Site do Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo  |  Índice de Revistas  |  Normas para Publicação
Literatura e Autoritarismo
Processos de identificação e políticas da (in)diferença
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 18 

LITERATURA VERSUS HISTÓRIA E A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE EM OS CUS DE JUDAS, DE LOBO ANTUNES, E EM VINTE E ZINCO, DE MIA COUTO

Chaiane da Cunha Islabão1
Resumo: Este trabalho examina a relação entre Literatura e História, a partir dos romances Os cus de Judas, do escritor português António Lobo Antunes, e Vinte e zinco, do escritor moçambicano Mia Couto, analisando como a obra, por meio da ficção, questiona a História, fazendo-a ressignificar a partir de um novo discurso e lugar de enunciação, e colabora para a construção de uma nova identidade e de um novo imaginário coletivo.
Palavras-chave: Literatura; História; ficção; contexto; identidade nacional.
Abstract: This assignment examines the relationship between Literature and History, from the novels Os cus de Judas by Lobo Antunes and Vinte e zinco by Mia Couto, analyzing how such literary work, through fiction, questions History, making it shows a new meaning, constructed from a new discourse and a new point of enunciation, and collaborates to the construction of a new identity and of a new collective imagination.
Keywords: Literature; History; fiction; context; national identity.


1. Introdução
Analisar a relação entre dois ou mais textos – verbais ou imagéticos, dentre os quais, pelo menos, um deles seja literário – não é tarefa simples, sendo necessário, para tanto, a recorrência à Literatura Comparada, a qual, nas palavras de Henry Remak, apud Coutinho e Carvalhal (1994, p. 175), corresponde à “comparação de uma literatura com outra ou outras” e à “comparação da literatura com outras esferas da expressão humana”, sendo extraído de tais comparações um ponto de conexão estabelecido entre as produções textuais analisadas. Tal ponto de ligação está relacionado, no presente trabalho, a duas questões identificadas nas obras literárias Os cus de Judas, do escritor português António Lobo Antunes, e Vinte e zinco, do escritor moçambicano Mia Couto: à associação que pode ser verificada entre Literatura, através das referidas obras, e a ciência que estuda o homem e sua ação no tempo e no espaço, conhecida por todos nós sob o nome de História (associação esta que confronta – termo não, aqui, empregado no sentido de embate entre partes excludentes, mas no de colocação de tais partes uma diante da outra para lhes apontar as semelhanças e divergências – duas diferentes áreas de leitura do homem e da sociedade: uma que se constrói a partir de textos cuja literariedade é marca essencial e distintiva e outra disseminadora de textos cujo caráter referencial constitui traço fundamental) e ao processo de reconstrução de identidade pelo qual passam o narrador de um dos textos literários analisados, o narrador de Os cus de Judas, e uma das personagens femininas do outro, Irene de Vinte e zinco.
As associações referidas são aqui apontadas com o objetivo de trazer à discussão questões ligadas à compreensão das obras literárias Os cus de Judas e Vinte e zinco enquanto produções textuais capazes de fazer ressignificar a realidade e a literatura, enquanto arte capaz de cumprir um papel que ultrapassa o do entretenimento e influencia o modo de pensar e agir das pessoas na construção de um novo olhar diante do mundo.
Para tanto, no que se refere aos textos ficcionais mencionados, são levantadas as seguintes questões: “Há alguma espécie de diálogo entre as ciências referidas?”, “Que relação há entre elas?”, “Como tal relação agrega significado à obra?”, “Como a obra, através de elementos constituintes de sua narrativa, aqui apontados, transforma/questiona o terreno extraliterário – a História – no que se refere à visão que o colonizador tem de si mesmo, bem como no que se refere à relação entre colonizador e colonizado?”, “Como a literatura, através da obra em questão, valoriza a cultura africana?” e “Tal valorização através do literário é formadora de uma identidade essencialmente africana?”.

