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Literatura e Autoritarismo
Processos de identificação e políticas da (in)diferença
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 18 

OS DILEMAS DO HOMEM MODERNO EM A HORA DOS RUMINANTES DE J. J. VEIGA

Adriana Röhrig
Resumo: O presente artigo visa discutir aspectos da Modernidade e, a partir de um breve apanhado histórico, analisar como o processo de modernização e os dilemas do homem desse tempo são representados na obra A Hora dos Ruminantes, de J. J. Veiga. Além disso, visa compreender como se dá nessa obra a relação entre o autoritarismo, o regime político e a mentalidade capitalista e como estes elementos influenciam o comportamento humano e da própria sociedade.
Palavras-chave: Modernidade, Homem Moderno, Capitalismo, Relações de poder.
Abstract: This article aims to discuss aspects of Modernity, starting on a brief historical overview, analyze how the modernization process and mankind dilemmas of such period are represented in A Hora dos Ruminantes by J. J. Veiga. Furthermore, it aims to understand how the relation among authoritarianism, political regime and capitalist mentality take place and also how these elements influence the human behavior and society itself.
Keywords: Modernity, Modern Man, Capitalism, Power Relationship.

“Como uma ferida secreta que nada cicatriza, a sociedade
moderna carrega dentro de si um princípio que nega e que
ela não pode renegar sem se renegar a si mesma e se
destruir. A crítica é seu alimento e seu veneno.” Octávio Paz

Introdução
Quando a intenção é voltar um olhar mais atento e acurado para o período histórico conhecido como Modernidade, algumas noções e perspectivas não podem ficar de fora do nosso campo de visão. Não podemos perder de vista, por exemplo, que se trata de um período relativamente extenso da história do homem, sobre o qual o marco inicial varia conforme o ângulo de estudo e de acordo com o autor. O que parece ser consenso é que a Modernidade diz respeito a mais de dois séculos, abarcando pelo menos do século XVIII até meados do século XX, em que o sujeito é a vedete. Isso por si só significa que nuances vão se definindo ao longo deste tempo em que o pensamento racional impera. Dentre as características mais marcantes da Modernidade talvez a mudança seja a mais pertinente, pois a mudança pressupõe a superação. Na Modernidade a superação do “modelo anterior”, por assim dizer, se deu a partir e através da crítica ao modelo vigente. Sob esse prisma, a crítica de si é outra das características fundamentais à Era Moderna.
Enfim, falar em modernidade significa conceber a um só tempo que saber é ousar, é luz, como defendia Kant e que saber é dor, como mais tarde declarará Nietzsche. Tal paradoxo é um dos vários intrínsecos a essa Era, que não é excludente, por não poder ser vista enquanto isso ou aquilo, mas sempre em direção inclusiva, de que o isso pode ser também aquilo. Talvez possamos interpretar sob esse viés a afirmação de Marx, tomada por Berman para dar título a sua obra: Tudo que é sólido desmancha no ar; ou seja, que a modernidade tem bases de sustentação muito sólidas, mas que são contraditórias, frágeis, podendo também se esvair, evaporar, sem, contudo, perder sua substancialidade, como se sua essência fosse justamente composta por solidez e vapor, por aspectos palpáveis e concretos, mas, também fugidios e voláteis.
Em outras palavras - para que não pareça que estamos fazendo aqui considerações puramente metafísicas - isso significa que a Modernidade está sempre sujeita a críticas e renovações, sendo a sua dinâmica um movimento constante e dialético de “tradição e ruptura”, nas palavras de Octávio Paz. Isto porque, como este crítico muito bem coloca em “Ambiguidade do Romance”, “o traço distintivo da Idade Moderna – esta que agora expira diante de nossos olhos – consiste em fundar o mundo no homem. E a pedra, o cimento em que se assenta a fábrica do universo é a consciência (PAZ, 1982, p. 267)”. O homem possui, pois, enquanto sujeito pensante, uma capacidade muito grande de renovação através da reflexão crítica e autocrítica, as quais podem, em contrapartida, levarem-no a sucumbir. Ocorre-nos que se a Modernidade funde-se nesse traço oscilante, essencialmente humano, em um tempo em que o sujeito é a base e o vértice sobre o qual tudo em torno gira, torna-se compreensível a sua natureza igualmente complexa. Como afirma Perry Anderson, ser moderno é encontrar-se “em um meio-ambiente que nos promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo – e que, ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que conhecemos, tudo o que somos (ANDERSON, 1986, p.1-2).”
