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Literatura e Autoritarismo
Processos de identificação e políticas da (in)diferença
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 18 

ENTRE MEMÓRIAS E HISTÓRIAS: A TRAJETÓRIA DOS ROMANCES DE CARLOS HEITOR CONY

Carla Cristiane Martins Vianna1
Resumo: Este ensaio tem como objetivo principal a compreensão da trajetória do romancista Carlos Heitor Cony mediante uma reflexão voltada para o entendimento do papel representado pelo romancista Cony no sistema literário brasileiro, estabelecendo o estudo das condições (histórico-social e contexto) e dos efeitos dessas criações literárias. A exposição aqui empreendida, portanto, investiga a narrativa longa de Cony relacionando-a ao processo social, confrontando história e estética, forma e conteúdo. Assim, serão analisadas especialmente as narrativas de O ventre, A verdade de cada dia e Matéria de memória, romances que apresentam um viés memorialístico ao desvendarem as histórias de personagens tão desorientadas quanto brasileiras.
Palavras-chave: Romance, memória, sistema literário, Carlos Heitor Cony
Abstract: This essay aims to understand the literary path of the novelist Carlos Heitor Cony and to consider the role he played in the Brazilian literary system. Thus three narratives will be primarily analyzed: O ventre, A verdade de cada dia, and Matéria de memória, novels which rebuild memories of disoriented and very Brazilian characters. This analysis investigates the social-historical and contextual conditions and the effects of Cony’s literary creations, relating them to the social process and confronting History and aesthetics, form and content.
Keywords: Novel, memory, literary system, Carlos Heitor Cony

Ao problematizar o trabalho do crítico literário, Antonio Candido (1997, p.31) traz à discussão a antecipação da impressão ao juízo crítico daquele que se dispõe ao estudo de uma obra. Para ele, “toda crítica viva ─ isto é, que empenha a personalidade do crítico e intervém na sensibilidade do leitor ─ nasce de uma impressão para chegar a um juízo”, e esta impressão, por sua vez, deve ser investigada, perseguida, de forma que sirva de ponto de arranque para o trabalho investigativo. Pois bem, sendo assim, a impressão de leitura levada criticamente a sério, bem como a percepção da relevância de certo autor no conjunto variado que forma uma literatura nacional, requer, acima de tudo, tempo. Basta ver que grandes escritores, como Machado de Assis e Simões Lopes Neto, precisaram que os anos corressem a seu favor.
Em 1956, antes mesmo da publicação de O ventre, Carlos Heitor Cony havia inscrito seu romance no Prêmio “Manuel Antônio de Almeida”, promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, e a comissão julgadora ─ composta por Austregésilo de Athayde, Celso Kelly e Manuel Bandeira ─ pronunciou-se dizendo que, embora o livro fosse muito bom, não poderia premiá-lo por se tratar de uma obra forte demais para vencer um concurso oficial. No ano seguinte, o escritor, não tendo aceitado de bom grado a recepção de O ventre pela comissão julgadora, escreve em nove dias A verdade de cada dia, seu segundo romance, que desforrou o romancista ao receber o mesmo prêmio, desta vez com outra comissão julgadora, entre ela, o mesmo Austregésilo de Athayde e o poeta Carlos Drummond de Andrade.