2. Literatura e História – diálogos entre a obra e o meio
A literatura, entendida como o instrumento de apropriação cultural de determinada realidade social e de transcendência e reconstrução de tal realidade, nos impulsiona a observar o fato de que a trajetória por ela descrita apresenta marcas das diferentes situações, política, econômica etc., vivenciadas pelo país rumo à construção de uma identidade nacional. Assim, conforme aponta Candido (2010, p. 28), deve-se propor um duplo questionamento quanto às relações entre a obra e o meio social: “qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte?” e “qual a influência exercida pela obra de arte sobre o meio?”. Deve-se situar, social e historicamente, o texto literário para que seja possível interpretá-lo e transcendê-lo, ultrapassando, portanto, os limites da mera decodificação de signos linguísticos. Explorar a interação texto/contexto faz-se necessário para que a mensagem veiculada à/pela obra seja identificada, compreendida e analisada criticamente em relação ao hoje, ao momento presente, ou ao próprio passado. Isso não implica dizer que não seja possível ler um texto literário sem se ter profundo conhecimento do contexto a que remete ou do qual emerge. Mas, para que se possa transpor suas camadas de significação mais superficiais, é possível afirmar que se lê a partir do lugar (no sentido de momento histórico vivenciado) e da realidade social em que se está inserido, mas voltando-se o olhar (crítico) para as condições – econômicas, sociais, políticas, culturais, históricas etc. –, para o momento enunciativo por ocasião da concepção do texto literário. Quanto ao segundo questionamento sugerido por Antonio Candido, é possível entrever, na própria pergunta, uma linha de raciocínio investigativo a ser seguida: a que nos coloca diante de questões do tipo “Como a obra ressignifica o meio social?” ou “Como ela questiona valores e paradigmas tidos como indiscutíveis?”. A literatura conversa com a história – das nações, das sociedades, do homem – a ponto de dela servir-se para questioná-la, contestá-la, enriquecê-la, fazendo-a brilhar e iluminar o texto literário para que este, por sua vez, possa iluminar a própria história, para trás e para frente.

3. Diálogos entre ficção e realidade em Os cus de Judas e Vinte e zinco
Relacionando as ideias expostas à leitura da obra de Lobo Antunes e à construção de sentido para a mesma, em Os cus de Judas, temos um narrador que, durante o intervalo temporal equivalente a uma noite, apresenta a Maria José – mulher que conhece no bar onde passam praticamente toda a noite, logo, toda a narrativa, e que calada o ouve sem esboçar qualquer contestação a seu relato –, ao longo de vinte e três capítulos, nomeados de “A” a “Z” e que poderiam ser definidos como abecedário da dor, uma sequência de lembranças dos momentos vividos durante o tempo em que participou da guerra em solo angolano.
Lobo Antunes, assim como o narrador-protagonista de sua obra, aqui analisada, exerceu a profissão de médico e esteve destacado em Angola entre 1970 e 1973, durante a fase final da guerra que, em 1975, possibilitou ao povo angolano conquistar sua independência em relação a Portugal.
É essa guerra que serve como palco para o que é contado em Os cus de Judas. É ela que inspira o narrador a dar voz a sua dor. E é recorrendo à versão oferecida pela História aos fatos relativos a tal guerra que o leitor tem a possibilidade de ampliar seus conhecimentos acerca do assunto e verificar como ele é trabalhado por meio da ficção. Recorrendo à História, portanto, constatamos que a guerra angolana ocorreu após longos anos de colonização portuguesa, quando movimentos de resistência a esta forma de dominação, como a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), a UNITA (União Nacional pela Independência Total de Angola) e a MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), atingiram unidade e enfrentaram de armas em punho a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), a qual foi criada durante o Estado Novo – momento em que Portugal foi dirigido sob o regime ditatorial – com a finalidade de reprimir qualquer forma de oposição ao governo despótico de Salazar2. A consciência de que o futuro de Portugal dependia da mudança de regime propagou-se entre os jovens que conheceram o front, sendo formado o MFA (Movimento das Forças Armadas). Este, com o lema “democracia em Portugal, descolonização na África”, tomou as ruas de Lisboa em vinte e cinco de abril de 1974, ficando tal episódio conhecido como Revolução dos Cravos3.