Para Octavio Paz “a modernidade é uma tradição polêmica e que desaloja a tradição imperante, qualquer que seja esta; porém desaloja-a para, um instante após, ceder lugar a outra tradição, que por sua vez, é outra manifestação da atualidade (PAZ, 1974, p. 18)”. Isso porque
a modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. O moderno não é caracterizado unicamente por sua novidade, mas por sua heterogeneidade. Tradição heterogênea ou do heterogêneo, a modernidade está condenada à pluralidade: a antiga tradição era sempre a mesma, a moderna é sempre diferente (PAZ, 1974, p. 18).
A concepção de tempo na modernidade é fundamental para que compreendamos a dimensão dos seus paradoxos. O tempo moderno nos suscita “dupla e vertiginosa sensação”, o que acabamos de viver já pertence ao passado à mesma medida que a “antiguidade milenar está infinitamente próxima”. Esse tempo contraditório, segundo Paz, produz expressões muito sintonizadas com as sensações que a modernidade provoca, em especial, a perturbação gerada pela nova percepção da passagem do tempo: “a época moderna é a da aceleração do tempo histórico (PAZ, 1974, p. 22)”. Nessa época a idéia de sucessão é substituída pela de simultaneidade, isto é, “passam-se mais coisas e todas eles passam quase ao mesmo tempo, não uma atrás da outra”, sendo assim, continua Paz, “aceleração é fusão: todos os tempos e todos os espaços confluem em um aqui e um agora”.

Breve apanhado histórico da Era Moderna
Muitos pensadores entendem que a Modernidade teve seu embrião já no século XVI. Hanna Arendt faz parte deste grupo, visto que em sua magistral obra A Condição Humana defende que a Modernidade teve início quando determinados signos de certezas foram abandonados em função do surgimento da “ciência demonstrativa”. Isto é, com a perda das verdades, segundo Arendt, abre-se espaço para a ciência que demonstra empiricamente as verdades; em função disso, ela defende que a invenção do telescópio é um dos marcos, definitivos, da Idade Moderna.
Para essa pensadora o telescópio transformou-se no signo do abandono, da capacidade e da reflexão do homem, pois a partir deste instrumento o homem pode demonstrar a verdade, deixando ela de ser atributo de conquista somente através da reflexão e argumentação. Ao lado do telescópio Hanna Arendt julga que as Grandes Navegações e a Reforma Religiosa são determinantes para a inauguração da Modernidade. As Grandes Navegações e a consequente expansão marítima são responsáveis por um reposicionamento do sujeito frente ao mundo, que percebe a sua vastidão ao mesmo tempo que o vê “aos seus pés”. Isso confere ao homem um poder muito grande sobre a natureza, passando a entender a partir de então que pode desbravar os mares e conquistar um “novo mundo”. Para completar a tríade, Arendt chama a atenção para o significado da Reforma Religiosa para a Modernidade, a qual, segundo ela promoveu o abalo de muitas certezas uma vez que contestou o fato de haver uma única voz autorizada, no caso a do clero. Isto é, partir daí já não há mais uma única interpretação, mas cada sujeito é de certa forma um intérprete da Bíblia, uma vez que tem acesso direto “à palavra de Deus” (possibilitado pela tradução da Bíblia em línguas vernáculas). Isso possibilitou que cada sujeito, através da leitura individual, tomasse conhecimento da Palavra e fosse seu próprio árbitro. Não por acaso o primeiro livro impresso pela prensa de Gutenberg foi justamente a Bíblia e sua invenção acabou, também - mesmo que não somente - em função disso, por ser um dos signos da Modernidade.
Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar, também considera que o processo da Modernidade tem o século XVI como marco inicial. Ele define esse processo em três etapas. A primeira, caracterizada por grandes inovações e transformações, tais como a expansão marítima, a reforma religiosa e a criação dos Estados Nacionais, teria sido a fase em que os indivíduos ainda não compreendiam a complexidade daquilo que estavam vivendo, o que o autor denomina de “estado de semicegueira”. Entre e século XVIII e XIX, sob o ícone da Revolução Francesa, Berman chama de segunda fase, na qual se notam revoluções políticas e sociais, bem como uma consciência maior do sujeito, de si mesmo e dele em relação ao seu contexto histórico. Nas palavras desse autor “esse público partilha o sentimento de viver em uma era revolucionária, uma era que desencadeia explosivas convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e política (BERMAN, 2007, p.26)”. Vale frisar que é dessa mesma época a Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos.
