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Literatura e Autoritarismo
Processos de identificação e políticas da (in)diferença
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 18 

RELEITURAS CONTEMPORÂNEAS DA GUERRA DOS FARRAPOS NA LITERATURA SUL-RIO-GRANDENSE

Elcio Loureiro Cornelsen1
Resumo: Nossa contribuição visa a apresentar reflexões sobre a relação entre Literatura e História à luz das releituras contemporâneas da Guerra dos Farrapos na literatura sul-rio-grandense. Nas últimas décadas, com a chamada “virada” cultural, que também atingiu seus alicerces teóricos – se pensarmos, com Hyden White e Sandra Jatahy Pesavento, na Nova História e, respectivamente, na Nova História Cultural –, a História tem sido objeto de releituras ficcionais dos mais variados eventos. Como objetos de análise, elegemos os romances Netto Perde sua Alma (2001), de Tabajara Ruas e A Casa das Sete Mulheres (2002), de Letícia Wierzchowski. A relação entre Literatura e História possibilita-nos vislumbrar aspectos constitutivos das obras em questão, pois implica pensá-las na confluência entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional a partir de seus elementos estruturantes básicos – tempo, espaço, narrador, personagem etc. Em termos de releitura, no caso específico da Guerra dos Farrapos, nota-se um deslocamento da visão, por exemplo, no romance de Letícia Wierzchowski, em que a guerra é vislumbrada a partir do olhar feminino. Já as obras do escritor e cineasta Tabajara Ruas integram influências do cinema no modo de narrar cenas de guerra, além da intensa presença do onírico na constituição do enredo e das personagens.
Palavras-chave: Guerra dos Farrapos; Releitura; Nova História Cultural; Literatura e Guerra.
Abstract: Our contribution aims to forward remarks on the relation between Literature and History on the basis of contemporary readings of the Farrapos War in literature from Rio Grande do Sul. In the past decades, with the so-called cultural “turn”, which also reached its theoretical grounds – having in mind Hyden White and Sandra Jatahy Pesavento, in New History and, respectively, in the New Cultural History –, History has been the object of new fictional readings of the most varied events. We have chosen the novels Netto Perde sua Alma (2001), by Tabajara Ruas, and A Casa das Sete Mulheres (2002), by Letícia Wierzchowski, as objects for analysis. The relation between Literature and History enables us to envisage constituting aspects of the mentioned works since it implies viewing them at the junction between historical narrative and fictional narrative from their basic structuring elements – time, space, narrator, character etc. In terms of re-reading, in the specific case of the Farrapos War, a shifting of view is noted in Letícia Wierzchowski ‘s novel, for instance, where the war is perceived under a female gaze. For their part, the works by writer and filmmaker Tabajara Ruas bring cinematic influences into the mode of narrating war scenes, in addition to an intense presence of the dreamlike in the make up of plot and characters.
Keywords: Farrapos War; Re-reading; New Cultural History; Literature and War.


1. Introdução: Releituras ficcionais da História e suas implicações
Em entrevista concedida ao jornal Estado de Minas por ocasião do lançamento do romance Na noite do ventre, o diamante (2005), o escritor Moacyr Scliar falou, entre outras coisas, “da história como fonte inspiradora da ficção” (2005, p. 5). Para Scliar, a História é “[...] um filão inesgotável. Agora, é importante visitar a História com o olhar ficcional de hoje. Não se trata de ‘recuperar’ o passado – isso é coisa para historiadores, trata-se de recriá-lo ficcionalmente. Não é a História que foi, é a História que poderia ter sido. São as emoções do passado transpostas para o presente” (2005, p. 5; ênfase nossa).
Por sua vez, ao se referir à obra do historiador Ramón Iglesia a partir da relação entre História e Literatura, Álvaro Matute apresenta a proposta de uma releitura da História a partir do olhar dos “índios”, dos “vencidos”, dos “colonizados” diante da chegada dos colonizadores europeus, a partir da “apelación a lo contrafactual” (Matute, 2003, p. 386). Para isso, o crítico mexicano recorre à “ficção” como pressuposto para a releitura da Historia: “en la ficción de imaginar por un momento lo que pudo haber pasado en la mente de los indígenas de Guanahani, al ‘descubrir’ a sus ‘descubridores’” (Matute, 2003, p. 387; ênfase nossa). Nesse sentido, devemos entender o processo de releitura ficcional da História intrinsecamente associado à noção de alteridade. Tal postura, aliás, contribuiria para a tarefa de se “escovar a história a contrapelo” (Benjamin, 1994, p. 225), noção cara ao pensador alemão Walter Benjamin.
Outra questão importante a se considerar ao lidarmos com a relação entre Literatura e História seria: Por que temas históricos atraem tanto os escritores? Segundo a historiadora Maria Teresa de Freitas, tal atração resulta da “grande variedade de situações ricas em peripécias e emoções – dois ingredientes básicos da literatura de ficção – que [os temas históricos] oferecem” (Freitas, 1987, p. 605), sobretudo pelo “componente básico da tragédia – a catástrofe – através do qual sentimentos e situações são levados ao paroxismo” (1987, p. 606).
Portanto, mais do que aludirem a situações históricas ou mesmo situarem “sua intriga num determinado contexto sócio-histórico, que lhe serve de pano de fundo, numa preocupação de dar maior realismo ao texto” (Freitas, 1987, p. 606), toda obra de ficção que “se pauta por uma releitura da História toma uma realidade qualquer do universo histórico – um acontecimento, uma situação, uma personagem – e a transforma em seu próprio tema, ou seja, em parte integrante de sua estrutura interna, fazendo dela matéria estética” (1987, p. 607).
