalizadora, foi estilizado em proletariado.
Qual seria a atitude do artista (escritor) de um país em evidente inferioridade econômica com relação à cultura ocidental, à cultura da metrópole, e finalmente à cultura de seu próprio país? (SANTIAGO, 2000 p.17).
Plínio Marcos, em boa parte de sua produção, dissipa o véu do imperialismo cultural, contribuindo, de maneira decisiva, com uma reflexão, por vezes incisiva, acerca da sociedade civil organizada. O autor faz uso da realidade que o cerca, apresentando em sua obra o discurso crítico que ridiculariza o poder e, por extensão, o meio social. Os mecanismos de poder despertam, no processo de criação do artista, um profundo desejo de transformação da realidade, seja por meio de radicalismos, seja para acelerar o processo de expressão da própria experiência. Além disso, acrescente-se o fato da configuração da imagem deste país em outros continentes, uma imagem que ultrapassa fronteiras e que “o escritor latino-americano nos ensina que é preciso liberar a imagem de uma América Latina sorridente e feliz, o carnaval e a festa, colônia de férias para turismo cultural”. (SANTIAGO, 1971 p.26)
ZÉ - Ele vai despejar a gente, Nina!
NINA - Despejar?
ZÉ - É. Ele pede a casa de fininho. Mas o que ele quer é botar a gente pra fora daqui. Canalha! Pra onde a gente vai, Nina? Pra onde?
NINA - Mas ele falou que da uma grana pra mudança.
ZÉ - Mas pra onde a gente muda? Quem vai querer alugar casa pra desempregado? Quem? (PLÍNIO MARCOS, 1967, p. 53)
A ameaça em desocupar a residência gera violência psicológica sugerindo represálias contra seus moradores, uma vez que a:
Antecipação de um golpe pode fazer tanto mal ao psiquismo quanto o golpe realmente dado, o que é reforçado pela incerteza em que a pessoa é mantida, sob a realidade da ameaça. O que importa é alimentar, deste modo o poder sobre o outro. (HIRIGOYEN, 2006 p. 41).
Nesse sentido, a ameaça também ignora as necessidades, os sentimentos ou cria intencionalmente uma situação de falta e frustração para manter o outro na insegurança. Essa violência “ameaça” psicológica tem em vista as emoções do outro ou, mais exatamente, suas fragilidades emocionais.
Constitui um processo que visa a implantar ou manter um domínio sobre o outro. A repetição “cobrança” e o caráter humilhante de tais situações podem provocar um verdadeiro estrago na mente da pessoa ou até levá-la ao desespero total, gerando um processo muito destrutivo para a auto-estima da pessoa que sofre com as pressões do dia-a-dia.
A personagem Zé configura-se, sobretudo, como um indivíduo que parece estar perdido tanto no tempo quanto no espaço, sem amarras com o presente, e, por isso, destituído de qualquer idéia de futuro. Este luta por um emprego, impinge à personagem a marca da exclusão, uma vez que Zé é tão somente o resultado de um mundo tecnocrático que o exclui, reduzindo-o a condição de marginalidade/subalternidade na sociedade global.
Entretanto cria-se uma nova e até então desconhecida forma de desigualdade social, que não pode ser compreendida no âmbito legal de um único estado-nação, nem pelas relações oficias entre governos nacionais, já que a razão econômica que convoca os novos pobres para a metrópole pós-moderna é transnacional e, na maioria dos casos também é clandestina. Entre as duas pobrezas – anterior e a posterior a revolução industrial -, existe um revelador intrigante silêncio, assim como para os operários desempregados no mundo urbano, a desigualdade social na pátria vem propondo um salto para o mundo milionário e transnacional. (SANTIAGO, 2000 p. 51).
Nesta direção, a marginalidade é também proposta como uma inconsistência, entre o grupo social de pertencimento e o grupo de referência positiva. Marginal, neste sentido, seria alguém que usa como grupo de referência positiva um grupo ao qual pertence; ao mesmo tempo em que existem barreiras que o impedem de chegar a ser membro de seu grupo de referência.
De outro lado, a marginalidade é definida como uma característica de um determinado complexo de papéis – status como tal independente de suas repercussões psicológicas sobre a personalidade do individuo implicado. A marginalidade consiste, aqui, em um modo imperfeito de institucionalização de complexo de papéis – status, ou seja, consiste nas ambigüidades cumprimentos das expectativas normalmente associadas a um papel e na aplicação inconsistente as sanções correspondentes. (QUIJANO, 1978, p.16-17). Nesse aspecto, Zé parece estar cansado da sua condição de subalterno:
ZÉ - Eu estou começando a cansar de dar jeito pra cá, dar jeito pra lá. Eu queria ter um negocio firme qualquer. A maior mancada que dei nessa vida foi não ter aprendido uma profissão já que eu não pude estudar, devia ter um oficio qualquer. Ser barbeiro, me especializar em alguma coisa. Torneiro mecânico trabalha, quem sabe alguma coisa se vira. Os caras que nem eu é que sempre estão na mão. Apertou, são os primeiros a irem pra rua. (PLÍNIO MARCOS, 1967, p. 56)
Existe um conflito, pois Zé está à procura de uma solução para salvar a vida financeira do casal. O problema profissional que a personagem atravessa tem uma fundamentação política que o antecede. Mas, enfim, toma consciência de que seu padecimento tem um único culpado, ou seja, ele mesmo:
ZÉ - Pobre é uma desgraça. Gente rica, que tem os tubos não se afoba para pagar. Não querem nem saber.
NINA - Eles são eles! Nós somos nós!
ZÉ - Só quem sempre se estrepa somos nós. Aquela coroa grã-fina já fez o acerto dos vestido que você fez para ela? [...] Pagou uma ova! (PLÍNIO MARCOS, 1967, p. 46)
O desapego às relações de caráter conjugal parece forjar as bases para o descontrole emocional. Numa situação de horror, em que a personagem perde todos os seus referenciais, esquece os contornos afetivos e desfaz-se do vínculo familiar, o protagonista desfere um soco na barriga de sua mulher de modo a interromper a gravidez.
Mesmo se idealizada como uma mãe-coragem brechtiniana, Nina apresenta marcas significativas de sujeito na acepção pós-moderna. Seu sonho de consumo apresenta-se na forma de uma televisão, veículo típico de comunicação de massa do século XX. Plínio Marcos parece fazer uso desses mecanismos para, de certa forma, deixar transparecer aspectos de alienação político-social das personagens.
Ainda neste segmento, o autor atribui às personagens contornos maniqueístas, o que revela fraquezas, angústias e especialmente frustrações diante do complexo jogo de poder que envolve a lógica do mercado contemporâneo. Nesse aspecto, observa-se a condição que envolve as personagens, ou seja, a condição que rege os mecanismos que compõe o universo mercadológico. Paralelamente, Zé traz para o centro da discussão questões relativas às conseqüências desse tipo de política econômica. Com isso, a personagem perde a noção de família e solidariedade, deixando transparecer sua total indignação e pessimismo diante de um futuro nada promissor.