A partir do século XIX o fenômeno da Modernidade se pulveriza por todo o mundo ocidental. É nesse contexto que surgem os seus maiores conflitos e as contradições começam a ser evidenciadas, e isso já apontaria para a terceira fase, conforme Berman. Rousseau evocara a falência da utopia moderna um século antes, mas são Nietzsche e Marx que efetivamente vão ao âmago de suas contradições, questionando a solidez do projeto moderno. Essa crise fica ainda mais pungente no século XX, marcada pelo apogeu da tecnicidade científica, numa apologia à magnificência da sociedade capitalista, por um lado e as duas Grandes Guerras e a estratificação social, por outro. A coexistência da fome, a miséria, a exclusão, a intolerância e a desumanidade com os avanços tecnológicos e científicos, todos estes igualmente produtos da Modernidade, denuncia o que talvez seja o seu maior paradoxo.
Karl Marx, como Arendt e Berman, situa o início da Idade Moderna no século XVI, quando ocorreram processos de expansão das cidades, das atividades comerciais, da intensificação da circulação de moedas. Para Marx o processo da modernidade culmina, todavia, com o surgimento de uma massa de agentes/indivíduos expropriados de seus meios de produção e submetidos a um sistema que os obrigará a vender seu único bem: sua força de trabalho. Esses indivíduos dão origem a uma nova classe social: o proletariado. Toda a teoria de Marx se alicerça no materialismo histórico, a partir do qual ele procura explicitar, interpretar e explicar os acontecimentos históricos e sua contribuição para a construção da própria história, privilegiando os fatores econômicos. Concentrando a sua atenção na sociedade de classes, Marx a subdividiu segundo estruturas e dinâmicas de produção, classificando-a como modos de produção, nas quais existem opressores e oprimidos, exploradores e explorados. Ou seja, a sociedade para Marx vive a partir das lutas de classes. A história, vista por seus olhos, se constitui através da dialética entre as classes, cujos embates, antagonismos e contradições vão promover a transformação da sociedade ao longo do tempo.
Podemos perceber através do cotejo destas leituras da Modernidade (algumas dentre as muitas que há), que além da imprecisão de datas – aqui escolhemos partir do século XVI apesar dos historiadores que entendem que o século XVIII marcaria o seu início – há uma diversidade considerável no que concerne a forma de olhar para essa Era. Em vista disso, nos pareceu pertinente evocar pelo menos os referidos autores, para que tivéssemos, minimamente, consciência da complexidade do período histórico que estamos a tratar. Ou seja, se não o fizéssemos seria apresentar uma visão muito míope de um processo tão longo e denso como o foi a Modernidade. E ainda assim sabemo-nos em eterna dívida, pois por mais que busquemos dilatar o olhar, nunca daremos conta da totalidade, eis nossa condição humana desde a inauguração desse tempo, dito moderno.
Em “Ambiguidade do Romance”, Octávio Paz discute este gênero, essencialmente moderno, que na sua ambiguidade pode abarcar “desde a confissão e a autobiografia até o ensaio filosófico”, bem como expõe o seu hibridismo ao declarar que o romance é impuro. Nas suas palavras “sua impureza brota de sua constante oscilação entre prosa e poesia, o conceito e o mito.” Isto é, “ambigüidade e impureza que lhe vêm do fato de ser o gênero épico de uma sociedade fundada na análise e na razão, isto é, na prosa (PAZ, 1982, p. 275)”. Nesse sentido Paz chama a atenção para a peculiaridade da linguagem romanesca, destacando a importância do ritmo e do ofício, por assim dizer, do romancista: recriar um mundo, não demonstrar, nem contar. É por esse motivo, segundo Paz, que este “recorre aos poderes rítmicos da linguagem e às virtudes transmutadoras da imagem. Sua obra inteira é uma imagem. Assim, por um lado, imagina, poetiza; por outro, descreve lugares, fatos, almas (PAZ, 1982, p.274)”.