Entretanto, como bem aponta Maria Teresa de Freitas, o aspecto estético não é o interesse último de obras ficcionais que propõem releituras da História: “[...] o texto literário que se apodera de uma série histórica terá com certeza uma significação outra, tentará passar um conhecimento de outra natureza, uma verdade de outra ordem” (Freitas, 1987, p. 608-609; ênfase nossa). Nesse mesmo sentido, Benedito Nunes afirma que, grosso modo, “a imaginação do historiador pretende ser verdadeira”, enquanto a ficção seria “sinônimo de irreal”; ela se liga à “recriação artística dos fatos” (Nunes, 1988, p. 12).
Associada à categoria de tempo, a releitura ficcional da História pode ser pensada como um modo de reler o passado não mais na crença de sua apreensão total – cuja impossibilidade Walter Benjamin bem destaca (1994, p. 225) –, mas sim como o passado “relampeja” no presente. Além disso, no modo de tratamento do tempo, como ressalta Benedito Nunes, “nada constrange o tempo ficcional a não ser a própria estrutura da narrativa que o articula; as anacronias interrompem e invertem o tempo cronológico, deslocando presente, passado e futuro; e a sucessão pode contrair-se num momento único, acrônico e intemporal” (Nunes, 1988, p. 25). Ao contrário da ficção, “[e]ssas modalidades de experiência temporal estão vedadas à História, sobre a qual pesa o constrangimento do tempo cronológico. À irrealidade sui generis da Ficção com o seu quase-passado, opõe-se o passado real da História” (1988, p. 25).
Poderíamos afirmar, então, que as releituras ficcionais da História têm por objetivo combater os silenciamentos e as possíveis rasuras disseminadas por discursos hegemônicos e, ao mesmo tempo, promover os discursos dos “vencidos”, das “minorias”, dos que estão “à margem”. É nesse sentido que José Luiz Foureaux de Souza Júnior propõe a seguinte reflexão:
De fato, a História é cheia de possibilidades frustradas, de acontecimentos que não se realizaram. Ninguém será historiador se não perceber, em torno da história que se conta, uma multidão indefinida de outras histórias ‘compossíveis’ de coisas que poderiam ser de outra maneira, para reforçar o que foi dito aqui. Aí está o ponto de convergência entre a Literatura e a História, numa certa medida. (Souza Júnior, 2000, p. 42)
Dessa forma, o romance histórico, pensado como um subgênero do romance, teria muito a contribuir, pois, como aponta Foureaux, “o romance histórico pode problematizar, numa outra visada, as mesmas questões [que a História], sem propor soluções aparentemente fáceis, como sonhava um certo positivismo, infelizmente renitente” (Souza Júnior, 2000, p. 44).
No mesmo sentido, a historiadora Elaine de Freitas Dutra lembra-nos que há um espaço comum entre a Literatura e a História:
[...] aliás o mesmo espaço comum da criação poética e da escritura da história – o do verossímil. Ora, o verossímil, tal como já foi reiterado por muitos daqueles que se ocupam das relações entre história e ficção, é o que faz a mediação entre a ficção e a verdade, e ao mesmo tempo estabelece as funções cognitiva e comunicativa do ficcional face ao factual. (Dutra, 2001, p. 152)
Podemos pensar, também, que as releituras literárias de fatos históricos são produzidas em tempos e contextos diferentes, para públicos igualmente diferentes. Além disso, toda releitura literária pressupõe a apropriação e a ressignificação do evento histórico, em geral, de um passado mais distante, no intuito de atribuir-lhe novas significações e sentidos, atualizando-o de acordo com interesses e pontos de vista do presente.

2. A Guerra dos Farrapos na Literatura: pressupostos e exemplos
A historiadora Sandra Jatahy Pesavento, uma das principais estudiosas brasileiras no campo da Nova História Cultural, certa vez, chamou a atenção para possibilidades de apropriação temática do passado relacionado à Guerra dos Farrapos, ocorrida de 1835 a 1845 no Sul do Brasil:
Uma coisa seria um retorno ao passado, enquanto objeto de estudo, com os olhos do presente, ou seja, acompanhado de uma visão crítica possibilitadora de melhor entendimento da realidade de hoje e, por sua vez, orientadora da tomada de decisões; outra é retomar o passado por si mesmo, numa visão saudosista de tempos heróicos, que se encerram em uma época que passou, uma vez que a história não se repete... (Pesavento, 1990, p. 72)
Tal postura proposta por Pesavento frente a narrativas de releitura histórica busca novas formas de lidar com o passado histórico de maneira crítica e alicerçada pela preocupação de dar voz àqueles que permaneceram – e ainda permanecem – marginalizados pela narrativa histórica tradicional; entretanto, é necessário verificar se tal “releitura”, neste caso, também não incorpora em si “teses revisionistas” fundamentadas em posicionamento ideológico.
Em nosso caso específico, o tratamento literário da Guerra dos Farrapos remonta ao século XIX e tem como um de seus ícones o romance O Gaúcho (1870), de José de Alencar (1829-1877). Um dos alicerces das obras de José de Alencar é o projeto literário de construção do sentimento de nacionalidade do Brasil a partir da representação dos tipos humanos brasileiros e de seus traços culturais peculiares. As obras O Guarani (1857), Iracema (1865), O Gaúcho (1870) e O Sertanejo (1875) podem ser agrupadas sob este aspecto e elevam os tipos regionais a heróis romanescos.