Publicado em 1979, cinco anos após o citado evento histórico, Os cus de Judas utiliza-se da História oficial para construir sua própria história e questionar àquela. Há, portanto, um diálogo da referida obra com a História na medida em que, de um ponto de vista crítico, são focalizadas as guerras que antecederam a libertação das colônias portuguesas na África. Quanto à obra do escritor moçambicano Mia Couto, Vinte e zinco consta entre os onze títulos integrantes da coleção Caminho de Abril – coleção esta lançada, em abril de 1999, pela editora portuguesa Editorial Caminho com o objetivo de assinalar o vigésimo quinto aniversário do evento histórico conhecido como “Vinte e cinco de abril”.
Situada temporalmente nos dias compreendidos entre dezenove e trinta de abril de 1974 (tal ano não é mencionado na narrativa, mas há, como veremos adiante, elementos indicativos do tempo cronológico em que se passa a história), a narrativa expõe diversos acontecimentos que transformam a vida da família portuguesa Castro e a vida dos africanos de Moçambique. Os Castro haviam se fixado na vila moçambicana de Moebase devido à profissão do patriarca da família, Joaquim de Castro, agente da PIDE (polícia portuguesa encarregada de reprimir, através de meios como a perseguição e a tortura, ou exterminar todos aqueles cujas ações manifestassem sua contrariedade em relação ao domínio empreendido por Portugal em África). Com a morte de Joaquim, arremessado de um helicóptero que sobrevoava o oceano, seu filho, Lourenço de Castro, assume o posto do pai e encarrega a si mesmo de vingar a morte de seu progenitor (Joaquim havia sido morto pelos negros prisioneiros, os quais, mediante pontapés do agente da PIDE, que os atirava do helicóptero e os lançava à morte, conseguiram unir forças e fazer de Joaquim a derradeira vítima de sua maldade). Vivendo com sua mãe, dona Margarida, e com sua tia, Irene, Lourenço dedica-se à pátria portuguesa e ao combate de todos os que a ela se mostram contrários, afrontando, inclusive, sua própria tia, contrária à ação e ao posicionamento do sobrinho em relação aos nativos do continente africano. Abalado por pesadelos, por desconfianças e pelo desconforto de não saber, tampouco querer, conviver com uma cultura diferente da sua, a qual não compreende, o jovem português, após tomar conhecimento da queda, em Portugal, do regime salazarista, vê-se aturdido diante da perda de domínio português em solo africano.
Portugal deu início, no século XV, ao processo de colonização de terras africanas, o qual se estendeu por mais de quinhentos anos de opressão do povo africano, cuja cultura, considerada inferior segundo a ótica do branco português, teve de adotar os padrões e modelos da metrópole, apagando, com isso, seus próprios valores e ideais. No século XIX, sobretudo, houve, por parte dos povos colonizados, uma tomada de consciência da raça e das particularidades africanas rechaçadas pelo colonialismo, dando-se início, assim, a um período de guerras coloniais nas quais os africanos lutavam pelo fim da subjugação a qual eram submetidos e pela valorização de sua cultura genuína.
No ano de 1933, em Portugal, Salazar dá início ao Estado Novo, governo promotor da censura à vida social e cultural do país. Com a finalidade de reprimir qualquer forma de oposição a tal governo, cria-se, então, a PIDE. Insatisfeita com a censura à qual era submetida e testemunha de um período marcado por guerras coloniais, a população, almejando o fim do Estado Novo e, consequentemente, da repressão por ele promovida, apóia o MFA, eclodindo a Revolução dos Cravos. Tal revolução marca o fim de mais de quarenta anos de opressão em terras portuguesas, assinalando o término da forte censura à população e à imprensa portuguesas, imposta pelo salazarismo, e o início da descolonização.
Através das figuras que viabilizam a relação, calcada na colonização, entre África e Portugal durante o período em que a nação africana foi submetida à dominação lusitana – colonizador/colonizado, opressor/oprimido, dominador/dominado –, a obra estabelece forte ligação com a realidade extraliterária, com dados históricos, para criar seu próprio universo, o qual é oferecido a nós, leitores reais da obra, carregado de imagens extremamente significativas para o entendimento do tema explorado.