Em vista disso, poderíamos afirmar que na obra A Hora dos Ruminantes de José J. Veiga prosa e poesia andam efetivamente entrelaçados e porque essa obra não segue o modelo realista, ao que Rosenfeld denomina obras de tipo tradicional, o referente não parece ser facilmente identificável. Por se tratar de um romance moderno, o mundo construído nesse romance, além de ser repleto de imagens, contradições, rupturas e muitos silêncios. Os silêncios, opacidades e mistérios além de servirem à estratégia narrativa de passarmos “o resto da vida imaginando o que aconteceu (ECO, 1994, p.13)”, parecem ter um significado central nessa representação.

Manarairema em transformação
A Hora dos Ruminantes é um romance organizado em três partes: A Chegada, o Dia dos Cachorros e o Dia dos Bois. A cidade ficcional chama-se Manarairema e, inicialmente, antes da chegada de estranhos, configura-se em um ambiente tranquilo e bucólico, onde o tempo é marcado pelos elementos naturais e através das ações das personagens. Essa atmosfera é perceptível logo no primeiro parágrafo da narrativa, uma vez que o narrador relata que “A noite chegava cedo em Manarairema. Mal o sol se afundava atrás da serra – quase que de repente, como caindo – já era hora de acender candeeiros, de recolher bezerros, de se enrolar em xales (VEIGA, 1974, p. 1).”
Nota-se nesse início da narrativa a apresentação de alguns elementos que nos levam a considerar a intenção de representação de uma comunidade primitiva, pré-moderna. A marcação do tempo pelos elementos naturais vem ao encontro dessa hipótese, uma vez que denota a ligação do homem com a natureza em Manarareima antes da chegada dos homens da tapera. A expressão “A noite chegava” , por sua vez, enfatiza que a natureza exercia poder sobre o homem, pois ela era que determinava a hora de se recolher. Pode-se inferir já de início que essa comunidade não trabalha, realiza atividades de labor, para usar a terminologia de Hanna Arendt ao referir-se a atividades que visam à subsistência e não ao lucro em A Condição Humana. Ou seja, não há um valor de troca, de mais-valia, de exploração, pois Manarairema está, ainda, nitidamente mergulhada na economia da subsistência.
Dessa forma, a Manarairema anterior às transformações, que poderão ser observadas no decorrer da narrativa, é um espaço no qual a industrialização não chegou, e sob essa ótica a simbologia do candeeiro se faz pertinente, uma vez que remete à falta de desenvolvimento e em última instância à falta de Luz, como se Manarairema estivesse mergulhada nas trevas, refém de seus instintos, em que a racionalidade do Iluminismo não se faz presente. Nesse sentido, é importante chamar a atenção para a questão de que as palavras pressa e progresso só começam a fazer sentido em Manarairema com a chegada dos homens da tapera. Ou seja, tais noções são trazidas por esses, a quem chamaremos de estrangeiros.
É importante explicitar que o tempo verbal utilizado no primeiro enunciado da narrativa é o pretérito imperfeito do indicativo, o que pode denota que a situação apresentada não pertence mais ao presente, isto é, indica que mudanças podem ter ocorrido. Tanto que no enunciado seguinte, correspondente ao segundo parágrafo da fábula o enfoque verbal se altera. Aparecem verbos no infinitivo, no particípio e no gerúndio. Além disso, na última frase desse parágrafo há o prenúncio da mudança através do uso do verbo no futuro do presente do indicativo: “Manarairema vai sofrer à noite. (VEIGA, 1974, p.1)”
Sobre os homens da tapera pouco se sabe no início da fábula e quase nada se conhecerá até que esta termine. O que a narrativa deixa transparecer é que são de poucas palavras, autoritários, que parecem estar lá para fazer obras que ninguém consegue ter ciência de sua natureza, nem leitores nem personagens, já que o relato é fugidio e opaco. Um recurso utilizado para alcançar esse efeito são perguntas que ficam sem resposta, ou com respostas não satisfatórias. Esse recurso já fica bem demarcado na p. 03 da obra, quando os habitantes de Manarairema tentam entender a chegada dos cargueiros:
Dez cargueiros sumindo na estrada certa, sem desvio? Era preciso uma explicação, o assunto não podia ficar no ar.
- Sabem o que é que eu penso? Era vontade demais de ver cargueiro com toucinho. Quando a gente quer muito ver uma coisa, acabe vendo em pensamento.