Sem dúvida, o romance O Gaúcho, publicado em 1870, foi produzido no clima dos acontecimentos em torno da “Guerra do Paraguai”, transcorrida entre os anos de 1864 e 1870. Na época de seu lançamento, o romance foi alvo de severas críticas por parte daqueles que atribuíam à obra de Alencar falta de rigor e desconhecimento do mundo gaúcho, de seus traços culturais e de sua história. Na referida obra, o gaúcho é associado ao cavalo e à atividade pastoril no vasto pampa e surge como “o centauro da América”, materializado, sobretudo, na figura do protagonista Manuel Canho.
A título de exemplificação, tomemos o capítulo “Camarada” (Alencar, 1999, p. 135-141), em que o crescente descontentamento na Província do Rio Grande do Sul em relação à política central do Império é apresentado ao leitor como fruto de conspirações e interesses do oficial uruguaio D. Juan Lavalleja:
Desde 1832, quando se realizou em Jaguarão o desarmamento de D. Juan Lavalleja pelo coronel Bento Gonçalves da Silva, plantaram-se na província os germes de uma conspiração, no sentido de proclamar a independência e a república. O caudilho oriental tinha empregado os maiores esforços para fomentar essa propaganda, que favorecia seus planos de trêfega ambição. (Alencar, 1999, p. 136)
Na construção ficcional dessa personagem histórica, é atribuído ao “outro” o interesse por uma possível instabilidade política na região que lhe favorecesse no sentido de poder levar a Província do Rio Grande do Sul ao separatismo, assim como havia ocorrido na Província Cisplatina anos antes; com isso, o “caudilho oriental” é revestido de um sentido pejorativo como aquele que plantara uma “conspiração” na região para se formar a “Confederação do Prata”. Aliás, as personagens estrangeiras que aparecem no romance O Gaúcho, em geral, são construídas a partir de atributos negativos, e este aspecto se torna parte do próprio projeto de construção nacional, defendido por Alencar. Sendo assim, podemos dizer que a obra de Alencar acaba por cristalizar certos estereótipos tanto em relação à construção da imagem do gaúcho quanto do estrangeiro, ou seja, do “eu” (identidade) e do “outro” (alteridade).
Enquanto o romance de José de Alencar está associado a um projeto de construção de unidade nacional, a obra Contos Gauchescos & Lendas do Sul (1912), de Simões Lopes Neto pauta-se por um caráter eminentemente regional. O escritor gaúcho Simões Lopes Neto (1865-1916) é um dos expoentes da literatura sul-rio-grandense e regionalista dentro da série literária brasileira. Para produzi-la, o autor coletou lendas e casos da tradição gaúcha, dando-lhes forma literária, além de revelar toda a riqueza do linguajar típico da região. Seu regionalismo não é apenas marcado pela descrição de paisagens típicas sulinas, mas também pela maneira como constrói suas personagens, apoiando-se para isso no linguajar todo peculiar dessa região.
No conto “Duelo de Farrapos” (Lopes Netto, 2002, p. 122-129), por exemplo, a instância narrativa se constitui em primeira pessoa, um narrador-personagem chamado Blau Nunes, apresentado no primeiro conto da obra, o qual atrela os diversos contos em torno daquele contador de “causos”. Blau Nunes afirma ter sido “ordenança do meu general Bento Gonçalves” (2002, p. 122). Em tom de oralidade, Blau Nunes interpela até mesmo o leitor: “vancê desculpe... estou velho, mas inté hoje, quando falo na República dos Farrapos, tiro o meu chapéu!...” (p. 122). Sua narrativa é lacunar, apresenta marcas de esquecimento: “O jornal do governo deu uma relação deles e dos votos que tiveram. Que eu sabia, mas já esqueci.” (p. 122); “que era assim, se bem me lembro” (p. 122).
Além disso, o emprego de expressões dialetais e coloquiais produz o efeito de distanciamento do discurso despersonalizado em terceira pessoa, recorrente em relatos históricos, de modo que o relato do contador de “causos” Blau Nunes não busca produzir o efeito discursivo do “real”. No conto “Duelo de Farrapos”, a memória do duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires, também personagem histórica, surge como lacunar e é orientada pelo olhar do narrador-personagem: “deste lado, eu, sabendo, mas não podendo me intrometer...” (Lopes Netto, 2002, p. 128-129) / “E creia vancê que lhe rezei este rosário sem falha duma conta, apesar de já sentir a memória mais esburacada que poncho de calavera... Pois faz tanto ano!...” (p. 129).
O olhar do narrador-personagem também determina a construção da imagem de si e do outro. No conto “Chasque do imperador” (Lopes Netto, 2002, p. 67-73), D. Pedro II é apresentado por Blau Nunes como “gringo”, “ruivo”; “Eu pensava que o imperador era um homem diferente dos outros... assim todo de ouro, todo de brilhantes, com olhos de pedras finas...” (2002, p. 70); “era um homem de carne e osso, igual aos outros...” (p. 70); “O imperador – esse era meio maricas, era! –” (p. 73). Com isso, estabelece-se uma diferenciação entre o gaúcho (identidade) e o imperador (alteridade).
Outro marco literário que tem por cenário a Guerra dos Farrapos é a obra Um Certo Capitão Rodrigo (1949), de Erico Veríssimo (1905-1975). Trata-se do terceiro episódio do primeiro volume de O Continente (2 vol.; 1949), primeira parte da trilogia O Tempo e o Vento (1949-1962), composta também por O Retrato (parte II; 2 vol.; 1951) e O Arquipélago (parte III; 3 vol.; 1961-1962).