Vinte e zinco também se utiliza da História dita oficial para construir sua própria história e apresentar indagações àquela. Há também aqui um diálogo da obra literária com a História, pois, de pontos de vista distintos – o do português/colonizador e o do africano/colonizado – é focalizada a realidade de África enquanto continente submetido aos abusos de um regime colonialista cujo fim, em Moçambique, só é atingido em 1975.

4. O narrador-protagonista de Os cus de Judas e Irene de Vinte e zinco – a representação da identidade em tais personagens
O narrador de Os cus de Judas, durante seu relato, revive mentalmente os horrores que os vinte e sete meses em que esteve destacado em Angola lhe permitiram experimentar. Alternando eventos do plano presente com memórias de sua infância e do período em que esteve em Angola, evidencia o fato de “a dolorosa aprendizagem da agonia” (ANTUNES, 2003, p. 43) – uma dentre as inúmeras metáforas que utiliza para referir-se à guerra – ter colaborado para que se tornasse um ser amargo, melancólico e essencialmente descrente do sucesso e perenidade das relações afetivas. O lisboeta que havia antes de ser enviado pelo governo português para território africano não é o mesmo que encontramos oito anos após tal experiência, quando inicia seu relato. A guerra obrigou-o a vivenciar dias insuportavelmente suportáveis e a indignação quanto a tal imposição está visivelmente presente em sua narrativa. Também nesta é perceptível o fato de que é impossível não ter certos valores significativamente modificados após presenciar o doloroso espetáculo de animalização do homem, no sentido de primitivismo, ao qual a expressão nos remete: “Quem veio aqui não consegue voltar o mesmo (...) a guerra tornou-nos em bichos, percebe, bichos cruéis e estúpidos ensinados a matar (...).” (Ibidem, p. 149-150, grifo meu).
A colonização, verificada ao longo de toda a história de formação dos povos, resulta de um processo cuja dominação pode ser resumida em silenciamento/aniquilação do outro e sua aculturação. A cultura dos povos subjugados é vista pelo colonizador – portador, segundo sua própria ótica, dos valores de civilização – como desprezível e indigna de reconhecimento, sendo, portanto, rebaixada ao status de coisa.
Na obra lançada quatro anos após o fim da guerra de independência, Lobo Antunes constrói, ao emitir palavras enérgicas, cuja dureza é quase sólida, um discurso que privilegia uma crítica mordaz a Portugal enquanto colonizador. Nesse sentido, Os cus de Judas é mais do que uma narrativa de investigação psicológica, constituindo uma obra literária que pode ser classificada como antiepopéia, visto que é literatura portuguesa que não eleva feitos lusitanos. Conforme Clenir Belezzi de Oliveira (p. 13), “Esse romance é um grito de ‘basta’ aos métodos e ações perpetrados pelo colonizador. Desse modo, a matéria narrativa de Os cus de Judas é antiépica, pois, contrariamente ao espírito desse gênero, não glorifica os grandes empreendimentos de conquista portugueses e seus métodos, mas critica-os duramente.”. Seguindo essa perspectiva, Antônio Panciarelli (p. 48) afirma que “O romance faz uma espécie de mea culpa sobre o silêncio complacente da maioria dos portugueses com a barbaridade praticada nas ex-colônias africanas.”. Ainda nesta linha de raciocínio, de grande relevância é a observação de Álvaro Cardoso Gomes:
Numa literatura que as mais das vezes privilegiou a escrita retórica, o estilo bem-comportado, o respeito quase mórbido às instituições do passado, o romance de António Lobo Antunes justamente se destaca pelo oposto disso tudo. Irreverente, mordaz e ao mesmo tempo lírico, o autor de Os cus de Judas prima pela prática de uma escrita antiacadêmica e antiburguesa. (GOMES, 1993, p. 53-54)
Assim, a obra desenvolve uma obstinada e fervorosa crítica à dominação das terras africanas empreendida por Portugal, como se observa no trecho:
Éramos (...) treinados para morrer sem protestos, para nos estendermos sem protestos nos caixões da tropa, nos fecharem a maçarico lá dentro, nos cobrirem com a Bandeira Nacional e nos reenviarem para a Europa no porão dos navios, de medalha de identificação na boca no intuito de nos impedir a veleidade de um berro de revolta. (...) nascidos sob o signo da Mocidade Portuguesa e do seu patriotismo veemente e estúpido de pacotilha, alimentados culturalmente pelo ramal da Beira Baixa, os rios de Moçambique e as serras do sistema Galaico-Duriense, espiados pelos mil olhos ferozes da PIDE, condenados ao consumo de jornais que a censura reduzia a louvores melancólicos ao relento de sacristia de província de Estado Novo, e jogados por fim na violência paranóica da guerra, ao som de marchas guerreiras e dos discursos heróicos dos que ficavam em Lisboa, combatendo, combatendo corajosamente o comunismo nos grupos de casais do prior, enquanto nós (...) morríamos nos cus de Judas uns após os outros (...). (ANTUNES, op. cit., p. 121-122)
A narrativa coloca Portugal em um nível inferior ao povo por ele oprimido, o povo angolano, pois, se a nação lusitana tem a necessidade de subjugar o outro, pode-se dizer que está tão condenada à escravidão quanto aos que explora como colônia sob seu domínio. Aquele que escraviza é o verdadeiro escravo, pois depende da fraqueza (não no sentido pejorativo, mas no de incapacidade, por algum motivo, de resistir à opressão externa) de outro para afirmar-se enquanto ente poderoso e consolidar sua supremacia – “a locutora da rádio da Zâmbia perguntava Soldado português porque lutas contra os teus irmãos mas era contra nós próprios que lutávamos, contra nós que as nossas espingardas se apontavam (...).” (Ibidem, p. 125). E isto nada tem de glorioso ou de merecedor de uma postura ufanista, ainda que veladamente assumida. A revolta do narrador é tamanha que, ao referir-se a Lisboa, chega a verbalizá-la da seguinte forma: “– Merda de país de merda (...).” (Ibidem, p. 102).
O herói de Os cus de Judas pode ser definido como um homem que não se reconhece mais como português, pois descobriu que os referenciais de virtude e honra impingidos por sua pátria eram falsos, sentindo-se, portanto, exilado em sua própria terra – “O medo de voltar ao meu país comprime-me o esôfago, porque, entende, deixei de ter lugar fosse onde fosse, estive longe demais, tempo demais para tornar a pertencer aqui (...).” (Ibidem, p. 222). Sua identidade está perdida, no sentido de que não pode mais ser reconstituída ou voltar a ser o que fora e, abjurada, visto que o narrador, após voltar-se, através de suas ferozes críticas, contra a exploração executada por parte do governo de seu país, renuncia continuar a se identificar com um Portugal tirano, que sacrifica seus filhos para atingir um único e deprimente objetivo, o de permanecer a aniquilar o outro em benefício próprio.
Recorrendo ao que a História nos expõe como ideário nacionalista português, construído ao longo de séculos de colonização empreendida por Portugal, é possível constatar que a obra de Lobo Antunes desconstrói tal ideário para atualizá-lo num novo contexto social e político.
Em Vinte e zinco temos também uma identidade contestada, rejeitada e reconstruída, a da personagem Irene, jovem branca e portuguesa, ou seja, branca e colonizadora, mas que não se vê como tal. Irmã caçula de Margarida, Irene havia ido morar com os Castro, em Moebase, após a morte do cunhado Joaquim. Entre os negros da vila, Irene logo assume comportamento divergente do de seus familiares, pois estabelece relação de convívio com os moçambicanos, respeitando e, principalmente, adotando sua cultura. Segundo a visão do colonizador, explicitada através de Margarida,
Em Moçambique, a jovem Irene se descaminhara, exilada do juízo e das maneiras. Se misturara com os negros, dera licença a rumores e vergonhas. Procedimentos que despergaminhavam a honra familiar.