- E nós todos não vimos? E não contamos? Eu nem tinha pensado em toucinho.
- Também pode ser animais soltos pastando por aí. Saíram do mato, entraram no mato.
A explicação era fraca, mas passou. Para refutá-la era preciso achar outra; os cargueiros não podiam ficar suspensos no ar, enrolados em nuvens. (VEIGA, 1974, p. 02-03)
Esse fragmento gera uma atmosfera de suspense e ilogicidade, que perpassa todo o relato e vai tomando formas cada vez mais inusitadas. Ou seja, as explicações fracas são uma constante em todas as situações relatadas e quando uma personagem se vê sem saída, replica com um dito popular que a “salva” de dar uma resposta lógica à indagação. Isso pode ser muito bem observado na resposta de Amâncio sobre o havia acontecido em sua ida à tapera:
- A gente soube.
Amâncio sorriu, olhou para longe e mudou de assunto:
- Quem sabe, sabe; quem não sabe que indague, dizia meu tio Lindolfo. Ele foi padre, já contei? (VEIGA, 1974, p. 24)

Os dilemas de Geminiano
No primeiro bloco da obra, denominada A Chegada, notamos mais suspense e mistério do que elementos sobrenaturais propriamente ditos (como a invasão dos bois no último bloco, por exemplo), e a influência dos homens da tapera sobre a comunidade não é ainda tão nítida. Isto é, a impregnação da dominação se dá de forma ainda lenta e silenciosa. Todavia, a personagem Geminiano já dá indícios de estar sentindo transformações na sua rotina quando começa a freqüentar a tapera e assegura que “o tempo lá é curto” (p.18), embora até esse momento o ritmo do tempo da/na comunidade ainda não tenha sofrido uma alteração significativa.
Ao lado da mudança na percepção do tempo podemos perceber uma outra mudança fundamental na sociedade de Manarairema, primeiro percebida por Geminiano, a alteração da relação com os meios de produção. Esse processo é representado por meio de uma carroça, que no início da fábula pertence a Geminiano e que acaba nas mãos dos estrangeiros. A personagem relata que a carroça não lhe pertence mais, o que mostra que ela é desprovida do seu meio de produção, passando ao status de mero vendedor da sua mão-de-obra. Percebe-se aí uma mudança paradigmática, pois enquanto nas sociedades pré-capitalistas o fim da produção é o atendimento de certas necessidades sociais, na sociedade capitalista o trabalhador é posto para trabalhar para enriquecer o capitalista. Para existir como vendedor de sua força de trabalho o trabalhador precisa ser separado da propriedade dos meios de produção, precisa existir portanto como não-proprietário.Essa alteração na percepção do tempo e a imposição de um novo modelo socio-econômico nos levam a reafirmar que Manarairema representa um processo de modernização na qual a relação com o trabalho é central.
Dessa forma, quem representa a exploração da mão-de-obra, é mais uma vez Geminiano, pois antes era dono de sua carroça e prestava serviços para a comunidade e, pressionado pelos estrangeiros, acaba trabalhando para estes em dedicação exclusiva. Antes o modo de trabalho de Geminiano era artesanal, pois ele era responsável por todo o processo, desde carregar a carroça até levar a carga ao seu destino, isso muda quando ele aceita trabalhar para os homens da tapera, mas se por um lado ele racionaliza o seu trabalho, por outro se torna refém dele, definhando espiritualmente. Isso é explicitado no final da primeira parte do romance, quando o narrador afirma que Geminiano “deu para resmungar” e “que o povo atribuía a cansaço ou desinteresse por um serviço que não variava e que parecia não ter fim” as queixas que dele ouviam.
Pelos aspectos apresentados inferimos que Geminiano esteja representando o dilema do homem moderno tabalhador, que sofre
talvez a mais grave conseqüência espiritual das descobertas da era moderna e, ao mesmo tempo, a única que não podia ser evitada, uma vez que seguiu muito de perto a descoberta do ponto de vista arquimediano e o resultante advento da dúvida cartesiana [...], a inversão da ordem hierárquica entre a vita contemplativa e a vita activa. (ARENDT, 1997, p. 302)

A opressão do povo em O Dia dos Cachorros
O Dia dos Cachorros, segunda parte do romance, é o momento em que ocorre grande alvoroço em Manarairema e podemos perceber uma brusca aceleração do tempo já na primeira frase desse bloco. O tempo verbal, pretérito perfeito, nos dá o tom da narrativa: a ação que passou, acabou, e já abre espaço a outra que vem logo a seguir. O teor do primeiro enunciado também colabora para que o leitor fique em posição de alerta para o que está por vir.