A trajetória de Carlos Heitor Cony como ficcionista inteirado no sistema literário brasileiro teve início no ano de 1958 com a publicação de O ventre, seu primeiro romance, que abriu caminho para uma prolífica produção literária, uma vez que, entre os anos de 1958 e 1974, Cony trouxe ao público nove romances. Trata-se de obras de autoria de um escritor profissionalizado, tendo em vista que a editora que trouxe o Cony romancista ao mercado editorial brasileiro, a Civilização Brasileira, assinou um contrato com ele logo após a publicação de seu primeiro romance, garantindo, assim, a entrega regular de obras de ficção, algo raro no país até então. Assim sendo, num período de dezesseis anos, o jornalista nascido na zona norte carioca se revelou um fecundo romancista até a publicação do último livro desta série, Pilatos, quando Cony anunciou a todos que havia encerrado sua carreira de romancista por considerar que este livro sintetizava tudo o que ele tinha desejado passar para o papel em matéria de romance. O escritor tinha se realizado literariamente em Pilatos e sentia necessidade de parar para poder deixar o homem viver, ou como ele mesmo testemunhou: “O escritor é sempre contra o homem”. (CONY, 2001, p. 24)
Assim, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, e Cony retorna ao romance vinte e um anos após a resolução de encerrar sua produção de narrativas longas. Estávamos em 1995 quando veio a público o seu Quase memória, portanto, mais de duas décadas haviam passado e, com elas, muita água por baixo do lençol da matéria brasileira. Neste intervalo entre Pilatos e Quase memória, muito havia mudado no país, mas a literatura encontrada no Quase memória continuava a emocionar em estética e conteúdo. O leitor deste livro é arrastado pelo narrador que, ao se deparar com um embrulho que lhe trazia à memória o pai falecido, dedica seu tempo a recordar o passado do pai, um herói humanizado e, talvez por isso, encantador. Era o mesmo Cony que escrevia com a pena da galhofa e a razão roçando o que há de mais sensível em todos nós: a família, com suas dores e delícias, de modo que o tempo foi generoso com o romancista, pois, para muitos, Quase memória, é o que há de melhor em Cony.
No interregno de sua vida como escritor de romances, Cony exercia o jornalismo, mas também compunha o novo panorama que estava se formando na vida cultural brasileira desde a modernização nas comunicações, uma vez que, além de ter sido o autor de uma telenovela, Comédia carioca, a convite da TV Rio em 1965, ele também dirigiu, em 1976, o documentário JK, a voz da História, veiculado na Rede Manchete de televisão. Dados estes que, somados à carreira em jornais e revistas, fazem-nos enxergar em Cony um escritor que circulou suas palavras pelos mais variados meios, sendo assim, um escritor profissional inteirado às oportunidades oferecidas a partir daquela segunda metade de século.
A história de Carlos Heitor Cony não condiz com a idealização da figura do escritor, com a imagem do homem inspirado, alheio à vida que corre com o tempo pelas ruas. Não, o histórico de Cony é o de um trabalhador da palavra: com direito a contratos, prazos e vários empregos. O Cony que escrevia ficção era o mesmo das crônicas de jornais, que, por sua vez, era o chefe de redação, o autor da novela, enfim. Isso explica dois dados da personagem Carlos Heitor Cony no meio cultural brasileiro: a passagem por diversos meios de divulgação da palavra e o consequente reconhecimento público. A vida profissional e a vida literária se confundem, de modo que o Cony escritor e o Cony jornalista reciprocamente angariam a fama e a aura um do outro. Eis aí o momento preciso de questionarmos se a junção de tais figuras não seria determinante para o fato de a crítica sobre a obra literária de Carlos Heitor Cony ser ainda escassa.