Em Um Certo Capitão Rodrigo, a instância narrativa é construída como um narrador onisciente, que muitas vezes mescla em sua voz a voz das personagens, como, por exemplo, na cena em que o padre Lara hesita em dar a Bibiana a notícia de que Rodrigo havia sido ferido gravemente:
O pe. Lara caminhava na direção da casa de Bibiana. Como havia de lhe transmitir a notícia? Dizer tudo de chofre? Ou primeiro mentir que o capitão estava ferido... gravemente, e depois, aos poucos, preparar-lhe o espírito para o pior? Talvez ela lesse no rosto dele o que havia acontecido. Talvez já tivesse adivinhado tudo. Essas mulheres às vezes têm uma intuição dos diachos... (Veríssimo, 2004, p. 167)
Além disso, o narrador conhece os pensamentos das personagens: “A noite estava calma. Galos de quando em quando cantavam nos terreiros. Os galos não sabem de nada – refletiu o padre. Sempre achara triste e agourento o canto dos galos. Era qualquer coisa que o lembrava da morte.” (Veríssimo, 2004, p. 166).
Por sua vez, a personagem Bibiana parece se aproximar daquela imagem cristalizada da mulher nos bastidores da guerra. Além dos afazeres domésticos, restava-lhe apenas uma coisa: rezar e esperar pelo regresso de Rodrigo Cambará:
Achou que só tinha uma coisa a fazer. Rezar. Começou a dizer: “Ave Maria cheia de graça...”. E seus lábios se moviam, e ela murmurava a oração como se estivesse cochichando ao ouvido da santa. Disse uma salve-rainha, e depois um padre-nosso, mas ia repetindo as palavras sem prestar atenção nelas, pensando todo o tempo no marido. Queria vê-lo mais uma vez, só uma vez. Deus não ia ser tão mau que não lhe permitisse essa alegria. (Veríssimo, 2004, p. 162)
Entretanto, há um aspecto significativo no romance de Erico Veríssimo, ausente em obras anteriores: a “verdade” em relação à guerra é posta em questão no final do texto. As versões da guerra são apresentadas pela personagem Bibiana, sem que ela assuma uma como verdadeira e legítima:
Diziam que os imperiais tinham de novo tomado Porto Alegre. Bibiana não sabia nem queria saber se aquilo era verdade ou não. Não entendia bem aquela guerra. Uns diziam que os farrapos queriam separar a Província do resto do Brasil. Outros afirmavam que eles estavam brigando porque amavam a liberdade e porque tinham sido espezinhados pela Corte. Só duma coisa ela tinha certeza: Rodrigo estava morto e rei nenhum, santo nenhum, deus nenhum podia fazê-lo ressuscitar. (Veríssimo, 2004, p. 169)
Entretanto, se já notamos alterações no modo da construção ficcional da Guerra dos Farrapos na obra de Erico Veríssimo em relação ao romance O Gaúcho, de José de Alencar, com seu projeto de unidade nacional, e aos Contos Gauchescos & Lendas do Sul, de Simões Lopes Netto, fortemente de caráter regionalista, é a partir dos anos 1980 que constatamos uma proliferação de romances que intensificarão o processo de releituras da guerra, entre outros, o romance A Guerra dos Farrapos (1985), de Alcy Cheuíche; o romance Garibaldi e Manoela (1986), de Josué Guimarães; o romance Netto Perde sua Alma (2001) e a trilogia Os Varões Assinalados (2005), de Tabajara Ruas; Uma História Farroupilha (2004), novela de Moacyr Scliar; os romances A Casa das Sete Mulheres (2002) e Um Farol no Pampa (2004), de Letícia Wierzchowski.

3. O romance Netto pede sua alma – o delírio e o onírico
A primeira obra eleita para nossas reflexões sobre releituras ficcionais contemporâneas da Guerra dos Farrapos é Netto Perde sua Alma (2001), de Tabajara Ruas, obra ficcional sobre o general farroupilha Antonio de Sousa Netto, proclamador da República Rio-Grandense em 11 de setembro de 1936 (Fagundes, 2003, p. 44-45), que mais tarde viria a tomar parte na Guerra do Paraguai. O romance deu origem também ao filme homônimo, dirigido pelo próprio escritor em parceira com o cineasta Beto Souza.
Embora se trate de um romance histórico, Netto Perde sua Alma se diferencia de maneira acentuada no modo como Tabajara Ruas lida com a temática e com a representação de um dos protagonistas da Guerra dos Farrapos, rompendo, assim, com estratégias que poderiam, de certa forma, aproximar as narrativas histórica e ficcional. No romance, o general Netto surge como alguém engajado no seu propósito bélico e militar, e que procura ser ético e justo, por exemplo, em relação ao desfecho da Guerra dos Farrapos e com a decepção dos lanceiros negros, ou ainda com a obrigação de se vingar da morte do capitão de los Santos; por outro lado, Netto parece estar em permanente delírio, tanto pelos medicamentos que recebe no hospital em Corrientes, quanto pela malária que contraiu nos charcos durante os primeiros anos da Guerra do Paraguai. De todo modo, Netto é atormentado pela própria consciência. Aliás, o leitor se depara no quarto do hospital de Corrientes com o oficialado da Tríplice Aliança enquanto tipificações: o capitão de los Santos como vítima; o major Ramírez como um criminoso de guerra; o general Netto, atormentado por sua consciência, seus sonhos e delírios.