O DERRAME de cachorros foi o primeiro sinal forte de que os homens não eram aqueles anjos que Amâncio estava querendo impingir. Mesmo se eles fizeram aquilo por simples brincadeira, mostraram completa desconsideração pelos direitos alheios. (p. 33)
Podemos interpretar o derrame dos cachorros em Manarairema como uma retaliação à resistência da comunidade ao poder que tenta se instalar. Essa ação chamada derrame é incisiva e violenta, como deixa claro o narrador ao usar letras garrafais no vocábulo derrame, bem como o adjetivo forte para o substantivo sinal. Algumas páginas depois Amâncio declarará: “Quem havia de dizer que Manarairema ia mudar em tão pouco tempo... Antigamente a gente vivia descansando sossegado, dormia e acordava e achava tudo no lugar certo, não precisava pensar nada adiantado (VEIGA, 1973, p. 47)”. E em réplica a Manuel, que pergunta se o amigo não está exagerando, reitera seu posicionamento: “Quem me dera que fosse tudo uma brincadeira, daquelas que a gente fazia antigamente. Mas eu estive lá. Antes não tivesse estado (VEIGA, 1974, p.47)”.
A declaração da personagem Amâncio evidencia, mais uma vez, a implantação de uma nova ordem em Manarairema, uma vez que reafirma estarem em outro tempo, e não mais no qual ele chama de “antigamente”. Percebemos nesse enunciado um tom saudosista, de lamento pelo desassossego provocado pela aceleração do tempo, o que se ratifica com a expressão de que naquele tempo não precisavam pensar “adiantado”. Todavia, merece destaque o sentimento de medo que está impregnado em toda a sua declaração, medo esse que passa a assolar toda a comunidade. Notamos que a personagem indica a alteração das coisas (que obviamente não são objetos, mas valores) na expressão “achava tudo no lugar certo”. O tempo verbal pretérito imperfeito indica que isso não faz mais parte da situação. Há aí uma nítida articulação entre tempo e espaço, uma interdependência entre ambas coordenadas, aludindo que nesse novo tempo as coisas mudaram inclusive de lugar, no sentido de valores adquirem espaços e outros perderem lugar nesse novo tempo, na nova ordem instaurada. Não obstante, não se faz referência à nova disposição das coisas nesse novo momento, as informações se diluem na narrativa e com isso concluímos que os moradores temem o que na verdade não conhecem, não dominam e acabam, assim, dominados pelo desconhecido.
Nesse sentido, se antes da chegada dos estrangeiros os habitantes de Manarairema possuíam tempo para ruminar, socializar, conviver e contemplar, à medida que os cachorros tomam a cidade, na segunda parte do romance, o tempo e o agir dos habitantes sofrem um redimensionamento e estes agora vivem em sobressalto.

Vítimas da Nova Ordem
As situações de opressão e intromissão se intensificam à medida que adentramos na fábula, mas nunca desprovida de uma aura de mistério, de suspense. Podemos observar o fenômeno com bastante nitidez na seguinte enunciação de Manuel, dirigida a Apolinário: “- Você não conhece aquela gente, Apolinário. Eles cercam a gente por todo o lado, apertam, põem a gente numa roda viva (VEIGA, 1974, p.55)”. A referência à "Roda Viva", conhecida letra musical de Chico Buarque, que ficou famosa por fazer apologia da volta à liberdade, em plena ditadura militar, simboliza aqui justamente a falta de liberdade, a falta de autonomia que a personagem Manuel estaria denunciando, já que a referida letra é bastante ilustrativa no que tange ao que Manuel parece buscar transmitir a Apolinário nesse enunciado: seu profundo sentimento de opressão. São enunciações desse teor que nos levam a considerar a hipótese que a obra é uma representação do uso do poder pela força, possivelmente da instalação de uma nova ordem, de estruturas totalitárias e tudo o que isso implica, como, por exemplo, a atomização dos sujeitos, que perdem a sua individualidade. Isso explicaria por que os homens da tapera atacaram estrategicamente os sujeitos mais expoentes da comunidade: Geminiano, Amâncio, Manuel, Apolinário - em regimes com estruturas totalitárias não há lugar para lideranças. Os estrangeiros atacam o modo como estas se relacionam com sua produção, pois com exceção de Amâncio, que é o dono da venda, as outras três personagens possuíam uma relação artesanal com seu trabalho, antes da chegada dos estrangeiros, e é justamente essa a relação degradada pelos forasteiros.