Cony é um escritor que vai de encontro à idealização romântica do ato de escrita: é um autor de ofício. Um ficcionista que está inserido nos mais diversos contextos de veiculação de ideias: é o autor de romances que, desde o ano 2000, é integrante da Academia Brasileira de Letras, é o cronista da Folha de São Paulo, é o acadêmico lido pela apresentadora Ana Maria Braga em seu programa voltado ao público feminino na maior rede de televisão do país. Há um paradoxo eloquente entre o reconhecimento do público e da crítica e os poucos estudos aprofundados a respeito de sua obra ficcional. Talvez isso se deva ao fato de a narrativa de Cony ser, recorrentemente, designada como uma literatura meramente ambientada no meio da classe média carioca, como se fosse uma obra que se atém a um único meio social, leitura que resulta numa simplificação de seu texto, pois desconsidera que, no romance de Cony, a classe média carioca reflete toda a classe média brasileira de então:
(...) Tal constatação é tão mais importante porque as opções estilísticas do escritor correspondem, efetivamente, a uma visão de mundo muito bem definida e clara, personalíssima, e que, para além da abordagem da família burguesa carioca, que é seu cenário preferido, alcança um retrato fiel do clima que vivia a sociedade urbana brasileira dos anos 60. Naquela década, como se sabe, a nascente industrialização produzia um ainda relativamente incipiente processo de acumulação de riqueza e de capitais, fluxos iniciais de consumismo e, de modo especial, um sentimento de divisão entre a fidelidade a princípios e a adesão à nova realidade ─ que provoca a crise que está sempre no cerne das narrativas de Cony, reduzida aparentemente à subjetividade daquelas personagens, sobretudo dos narradores, mas que, na verdade, pode ser generalizada à sociedade brasileira urbana como um todo. (HOHLFELDT, 2001, p.109)
O debate sobre o romance de Carlos Heitor Cony deve pressupor que o universo recriado por ele em suas narrativas não trata apenas de um mundo limitado à pequena burguesia carioca, mas de uma ficcionalização da realidade da matéria brasileira daquele momento histórico. Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa e Os sete gatinhos, de Nelson Rodrigues, são obras contemporâneas de O ventre e uma se ambienta no sertão mineiro, a outra, no subúrbio carioca, ao passo que tais dados não significam que a narração de Riobaldo e o drama da família Noronha não recriam o universo exterior àqueles em que são ambientados. Portanto, há que se ler os romances de Cony como sendo narrativas que tratam de um Brasil que estava imerso num acelerado processo de modernização social e cultural, pois foi no final da década de cinquenta que Juscelino Kubitschek empreendeu a construção de Brasília, que surgiu Elizete Cardoso cantando Tom Jobim e Vinícius de Moraes no “Canções do amor demais”, que Nelson Pereira dos Santos apresentou ao público Rio quarenta graus e Rio zona norte, filmes que abriram caminho para o Cinema Novo. Índices que tornam clara a formação de um novo quadro na vida social brasileira.
Era esse o panorama do país quando O ventre trouxe ao público leitor brasileiro uma história complexa, composta por uma linguagem que variava entre o grotesco e o sublime, contada por um narrador que seguia os passos de Bentinho e de Paulo Honório, uma vez que o tom memorialístico não era novidade na literatura brasileira: vinha desde Machado de Assis, passava por Graciliano Ramos até chegarmos a Guimarães Rosa e a Carlos Heitor Cony naquele fim dos anos cinquenta. Luís Augusto Fischer aponta uma das razões que levaram à constante presença das obras de cunho memorialístico na literatura brasileira:
A voz que fala num romance da linhagem das memórias, na literatura brasileira, faz a mesma coisa: abre seu coração para o leitor, isto é, se torna, com esse gesto, a fala de um ser humano digno de atenção, como aquele que confessa. Quem confessa se examina e se torna, por isso, digno de ultrapassar as condições em que se encontra. Então, a primeira explicação está aqui: a voz do romance memorialístico brasileiro postula um eu enunciador que merece ser ouvido. (FISCHER, 1999, p.135)
O mesmo tom confessional estabelecido em O ventre e em A verdade de cada dia volta a surgir na ficção de Cony em Informação ao crucificado, Matéria de memória e Quase memória, sendo que cada uma destas narrativas guarda em si um universo particular em relação às suas temáticas e resoluções formais, singularidades que podem ser irmanadas quando o assunto em questão é o registro do período histórico em que se desenvolveram suas histórias. Talvez a leitura da contextualização da realidade da sociedade brasileira nestas obras não seja tão definidora dos rumos da narrativa quanto o é em livros como Pessach: a travessia e Pilatos. Isso, porém, não nos pode levar a pensar que tal contextualização não esteja ali e não seja tão relevante para a compreensão do texto, assim como são os estudos das relações de intertextualidade e das influências de autores que já estavam inseridos no sistema literário brasileiro. Desta forma, o estudo do conjunto da obra romanesca de Carlos Heitor Cony em seu contexto de inserção no sistema literário brasileiro só tem a contribuir para o entendimento do rumo tomado pela moderna narrativa em nosso país.