Considerações finais
A obra Quando as máquinas param (1967), coloca o leitor/espectador diante de fatores econômicos que implicam a formação das diferenças entre classes; compõem o fio condutor da construção de sentido. O desemprego faz implodir um a um esses fatores, para desnudar a camada estrutural que realmente importa: a questão da marginalidade e subalternidade. As diferenças entre os gêneros permanecem, na peça, como a única relação de poder que se perpetua em um universo tão cáustico.
Ainda neste segmento, Plínio Marcos atribui às personagens contornos maniqueístas, o que revela fraquezas, angústias e especialmente frustrações diante do complexo jogo de poder que envolve a lógica do mercado contemporâneo. Assim, observa-se a condição que envolve as personagens, ou seja, a condição que rege os mecanismos que compõe o universo mercadológico. Paralelamente, Zé traz para o centro da discussão questões relativas às conseqüências desse tipo de política econômica. Com isso, a personagem perde a noção de família e solidariedade, deixando transparecer sua total indignação e pessimismo diante de um futuro nada promissor, pois como afirma Schiller (1991, p. 40): "O teatro não nos chama atenção apenas sobre o homem e o seu caráter humano, mas também sobre destinos, ensinando-nos a excelsa arte de suportá-los".
Ocorre, pois, na peça, “a politização do teatro” a que se referiu Badiou (apud RYNGAERT, 1998, p. 42-3), pois o texto teatral apresenta-se como “uma resposta a (uma) questão não formulada do grupo social” (Übersfeld, apud RYNGAERT, 1998, p. 43), em histórias contadas e em silêncios, que são o efeito de sentido e a legitimação das forças políticas (CORTEN, 1999, p. 37), alcançado na fixação de conflitos humanos em situações históricas e na demonstração de que eles dependem delas.

Referências

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CORTEN, André. Discurso e representação do político. In: INDURSKY, Freda e FERREIRA, Maria C. Leandro (Orgs.). Os múltiplos territórios da análise do discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999, p. 37-52. (Ensaios 12)
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1 Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas
2 Mestranda em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – CCHS – Campo Grande
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