Nesse sentido nos ocorre citar Karel Kosik, que, em sua obra Dialectica de lo Concreto, chama a atenção para o fato de que “el capitalismo rompe este lazo directo, separa el trabajo de la criación, el producto del produtor, y transforma el trabajo em uma actividad fatigosa, extenuante y no creadora (KOSIK, 1979, p.138)”. Kosik afirma ainda que “al perder su dominio sobre el mundo material creado, el hombre pierde también la realidad.” Verificamos no entrosamento entre forma e conteúdo o quanto a perda da realidade, a alienação e atomização, é materializada e por vezes não-materializada (em seus não-ditos) justamente pelo crescente absurdo do enredo dessa obra. Um exemplo está na página 22: “Das casas saíam mais gente, muitos corriam porque viam outros correrem, não sabiam para onde iam nem porque corriam.” Outro exemplo de desconexão, inconclusão e aparente ilogicidade é a história que se interpõe na fábula, daqueles que “não se importavam com os homens da tapera”: o relato de Pedrinho, Nazaré e D. Bita, bem como as próprias soluções aos conflitos por eles vividos.
A sensação de estranheza, incerteza e perplexidade acompanha os leitores praticamente durante a obra toda, essa é a atmosfera criada pelo discurso. Todavia nos parece que o ponto culminante, em que se representa a irracionalidade da razão moderna está na página 68. Trata-se do interrogatório que dois homens da tapera fazem a Apolinário, o pai de um menino que não se resignou aos mandos e desmandos da autoridade dos homens da tapera. Esse é o momento da narrativa em que há a maior verbalização por parte dos estrangeiros, o maior diálogo entre um representante da comunidade e da tapera. No entanto não passa de um diálogo esvaziado de sentido, onde a retórica se sobrepõe a qualquer coerência. Ao final desse contra-senso a Apolinário só restou sair às gargalhadas. Entre muitas questões que poderíamos aqui levantar, sobre a falência das razões modernas, esse absurdo formalizado no discurso representa a crítica que a obra faz ao autoritarismo, em toda e qualquer instância, que não se explica, mas se impõe.
Uma das questões que se instala imperiora nesse interim é sobre qual a relação entre o autoritarismo, o regime político e a mentalidade capitalista que agora vigora em Manarairema. Florestan Fernandes (1979) vem em nosso auxílio explicando que a teoria verdadeiramente burguesa, que se calca na liberdade, igualdade e fraternidade, só existe antes do domínio real da burguesia, uma vez que a partir do momento que esta pretende dominar e se move em direção a conservar a sua manutenção no poder, reproduzindo a ordem social que impõe, reveste-se de autoritarismo. De acordo com Fernandes,
do micro ao macro, a sociedade capitalista contém toda uma rede de relações autoritárias, normalmente incorporadas às instituições, estruturas, ideologias e processos sociais...tendendo a exacerbar-se como uma forma de autodefesa dos interesses econômicos, sociais e políticos das classes possuidoras e dominantes (FERNANDES, 1979, p. 13)
Vale lembrar que o poder que impera em Manarairema não está dentro da comunidade, mas exerce seus mandos de fora dela, tratando-se de uma estrutura, uma instituição que não se consegue alcançar. As personagens não têm acesso a ela, nem os leitores. O mecanismo do discurso que cria essa atmosfera opaca é justamente o silêncio, o ocultamento de tudo o que ocorre na tapera e das intenções dos estranhos em relação à comunidade. Todas as perguntas que são feitas são mal respondidas ou simplesmente “ficam no ar”, sem resposta. O que Amâncio informava sobre sua ida até a tapera era “confuso, trançado, sobrando pontas [...]. A notícia não encaixava, ficava solta pedindo explicação (VEIGA, 1974, p.21)”.