Carlos Heitor Cony faz parte do panorama literário brasileiro desde o final da década de cinquenta, quando em 1958 publicou O ventre, romance de impacto no público e na crítica devido à contundência da matéria e da forma com que foi narrado. Os leitores da história narrada por José Severo encontraram nesta narrativa uma história densa em matéria de emoções, tecida mediante um enredo desvelado por uma ironia ácida e, consequentemente, assaz crítica. O ventre é o depoimento memorialístico de um homem que, ao rever sua vida, narra sua solidão em meio à rejeição familiar e ao descompasso existente entre si e a sociedade, uma vez que, ao dividir com o leitor sua história, José Severo encontra uma família apegada aos valores de uma sociedade pequeno-burguesa, solidificada em falsos valores morais. Ao analisar a construção da personagem romanesca, o crítico literário Antonio Candido (2002, p.58) afirmou que:
No romance, ela é criada, estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro. Daí a necessária simplificação, que pode consistir numa escolha de gestos, de frases, de objetos significativos, marcando a personagem para a identificação do leitor, sem com isso diminuir a impressão de complexidade e riqueza.
Segundo Candido, o romancista constrói a personagem mediante as diversas escolhas que faz ao longo do trabalho de escritura do texto. Assim sendo, José Severo, Tino e o narrador de A verdade de cada dia são, portanto, indivíduos em busca de si, personagens que procuram o entendimento da vida, assim como Lukács apontou em A teoria do romance:
O processo segundo o qual foi concebida a forma interna é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento. Depois da conquista deste autoconhecimento, o ideal encontrado como sentido vital na imanência da vida, mas a discrepância entre ser e dever-ser não é superada e tampouco poderá sê-lo na esfera em que tal se desenrola, a esfera vital do romance; só é possível alcançar um máximo de aproximação, uma profunda e intensa iluminação do homem pelo sentido da vida. (LUKÁCS, 2003, p.82)
As personagens centrais do romance de Carlos Heitor Cony são representativas do típico herói romanesco, pois são indivíduos que estão à procura de um sentido para a vida, uma vez que, inconformados com o que são, procuram alguma resposta em meio ao conflito. Elas sofrem com a “discrepância entre ser e dever-ser”. José Severo constata o peso inerente ao sistema patriarcal em que a família estava, inevitavelmente, inserida, uma vez que, na sociedade brasileira, era a voz do patriarca que comandava a instituição familiar. A instituição familiar e a figura paterna como cerne dos problemas encontrados nela são presenças recorrentes na literatura de Cony, como podemos ler nos excertos que seguem:
A semelhança com meu pai era espantosa. Quando comecei a perceber o mundo, aos quatro ou cinco anos, meu pai era exatamente aquilo: os mesmos olhos, a mesma testa, o mesmo ar nobre, mas um pouco velhaco no interior. Havia, sobretudo, o mesmo tom de voz, quase as mesmas palavras preferidas. Dentro daquela cabeça, na certa, as mesmas ideias. (CONY, 1974, p.140)

Ele acendeu o cigarro. Tinha o mesmo jeito de segurar o cigarro de papai. Senti vontade de lhe dizer isso. E ao mesmo tempo revelar-lhe que era seu irmão apenas pela metade. Tinha medo, porém, que ele me respondesse: “Eu já sabia”. (CONY, 1974, p.142)
José Severo de O ventre aparece como um indivíduo perturbado pela presença do irmão que, diferentemente dele, é integrado aos laços e ensinamentos paternos, portanto, familiares. O leitor é inserido neste enredo que contrapõe o narrador à sua família, uma vez que é nela onde ele encontra a razão do seu tormento: a autoridade paterna, a rejeição materna e a competição fraterna. Tormento que irá se estender para os outros âmbitos de sua vida, pois ele sustentará a recusa de estabelecer para si uma estrutura familiar como tinha sido a sua, o que resulta na irrealização amorosa estendida por toda a vida. Prova disso é que Severo percebe que o irmão estava dando continuidade aos ensinamentos paternos, o que lhe aguça a ironia ao recusar qualquer comportamento que lhe reporte às amarras familiares, como nos mostra este outro trecho:
Morava no Grajaú, bairrinho metido a besta, quase grã-fino, ilhado, aristocracia feroz e pedante, semi provinciana. Ângulos bonitos, bonitas casas, estanques, separadas por jardins e muros.