(...) A moça usufruía do lugar, sem fronteira de medo. Passeava sozinha nos bairros dos negros. Sentava-se com eles. Pelas tardes, escapava ao tempo nos lagos de Nkuluine. Estava proibida, mas quem pode mandar em loucura? (COUTO, 1999, p. 24-25)
Irene costumava banhar-se nas águas das lagoas africanas e voltar para casa com as roupas sujas de lama (“matope”, na língua africana). Ela misturava-se à natureza, à terra, ao chão da África – o que representava, para Lourenço, seu sobrinho, um ultraje à honra familiar dos Castro, como é visível em seu diálogo com a mãe:
– Ela voltou a sair hoje?
– Voltou, pois.
– Veio outra vez toda suja?
– Suja?! Aquilo é argila, coisa limpa.
– Argila? Matope é o que aquilo é. Temos que acabar com isto, mãe. A tia Irene compromete-nos e nós temos um nome a defender. (Ibidem, p. 18)
Irene também aprendia danças africanas e conversava com a feiticeira Jessumina. Por não agir da mesma maneira que seus familiares no que se refere ao tratamento dispensado aos negros e a sua cultura, o comportamento de Irene é associado à loucura. Ou seja, o que diverge do que é considerado certo pelo branco português colonizador, da ótica adotada pela metrópole, portanto, não é fruto da razão (o próprio Lourenço, representante do domínio tirânico europeu, se diz plenamente lúcido: “Os horrores que eu vi e não perdi a razão.” – Ibidem, p. 25). Em relação ao cunhado morto, Joaquim de Castro, Irene diz a Lourenço:
– Pois eu vos digo: esta casa vai definhar, até nela apodrecer o espírito desse monstro que foi esse teu pai.
(...)
– Haveis de enterrar mil vezes esse falecido. E será sempre enterro falso. Que esta terra nunca, mas nunca o irá aceitar.
– Pensas que tens o poder de matar? Pois esta gente, os pretos como tu lhes chamas, tem poderes que desconheces. Esses que mataste ainda estão por aqui, deste lado da vida. Só matas os que eles deixam morrer. (Ibidem, p. 31-32)
Revela-se em sua fala um discurso anticolonialista e uma identidade fortemente ligada à terra africana e ao negro moçambicano. Conforme nos expõe o trecho da narrativa “O tempero da alma de Irene se revelara desde que ela desembarcara em Moçambique. Irene chegara a Pebane sem modos de ocupadora, ela em si requerendo apenas o espreitar respeitoso de quem não quer posse nem domínio. Se comportara como era: estrangeira, vivendo em território colonial” (Ibidem, p. 44), Irene não só respeita a cultura africana como a adota como se sua fosse. É, portanto, uma personagem cuja cor da pele e cuja pátria não bastam para caracterizá-la. Tais características não dão conta de sua individualidade. Irene não se vê como ocupadora, colonizadora, tampouco como branca cuja epiderme possa colocá-la em nível superior ao de outros povos. Conforme aponta a epígrafe que acompanha o segundo capítulo da narrativa, a qual é extraída do diário da personagem, Irene aposta no meio social como formador de identidade. Tal epígrafe nos diz que “Ninguém nasce desta ou daquela raça. Só depois nos tornamos pretos, brancos ou de qualquer outra raça.” (Ibidem, p. 24).
Assim como o médico lisboeta de Os cus de Judas, a jovem Irene não se reconhece como portuguesa. Ambos são personagens cujo contexto no qual estão inseridos é de extrema relevância para a construção de uma identidade – a que escolhem para si – a partir da negação de outra – a que herdam por ocasião do nascimento em terras lusitanas. Tanto o médico da narrativa de Lobo Antunes quanto a jovem de Vinte e zinco apóiam-se na realidade, no meio do qual fazem parte, para contestarem os ideais da pátria de nascença, a portuguesa, e apontarem para a valorização do povo africano e de sua cultura.