O romance Netto Perde sua Alma está estruturado em um “Prólogo” (Ruas, 2001, p. 9-10) e seis partes: “Corrientes” (p. 11-42), “Reunião no morro da Fortaleza” (p. 43-70), “Dorsal das Encantadas” (p. 71-87), “Último verão no Continente” (p. 89-102), “Piedra Sola” (p. 103-136) e “Corrientes” (p. 137-157). De tal estruturação derivam certas implicações para a construção do eixo temporal, pois se estabelece uma espécie de movimento circular do presente em direção ao passado e, por sua vez, um retorno gradativo do passado ao presente. O romance se inicia com um “Prólogo” que situa a história no presente, quando a enfermeira-chefe Rosita Zubiaurre encontra mortos o major Ramírez e o general Netto, ambos feridos de guerra que se encontravam em tratamento num hospital de Corrientes, na Argentina, durante a Guerra do Paraguai; em seguida, a parte I – “Corrientes” (Ruas, 2001, p. 11-42) –, como as demais, exibe informações que ancoram o romance ao eixo sócio-histórico: “Hospital Militar de Corrientes, República Argentina, 1º de julho de 1866. / Segundo ano da guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. / Madrugada.” (2001, p. 11); a parte II – “Reunião no Morro da Fortaleza” (p. 43-70) representa um primeiro mergulho em direção ao passado, no ano de 1840: “Vinte e seis anos antes: Província de São Pedro do Rio Grande, margem esquerda do rio Guaíba, 8 de abril de 1940. / Quinto ano da rebelião rio-grandense contra o Império do Brasil. / Onze horas da noite.” (p. 43); a parte III – “Dorsal das Encantadas” (p. 71-87) representa um segundo mergulho em direção ao passado, no ano de 1836: “Quatro anos antes: campos do Seival, arredores de Bagé, Província de São Pedro do Rio Grande, 11 de setembro de 1836. Primeiro ano da rebelião rio-grandense contra o Império do Brasil. / Nove horas da noite.” (p. 71); a parte IV – “Último verão no Continente” (p. 89-102) – inicia o retorno gradativo ao presente, numa primeira parada no ano de 1845: “Nove anos depois, vilarejo de Ponche Verde, município de D. Pedrito, Província de São Pedro do Rio Grande, 2 de março de 1845. / Três horas da tarde.” (p. 89); a parte V – “Piedra Sola” (p. 103-136) – avança um pouco mais no tempo, chegando a 1861: “Dezesseis anos depois: arredores de Taquarembó, República Oriental do Uruguai, 25 de junho de 1861. / Sete horas da manhã.” (p. 103); a parte VI – “Corrientes” (p. 137-157) – retorna ao ponto de partida, em 1866: “Cinco anos depois: Hospital Militar de Corrientes, República Argentina, 1º de julho de 1866. / Segundo ano da guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. / Madrugada.” (p. 137).
Alguns elementos épicos reforçam a estruturação do romance. O “Prólogo” adianta ao leitor a morte do general Netto; agora resta a este saber como um dos protagonistas da Guerra dos Farrapos “perdeu sua alma”; o início de cada capítulo localiza a história no espaço e no tempo, de acordo com o eixo espaço-temporal, e temática em relação aos fatos históricos associados à vida do protagonista. Cabe lembrar que a própria segmentação produz efeitos genuinamente épicos, na medida em que pode, em cada unidade, construir seu próprio sentido interno, episódico.
Se pensarmos em termos narrativos, a estruturação do romance Netto Perde sua Alma contribui para um distanciamento da linearidade temporal, presente na narrativa histórica. Flashback e flash forward são recursos genuinamente literários, empregados com propriedade por Tabajara Ruas ao tratar literariamente de um tema histórico e ao construir a imagem ficcional de um dos protagonistas da Guerra dos Farrapos.
O romance de Tabajara Ruas é marcado por um tom onírico em relação ao protagonista. Convalescendo de ferimento grave, num hospital de Corrientes, e sob os cuidados de um médico francês, o tenente-coronel Philippe Fointainebleux, tido como “carniceiro”, o general Netto tem visões de um de seus comandados, o sargento Caldeira: “É possível que tenha adormecido, porque abriu os olhos quando ouviu a porta bater em algum lugar e deparou com o sargento Caldeira debruçado sobre ele. Por algum efeito da luz ou da febre, o sargento Caldeira pareceu-lhe transparente”. (Ruas, 2001, p. 35) Na verdade, o sargento Caldeira, velho companheiro do general Netto, ainda nos tempos da Guerra dos Farrapos, havia morrido em combate na batalha de Tuyuty e, agora como uma espécie de espectro, está ali para matar o major Ramírez, descrito no relato do sargento como uma espécie de “sanguinário” e “genocida”, por assim dizer, servindo de pólo antagônico em relação ao próprio general Netto. Mas que, na verdade, se trata de uma figura emanada dos delírios do general, isso o leitor vai apreendendo gradativamente, e o todo faz sentido ao final da narrativa.
Em forma de flashbacks, a Guerra dos Farrapos também se apresenta ao leitor ao longo do romance. O general Netto surge como o fundador e líder do 1º Corpo de Lanceiros, um batalhão de cavalaria composto apenas por soldados negros:
À frente, cercado por estandartes e bandeiras, estava Netto com os oficiais. O coronel Joaquim Pedro ergueu o braço. Um clarim soou, e à luz dourada do sol que surgia na linha do horizonte, o exército começou a se mover.
Milonga nunca tinha visto nada tão bonito em toda a sua vida. Marchava junto com o 1º Corpo de Lanceiros, orgulhoso, olhando com respeitosa inveja os uniformes vistosos dos soldados antecipando o prazer de vestir a blusa vermelha com dragonas douradas, as calças azul-marinho com a lista preta, os chapéus negros, de copa alta e aba estreita, elegantes e severos. (Garibaldi adotaria aquele uniforme para suas brigadas na Itália.) (Ruas, 2001, p. 67)
Nessa passagem do romance, a instância narrativa se estabelece como terceira pessoa do singular. Mas a Guerra dos Farrapos não surge apenas através do narrador, como também no diálogo do moribundo general Netto com o “fantasma” do sargento Caldeira, quando este lê trechos de uma suposta carta de Garibaldi enviada da Itália aos antigos companheiros nos tempos da guerra:
– O conselheiro Domingos teve a bondade de copiar trechos da carta do capitão Garibaldi, general, e pediu que se fosse possível, que eu le mostrasse.