(...)
A casa do meu irmão era típica do bairro, confortável, bem mobiliada. Comprada a prazo, pagava ainda, em quinze anos acabava, virava proprietário, seguia bem o exemplo paterno. (CONY, 1974, p.124)
Seguindo a linhagem romanesca de Cony, podemos perceber que, assim como coubera ao José Severo do primeiro romance, em Matéria de memória, coube a Tino pertencer a uma família inserida numa estrutura em que o poder patriarcal é que rege a ordem familiar:
O pai era bom quando se esquecia de ser cruel. Em período de calma chegava a ser carinhoso. Sempre que chegava do trabalho beijava a madrasta, vinha até nós. Envergonhado de nos beijar, passava a mão por nossas cabeças. O irmão, que nunca tivera aborrecimentos com ele, beijava-lhe o rosto. Eu apenas a mão. E sentia que qualquer coisa dentro de mim gostava daquela mão cansada que acariciava a minha cabeça. (CONY, 1998, p.44)
Em Matéria de memória e em A verdade de cada dia, o olhar enviesado para a família segue sendo definitivo para a formação das personagens e, sobretudo, para a desconstrução do véu que cobria o seio familiar:
Nesse trecho da conversa minha mãe se foi deitar. Pouco se lhe fazia morrer de apendicite ou de fim-de-mundo. Só duas coisas lhe interessavam agora, sem as quais não mais poderia viver: o pão e o amor. Mas Bartoleo ali estava, sólido como o pão, seguro, quase eterno. E havia o outro, o da rua, só ela saberia se sólido também. Mas não deveria ser, o amor nunca é tão sólido quanto o pão. (CONY, 1963, p.106)
Esta é a voz de um filho que disfarça seu descontentamento com a figura materna mediante um depoimento composto por uma fina ironia, pois, o pseudo-tom compreensivo percorre toda a narrativa de A verdade de cada dia. Quem está escrevendo suas memórias é um filho que, quando a mãe se casa com o mais novo namorado, encontra uma família, ganhando escola e pomada mercurial para as suas feridas, bálsamo para os anos em que viveu uma infância miserável junto à mãe. O pai do narrador não aparece problematizado ao longo do romance, ao invés disso, temos o surgimento redentor de um padrasto que faz as vezes de pai, proporcionando ao protagonista a confortável condição de pertencimento a uma família de classe média baixa. Tal felicidade foi passageira, pois a mãe foi embora, deixando-o sozinho com o padrasto, uma vez que para ela não bastava a solidez do pão: a mãe preferiu a incerteza do amor, pois “A meretriz do pão era virgem de amor”. (CONY, 1963, p.79)
A figura materna também foi devidamente problematizada em Selma, que compõe, juntamente com Tino e João, a tríade responsável pela narração de Matéria de memória, ainda que seja Tino quem assuma o foco narrativo do romance. Selma era a mãe de Júlia que, por sua vez, era casada com Tino. Júlia morreu, mas, ainda antes de morrer, desconfiara da paixão entre sua mãe e Tino. Depois da morte da sua mulher, Tino segue morando com a sogra e com o cunhado, João. Confusão familiar pouca é bobagem neste outro romance de Cony e, como se não bastasse tal enleio, os narradores em questão assumem um discurso tão ou mais irônico e mordaz do que os narradores já apresentados por Cony em seus romances anteriores. Basta acompanharmos o trecho em que Selma pensa no filho antes de reencontrá-lo após longa viagem:
Não conseguirei dormir, nunca dormi em avião, em carro ou trem. Vou chegar abatida e mais velha do que realmente estou, mas não importa. Ninguém me esperará. João e sua mulher ─ curioso como ele mantém esse casamento ─ talvez estejam lá, cumprindo uma obrigação, eu não devia tê-los avisado, nada representam para mim. João é um idiota e a mulher dele é uma débil mental. Ainda bem que evitaram filhos, teriam sangue podre. (CONY, 1998, p.64)