5. Conclusão
As malhas discursivas intituladas Os cus de Judas e Vinte e zinco dialogam abertamente com a História – de Portugal, de Angola e de Moçambique –, pois fazem com que o leitor, durante o processo de construção de sentido para o que lhe é exposto, tenha de recorrer ao conhecimento do que a realidade lhe oferece, puxando os fios do contexto histórico à época da colonização de Angola e Moçambique e das lutas desses territórios por liberdade em relação a Portugal para que extraia o máximo de significação da obra e do universo de imagens trazidas para o plano do discurso, com o propósito de reproduzir a inconformidade das personagens analisadas perante as experiências das quais emergem. Inconformidade esta que confere à produção textual Os cus de Judas o caráter antiépico, marcando o desajuste entre o ideário nacionalista português, fruto de um discurso mítico de ordem colonialista, e o olhar forçosamente atualizado sobre Portugal – caráter este que, neste caso, simboliza uma escrita engajada e atenta à trajetória de seu povo e de seu tempo. Em Vinte e zinco, a inconformidade apontada compõe uma personagem que se quer negra, contestando, assim, a trajetória daqueles que, como ela, nasceram portugueses, mas que, diferentemente dela, assumiram o discurso do colonizador como verdade absoluta e incontestável.

Referências bibliográficas

ABDALA JUNIOR, Benjamin. Literatura, História e Política: Literaturas de Língua Portuguesa no Século XX. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.
ANTUNES, António Lobo. Os Cus de Judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.
COUTO, Mia. Vinte e zinco. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982.
GOMES, Álvaro Cardoso. Breve Histórico do Romance Português Contemporâneo. In: A Voz Itinerante. São Paulo: Edusp, 1993.
GOMES, Álvaro Cardoso. O Romance Português Contemporâneo. In: A Voz Itinerante. São Paulo: Edusp, 1993.
GOMES, Álvaro Cardoso. António Lobo Antunes. In: A Voz Itinerante. São Paulo: Edusp, 1993.
GOMES, Álvaro Cardoso. Entrevista com António Lobo Antunes. In: A Voz Itinerante. São Paulo: Edusp, 1993.
GONÇALVES, Adelto. Retrato da Decadente Classe Média. In: O Estado de São Paulo. Caderno 2. São Paulo: junho de 2001.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo. São Paulo: Ática, 2002.
OLIVEIRA, Clenir Bellezi & MAGNOLI, Demétrio. Os Cus de Judas: a Antiepopéia. In: Discutindo Literatura. São Paulo: Escala Educacional, ano I, n. 4, p. 12-21.
PANCIARELLI, Antônio. Um Outro Mestre Ultramar. In: Discutindo Literatura. São Paulo: Escala Educacional, ano II, n. 11, p. 46-49.
REMAK, Henry. Literatura Comparada: Definição e Função. In: Literatura Comparada – Textos Fundadores (Orgs. Eduardo Coutinho e Tânia Franco Carvalhal). Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 175-190.
SECCO,Carmen Lucia Tindó Ribeiro. Alegorias em abril: Moçambique e o sonho de um outro vinte e cinco (uma leitura do romance Vinte e zinco, do escritor Mia Couto) . In: Revista Via Atlântica nº. 03. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 110-123.
SILVA, Haidê. A Metaficção Historiográfica no Romance Os Cus de Judas, de Antonio Lobo Antunes (Tese Doutorado; Orientadora: Profa. Dra. Lílian Lopondo). São Paulo: USP, 2007, 148 fls.


1 Aluna do Curso de Especialização em Letras – Literatura Comparada, da Universidade Federal de Pelotas
2 António de Oliveira Salazar (1889 – 1970), professor de Finanças da Universidade de Lisboa, foi chamado, em 1928, ao governo português, o qual enfrentava grave crise financeira, para proceder ao saneamento de suas finanças. Instituiu, em 1933, o Estado Novo, dirigindo os destinos de Portugal de maneira despótica.
3 O cravo tornou-se o símbolo da revolução de abril de 74, pois, com o amanhecer, as pessoas começaram a juntar-se nas ruas, apoiando os soldados e alguém (existem várias versões sobre quem terá sido, mas uma delas é que uma florista, contratada para levar cravos para abertura de um hotel, foi vista por um soldado, o qual pôs um cravo na espingarda e, em seguida, todos fizeram o mesmo) começou a distribuir cravos pelos soldados, que depressa os colocaram nos canos das espingardas.
© 2008 - All rights reserved - Web Developer by Odirlei Vianei Uavniczak