– Leia no más.
– Escute. É dele, do capitão Garibaldi.
O sargento Caldeira empostou a voz:
– “Eu vi batalhas mais disputadas, mas nunca vi em nenhuma parte homens mais valentes nem cavaleiros mais brilhantes que os da cavalaria rio-grandense, em cujas fileiras comecei a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa sagrada das gentes.”
Netto aprovou com a cabeça. (Ruas, 2001, p. 39)
No romance, além do sargento Caldeira, há também uma personagem que desempenha uma função fundamental: o jovem Milonga, escravo que se junta voluntariamente ao 1º Corpo de Lanceiros, sob comando do general Netto. A trajetória de Milonga vai da euforia inicial diante do contingente farroupilha, conforme citação anterior (Ruas, 2001, p. 67), à total desolação com o desfecho da guerra. Mutilado, tendo perdido um braço, Milonga cobra o general pelo fracasso:
– A guerra terminou, Milonga.
– A guerra terminou e eu continuo escravo.
– Para mim tu não és escravo, Milonga.
– General, onde está a República que vosmecê proclamou?
– Ela não existe mais, Milonga.
– Vosmecê mentiu para nós.
– Não, Milonga, eu não menti. Apenas perdi a guerra.
– Onde está o Gavião?
– O coronel Teixeira morreu, Milonga.
Milonga olhou para o céu avermelhado e deu um grito agudo, que fez Netto estremecer. Depois, olhou para Netto com olhos frios.
– Morre, general!
Apanhou o revólver, apontou para Netto e apertou o gatilho. O tiro saiu para o alto. No momento do disparo, Milonga foi sacudido por um tremor, atingido pela descarga duma carabina. Dobrou-se sobre o pescoço do cavalo e caiu no chão seco.
Todos olharam para o sargento Caldeira, que segurava nas mãos a carabina fumegante. O sargento Caldeira aproximou-se do corpo caído e curvou-se sobre ele. (Ruas, 2001, p. 102)
No romance de Tabajara Ruas, Milonga é a representação daqueles que lutaram por acreditar na causa dos republicanos, mas que se decepcionaram com o desfecho e com sua volta à condição de escravo. É, ao mesmo tempo, um elo entre as trajetórias de Netto e do sargento Caldeira.
Mas, sem dúvida, é através da personagem do sargento Caldeira que o leitor, gradativamente, pode unir os vários fios da meada ao longo da narrativa, seja nas imagens de delírio do general no hospital em Corrientes durante a Guerra do Paraguai, seja nas cenas da Guerra dos Farrapos, três décadas antes. Podemos dizer que se trata de uma personagem extremamente complexa, pois se insere nos delírios e sonhos do general Netto, e também se torna uma espécie de ponto de cruzamento de um passado comum. Se é Caldeira aquele que, no passado, salva o general, matando Milonga, também é o sargento – já morto – que acompanha Netto nos últimos momentos de vida, mesmo que apenas em forma de uma miragem. Diante de seu comandado, próximo do momento derradeiro, Netto revê sua trajetória de sangue e matança:
– Eu matei índios. Matei negros. E matei brancos. Mais do que isso, matei castelhanos: uruguaios, argentinos, paraguaios chilenos. Matei portugueses. Matei galegos. Aqui neste quarto eu ficava matutando comigo mesmo nessa gente toda que matei e me dava um peso enorme no coração, sargento. Acho que buscava um pretexto, queria justificar, dar um sentido decente a essa sangueira toda, mas a razão falta quando a gente se lembra de tanto sangue. A gente não quer acreditar que tudo é inútil. A gente quer se lembrar por que matou tanto e pensa nas idéias, nas grandes palavras, e não acha resposta que valha a pena tanto sangue. Não me lembro mais das palavras, só me lembro dos mortos, um a um. Negros, brancos, índios, cafuzos, a interminável procissão de gente morta nessas guerras do pampa.
– Eu só me lembro dum negrinho. (Ruas, 2001, p. 143)
Além disso, a presença do sargento Caldeira se associa também a uma espécie de leitmotiv que perpassa toda a narrativa. Logo no início do romance, chama a atenção um aspecto descritivo que se torna recorrente: o reflexo de água no teto do quarto em que o general se encontrava juntamente com outros feridos de guerra: “Havia uma porta batendo em algum lugar. Havia um reflexo de água brilhando no teto do quarto”. (Ruas, 2001, p. 13) Em outra passagem do romance, lê-se:
Há uma porta batendo em algum lugar. A cama da direita está vazia. A cama da esquerda tem o corpo enorme do major Ramírez, respirando pesadamente, fazendo gestos confusos. Há um reflexo de água brilhando no teto do quarto. Quando o trouxeram para o hospital, Netto viu o pequeno jardim com a fonte. Deve ser o reflexo do tanque onde está a fonte, um ser híbrido de peixe e homem com um arpão, cuspindo um jato de água. Choveu toda a noite, monotonamente, uma chuva parelha e adormecedora, varada pela brisa que agitava os mosquiteiros e fazia essa porta bater em algum lugar. (Ruas, 2001, p. 17)
Mais adiante, quase ao final do romance, a imagem se modifica, tornando-se ameaçadora, pois, no delírio do general, ganha contornos mais nítidos: “Há uma porta batendo em algum lugar. Há um reflexo de água brilhando no teto do quarto. O reflexo é uma ameaça. É um jaguar de olhos amarelos” (Ruas, 2001, p. 139). E após revelar-se arrependido das mortes que provocara, o general volta a mirar o teto: “Netto ficou olhando a umidade no forro, os reflexos de água” (2001, p. 143). O sargento Caldeira ajuda o general a se vestir e eles deixam o hospital de madrugada, debaixo de chuva. Caminham por um bosque até a margem de um rio, onde, segundo Caldeira, um canoeiro deveria estar esperando. Com isso, a imagem da água refletida no teto, ao longo da narrativa, revela-se como prenúncio da morte de Netto.