Em seu primeiro romance e em outras de suas narrativas, Cony transcende o registro factual dos acontecimentos, engendrando de tal forma suas personagens e ações que o leitor não consegue dissociar o entrecho do enredo maior em que está inserida a sociedade brasileira. Isso se dá porque a arte literária tem em si um inevitável caráter sociológico:
Para o sociólogo moderno, ambas as tendências tiveram a virtude de mostrar que a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. (CANDIDO, 1976, p. 20)
É neste sentido que as narrativas romanescas de Carlos Heitor Cony são livros que resultam em obras questionadoras do sistema social vigente na sociedade brasileira de então, pois a sua verve crítica não se destina apenas à estrutura da instituição familiar, mas também ao modus vivendi da pequena burguesia carioca, que representa toda a classe média brasileira. Eis aqui uma passagem que explicita esta faceta da narrativa de Cony:
A coisa mais estúpida da vida é a gente ser livre e não ter nada que fazer com a liberdade. Os burgueses, sólidos, instalados na vida, ao menos têm essa vantagem: “Ah! Eu sou assim porque não tenho tempo, sou um prisioneiro, tenho grades, convenções, polícias, direitos e deveres, ah!”
Isso ao menos é um consolo, mas quando se é totalmente livre e não se tem nada a fazer com essa liberdade, sente-se como um homem que passou a vida inteira para arrombar a porta de um quarto escuro, vazio e sem janelas; às vezes nem resta a porta ─ a possibilidade da porta ─ para a volta.” (CONY, 1974, p.121)
Ironia carregada, beirando o cinismo, dá o tom do discurso formulado por José Severo ao descrever o ambiente familiar do irmão e de Helena, a mulher que ele próprio desejava desde a infância. Não há aqui como não lembrarmos de Sartre e de sua célebre afirmação de que o homem estaria condenado à liberdade. Cony construiu uma personagem que fazia coro aos ensinamentos existencialistas tão em voga na década de cinquenta, assim como é possível encontrarmos os ecos sartrianos ainda no Paulo Simões de Pessach: a travessia, especialmente antes da adesão, ainda que involuntária, à guerrilha. Acontece que seria redutor demais tacharmos os dilemas das personagens de Cony como sendo meramente existencialistas e não aprofundarmos o debate a respeito da matéria brasileira ficcionalizada nas páginas de seus romances mediante um trabalho formal que mistura o existencialismo de Jean Paul Sartre, o cinismo machadiano, o cordialismo de Sérgio Buarque de Hollanda, além de revisitar outros autores que compunham o passado literário do Brasil.
Questionando a autoridade paterna, a estrutura familiar e o modo de vida da burguesia daquela segunda metade do século XX, suas personagens estão, assim, também fazendo o questionamento da sociedade na qual estão inseridas. Os romances de Cony situam-se contextualizados em diversas fases da vida brasileira, tendo em vista que a sua carreira literária começou no final da década de cinquenta e, excetuando os vinte e um anos de intervalo, se estendeu até o presente momento. Assim, enquanto uns como O ventre e A verdade de cada dia, por exemplo, direcionam a narrativa para a crítica da instituição familiar e do estilo de vida da pequena burguesia, outros, como Pessach: a travessia e Pilatos, são ambientados no Brasil sob o jugo repressivo dos militares.