De acordo com a historiadora Beatriz Kushnir (2004, p. 37) a repressão à informação é sinônimo da expressão de força de um Estado autoritário sobre seus cidadãos. Sob esse viés, o fato da narrativa silenciar sobre tudo o que ocorre na tapera, a ponto de deixar o leitor completamente ignorante sobre os acontecimentos daquele espaço corresponde à falta de democratização das informações e a censura se estende à medida que o narrador não se dá por satisfeito em ocultar os fatos dos sujeitos ficcionais, estendendo o efeito de perplexidade frente ao desconhecido aos leitores.
Sob esse prisma, em A Hora dos Ruminantes estamos todos, leitores e personagens, diante da necessidade de conhecer e compreender, mas por outro lado frente à perplexidade e ao desespero suscitado pela ignorância. Esse é o paradoxo em que se funde o homem moderno, e esse é o desajuste vivido pela comunidade de Manarairema. José J. Veiga, de forma dialética, mostra o conflito individual na sua dimensão coletiva, de uma coletividade que vai aos poucos se esvaindo, chegando ao ponto em que “tudo ia perdendo rapidamente o valor”, em que “suspirava-se muito em toda parte e ninguém se comovia, os suspiros de um não interessavam aos sofrimentos íntimos dos outros”. Por fim, “a vida restante tinha de ser vivida dentro de cada um (VEIGA, 1974, p.94)”. Imperando assim, no desfecho da obra, a condição individualista e solitária do homem moderno.
Vale ainda destacar a presença do relógio no desfecho de A Hora dos Ruminantes, o que pode demonstrar a nova relação com o tempo. Agora a pontualidade rege todas as ações do homem de Manarairema, sejam ações de trabalho, lazer ou descanso. É bom lembrar que com o advento do Capitalismo tudo passou a ser determinado pelo relógio. Este, enquanto um objeto moderno, passa a orientar todos os movimentos dos habitantes dos centros urbanos. Seu papel, acima de tudo, é regular o comportamento dos indivíduos, determinando as ações a partir do movimento dos ponteiros. São tais degradação e rigidez, bem como a consequente opressão, próprias desse modelo sócio-econômico, que podem estar sendo representadas na obra, tendo como símbolo maior o relógio da igreja “que rangeu as engrenagens, bateu horas, lerdo, desregulado: Já estavam erguendo o peso, acertando os ponteiros. As horas voltavam, todas elas, as boas, as más, como deve ser (VEIGA, 1974, 102)”.

Considerações Finais
Enfim, entendemos que uma das questões preeminentes nessa obra de José J. Veiga vai ao encontro do que Perry Anderson desvela ao analisar o processo de modernização e os dilemas sofridos pelo homem moderno. Isto é, se por um lado o Capitalismo “arrasa todo o confinamento ancestral e toda a restrição feudal, a imobilidade e a tradição dos claustros, numa imensa limpeza dos entulhos culturais” por outro “este mesmo avanço gera uma sociedade alienada e atomizada, dilacerada por uma empedernida exploração econômica e uma fria indiferença social, capaz de destruir cada valor cultural ou político cujo potencial ela mesma despertou (ANDERSON, 1986, p. 3).”
Assim, partir das considerações tecidas aqui, inferimos que Manarairema representa primeiro um mundo onde o coletivo prevalece sobre o individual, podendo ser entendida como uma comunidade sob perspectiva pré-moderna. Todavia está condenada (p. 89), no limiar da morte (p. 94). Isso os faz pensar que o modelo socio-econômico que vigia em Manarairema antes da chegada do estrangeiro não tem chances de sobreviver ou reviver. O que nos leva a concluir que o processo de modernização é um caminho sem volta, mesmo que em direção a sua própria irracionalidade.

Referências

ANDERSON, Perry. Modernidade e Revolução. In: Novos Estudos CEABRAP. São Paulo, nr. 14, fev. 1986.
ARENDT, Hanna. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
ECO, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre a ‘Teoria do Autoritarismo’. São Paulo: HUCITEC, 1979.
KOSIK. Karel. Dialéctica de lo Concreto. México: Editorial Grijalbo, 1979.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
PAZ. Octávio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Col. Logos. Tradução Olga Savary.
VEIGA, José J. A Hora dos Ruminantes. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
http://cac-php.unioeste.br/cursos/toledo/historiaeconomica/hpe-marx.pdf. acesso em 01.07.2010

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