Além disso, as frases recorrentes “havia/há uma porta batendo em algum lugar” e “havia/há um reflexo de água brilhando no teto do quarto” instauram uma voz narrativa que não é totalmente onisciente: por um lado, a porta batendo em algum lugar parece anunciar a entrada do sargento Caldeira, agente da morte, no hospital; por outro, o reflexo de água parece estabelecer uma relação homológica com o rio e a necessidade de sua travessia ao final do romance. Em suma, a morte se faz simbolicamente presente no hospital e no quarto em que está o general Netto.
Para construir a cena final do romance Netto Perde sua Alma, Tabajara Ruas valeu-se do mito de Caronte, o barqueiro dos mortos na mitologia grega e na Divina Comédia, de Dante Alighieri, que transportava em seu barco a alma dos mortos para a travessia do Aqueronte, um dos rios do reino subterrâneo de Hades. Todavia, para isso o morto deveria ser sepultado com uma moeda de baixo da língua (o óbolo), para pagamento da travessia do rio. Sem isso, as almas ficariam vagando. No romance, lê-se:
Chegaram na margem. A massa esbranquiçada da neblina pairava no meio do rio. O sargento olhou em todas as direções. Parecia procurar algo.
– O canoeiro devia estar aqui.
– Canoeiro?
Netto olhou ao redor, preocupado. Soprava um vento ainda tênue, que começou a interferir na formação compacta da neblina. A praia era comprida e deserta. Além da onipresença dos sapos, o silêncio era completo. Ouviu um leve rumor de água agitada. Firmou os olhos, mas nada era visível. E então, pouco a pouco, do interior da neblina, foi tomando forma, lento e silencioso, longo e escuro, o perfil de uma canoa. Era conduzida por um homem coberto por uma capa negra. O homem impulsionava a canoa com uma vara comprida, seguro do rumo, sem pressa. (Ruas, 2001, p. 154-155)
Todavia, a travessia do general deveria ser apenas em companhia do barqueiro, separando-se assim de seu fiel comandado:
Era uma canoa de madeira, comprida e estreita. Encostou na praia a alguns metros deles. O canoeiro saltou para a margem. Netto não viu seu rosto. A capa negra arrastava no chão. O canoeiro ficou parado, silencioso.
O sargento tocou no braço de Netto.
– Vosmecê deve tomar essa canoa, general.
– Bem pensado, sargento. Para onde nos leva?
– Para a outra margem. Mas eu o acompanho até aqui no más. Vosmecê vai só.
Netto estremeceu com violência.
– E por que isso?
– Eu já atravessei esse rio, general.
[...]
– Já o atravessou? Quando, sargento?
– Em Tuyuty, general.
Encarou num instante de fascinado terror o espectro do sargento Caldeira. É a febre!
[...]
– Não tem importância, sargento. Essa travessia a gente deve fazer sozinho mesmo. Hasta la vista.
Hasta la vista, general. (Ruas, 2001, p. 155-156)
Nesse sentido, o sargento Caldeira parece ser uma espécie de “agente da morte”, que está ali no quarto do hospital de Corrientes para matar o major Ramírez e, de certo modo, o próprio general Netto. Cabe lembrar que, no contexto da proclamação da República Rio-Grandense, o sargento Caldeira diz ao então coronel Netto: “– Se vosmecê fundar um país, coronel, eu o acompanho até a porta do inferno.” (Ruas, 2001, p. 87) Ao final do romance, o sargento Caldeira parece ter cumprido tal promessa.
Na última frase do romance, inicia-se a travessia: “Netto empurrou a canoa e saltou para dentro dela” (Ruas, 2001, p. 157). Sem dúvida, Netto Perde sua Alma é um dos exemplos mais significativos da literatura sul-riograndense em termos de releitura ficcional de eventos históricos, neste caso, da Guerra dos Farrapos e da Guerra do Paraguai. A relação entre Literatura e História ganha contornos muito bem delimitados nessa obra. Pois Tabajara Ruas investe em estratégias eminentemente ficcionais para tratar do conflito. O escritor investe numa instância narrativa que se distancia daquele narrador histórico despersonalizado, em terceira pessoa, como se os fatos narrassem de per si. Ao contrário, a visão do narrador parece limitar-se à visão do protagonista – o general Netto –, figura histórica construída ficcionalmente não como o herói da jornada épica farroupilha, mas como homem com suas virtudes e fraquezas. O onírico em si abre possibilidades genuinamente literárias, pois suspende necessariamente a fronteira entre o ficcional e o histórico, além de frisar o caráter subjetivo, no romance em questão, de uma personagem histórica, “humanizando-a”. O onírico apresenta-se como uma mescla de pesadelos, delírios e alucinações de um moribundo e torna-se fundamental para produzir o efeito de relativização de supostas certezas e verdades. Por assim dizer, o romance contribui mais para a desconstrução do mito em torno da figura do general, do que propriamente o alimenta.