Na mesma linha de pensamento de Lukács, que afirmava que o herói romanesco era um indivíduo problemático, Benjamin (1983, p.60) também reconhece no romance a solidão do homem da era burguesa: “O romancista segregou-se. O local de nascimento do romance é o indivíduo em sua solidão, que já não consegue exprimir-se exemplarmente sobre seus interesses fundamentais, pois ele mesmo está desorientado e não sabe mais aconselhar”. Desorientação e solidão são palavras-chave também para Adorno (1983, p.270):
Não é só o fato de informação e ciência terem confiscado tudo o que é positivo, apreensível ─ incluindo a facticidade do mundo ─ que força o romance a romper com isso e a entregar-se à representação de essência e distorção, mas também a circunstância de que, quanto mais fechada e sem lacunas se compõe a superfície do processo social da vida, tanto mais hermeticamente esta esconde, como véu, o ser.
Adorno traz à cena do debate a influência da indústria cultural no trabalho do narrador. Ele debate o surgimento da fotografia e do cinema e a repercussão destas novas artes na forma de se narrar histórias. O papel do romance passou a ser, então, problematizar um mundo que escapa das imagens; ou, como sintetiza o próprio Adorno (1983, p.270): “Se o romance quer permanecer fiel a sua herança realista e dizer como realmente são as coisas, então ele tem de renunciar a um realismo que, na medida em que se reproduz a fachada, só serve para ajudá-la na sua tarefa de enganar.” Desta forma, não há mais por que o narrador esconder-se, como nos romances realistas, pelo contrário, este deverá mostrar que, sem a sua presença, não haveria texto, já que a mímese se dá mediante a linguagem e a ironia.
O romance e sua forma em processo é o gênero literário em que as personagens se situam num mundo caótico, onde não há mais lugar para certezas e ações pré-definidas, pelo contrário, o romance é o espaço literário que permite a ação de personagens perdidas, desorientadas em seu próprio universo de ação. São personagens deste gabarito que encontramos ao entrar em contato com as narrativas de Carlos Heitor Cony: indivíduos abismados com a realidade daquele Brasil da metade final do século passado. A pena de Cony dá vida a pessoas solitárias e problemáticas, tendo em vista que, tanto o narrador de O ventre quanto o narrador de A verdade de cada dia, ou ainda, os personagens-narradores de Matéria de memória, detendo-nos em apenas três romances, são personagens que não encontraram seu espaço no Brasil de então, como podemos acompanhar neste excerto:
O homem novo pode ir para a fábrica. As fábricas só deviam admitir homens novos. Que os homens velhos se refugiem em conventos, nas artes. Tudo a mesma coisa. Tudo velharia.
O roteiro do homem novo é a fábrica. Salário, pensão, aposentadoria, prevenção contra acidentes, o amor na hora do amor, o sono na hora do sono, a morte na hora da morte, a salvação da carne em lugar da ressurreição da carne, viva o século XX! (CONY, 1998, p. 193)
Há, portanto, na ficção de Cony a recorrente presença de personagens que se recusam a integrar-se na vida social, negando vínculos amorosos, empregatícios e familiares. Como se, ao responder não ao que lhes aparece no caminho, estivessem indo ao encontro de algo melhor, mais edificante e enobrecedor. Além desta indisposição à máquina do mundo, estas personagens têm suas histórias tecidas para o leitor mediante uma linguagem que ora se apresenta carregada de lirismo, ora repleta de uma ironia quase cínica numa composição própria de um “escritor da modernidade, herdeiro de Machado e também, em alguma medida, de Proust e Joyce, de Faulkner e Sartre”. (BUENO, 2001, p. 114)

Referências

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultura, 1983.
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultura, 1983.
BUENO, Raquel Illescas. Histórias de subúrbio ─ uma análise comparativa entre Dom Casmurro e O ventre. In: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, dezembro de 2001.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
_______. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997.
_______. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2002.
CONY, Carlos Heitor. O ventre. São Paulo: Círculo do Livro, 1974.
_______. A verdade de cada dia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
_______. Matéria de memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_______.Quase Memória. In: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, dezembro de 2001.
FISCHER, Luís Augusto. Para fazer diferença. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.
HOHLFELDT, Antonio. O caso Cony. In: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, dezembro de 2001.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades, 2003.


1 Doutoranda em Literatura Brasileira pela UFRGS. Bolsista CAPES. E-mail: ccmvianna@terra.com.br
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