4. O romance A casa das sete mulheres – o olhar feminino e as imagens visionárias
Outro exemplo literário muito rico em termos de releitura contemporânea da Guerra dos Farrapos é o romance A Casa das Sete Mulheres (2001), da escritora gaúcha Letícia Wierzchowski. Como Tabajara Ruas ressalta na orelha da capa do romance, trata-se de uma “narrativa claustrofóbica e íntima”: “História e ficção, realidade e fantasia, o natural e o sobrenatural se interpenetram no cotidiano das sete mulheres, cada dia mais violento e sufocante e imutável”.
Se encontramos o olhar feminino sobre a guerra em obras anteriores analisadas brevemente, como é o caso da personagem Bibiana em Um Certo Capitão Rodrigo (1949), de Erico Veríssimo, é com Letícia Wierzchowski que esse olhar ganhará primazia na construção tanto da narrativa quanto do enredo. A releitura ficcional da guerra pautar-se-á justamente por esse olhar.
O romance A Casa das Sete Mulheres está estruturado em 11 capítulos, correspondendo a cada ano no período de 1835 a 1845 – 1835 (Wierzchowski, 2002, p. 15-72), 1836 (p. 73-139), 1837 (p. 141-189), 1838 (p. 191-237), 1839 (p. 239-310), 1840 (p. 311-368), 1841 (p. 369-414), 1842 (p. 415-446), 1843 (p. 447-481), 1844 (p. 483-499), e 1845 (p. 501-511). A estes, antecede fragmentos de um texto de Jorge Luis Borges – “Os gaúchos – Elogio da sombra” (Wierzchowski, 2002, p. 7) –, um breve relato sobre o início da Guerra dos Farrapos e a decisão de Bento Gonçalves em manter as mulheres de sua família distante do cenário da guerra, na Estância da Barra, próxima ao rio Camaquã (p. 9), e uma primeira apresentação dos “Cadernos de Manuela” (p. 11-14), diários da narradora-protagonista, cujos relatos comporá todo o romance, além de cartas trocadas entre as personagens.
Por sua vez, cada um dos 11 capítulos que compõem o romance A Casa das Sete Mulheres apresenta estrutura própria e complexa, numa variedade de textos e dicções narrativas. A título de exemplo, apresentamos a estrutura do capítulo 1, intitulado “1835” (Wierzchowski, 2002, p. 15-33), que é composto por 09 segmentações de acordo com a seguinte seqüência: relato (p. 15-33) → carta de Caetana (p. 33-34) → Cadernos de Manuela (p. 35-37) → relato (p. 39-43) → carta de Bento (p. 43-44) → relato (p. 44-54) → Cadernos de Manuela (p. 55-58) → relato (p. 59-69) → Cadernos de Manuela (p. 70-72). Portanto, podemos constatar que o referido capítulo se constitui de quatro relatos, intercalados por três extratos dos “Cadernos de Manuela” e, respectivamente, por duas cartas (uma de Caetana e uma, de Bento Gonçalves).
De início, devemos nos indagar sobre a função do breve relato que antecede os “Cadernos de Manuela”. Em princípio, ele visa à ancoragem espaço-temporal a partir de uma narrativa – que poderíamos chamar de “histórica” – em terceira pessoa e no tempo presente. Este, por assim dizer, situa o leitor e presentifica a situação, o que normalmente não ocorre na narrativa histórica:
No dia 19 de setembro de 1835 eclode a Revolução Farroupilha no Continente de São Pedro do Rio Grande. Os revolucionários exigem a deposição imediata do presidente da província, Fernandes Braga, e uma nova política para o charque nacional, que vinha sendo taxado pelo governo, ao mesmo tempo em que era reduzida a tarifa de importação do produto.
O exército farroupilha, liderado por Bento Gonçalves da Silva, expulsa as tropas legalistas e entra na cidade de Porto Alegre no dia 21 de setembro.
A longa guerra começa no pampa.
Antes de partir à frente de seus exércitos, Bento Gonçalves manda reunir as mulheres da família numa estância à beira do Rio Camaquã, a Estância da Barra. Um lugar protegido, de difícil acesso. É lá que as sete parentas e os quatro filhos pequenos de Bento Gonçalves devem esperar o desfecho da Grande Revolução. (Wierzchowski, 2002, p. 9)
Já os “Cadernos de Manuela” (Wierzchowski, 2002, p. 11-14), inicialmente, têm por função instaurar o foco narrativo, ou seja, o olhar de Manuela, narradora-protagonista do romance e sobrinha de Bento Gonçalves, que inicia sua narrativa em primeira pessoa, e que relata em forma de diário suas impressões a partir da ceia de Ano Novo com a chegada de 1835, quando a família se reuniu para comemorar a passagem do ano:
[...] minhas duas irmãs, Antônio, meu irmão mais velho, o pai, a mãe, D. Ana, minha tia, acompanhada de seu marido e dos dois filhos barulhentos e alegres, meu tio, Bento Gonçalves, sua mulher de lindos olhos verdes, Caetana, a prima Perpétua e meus três primos mais velhos, Bento Filho, Caetano e, à minha frente, olhando-me de soslaio de quando em quando, com os mesmos pequenos olhos ardentes do pai, Joaquim, a quem eu fora prometida ainda menina, [...] Os filhos pequenos de meu tio Bento e de sua esposa estavam lá para dentro, com as negras e as amas [...] (Wierzchowski, 2002, p. 12).
No apontamento de Manuela por ocasião da cena da ceia de Ano Novo, um aspecto genuinamente literário atribui-lhe um caráter que diferencia a narrativa ficcional da narrativa histórica: o emprego recorrente de figuras de linguagem: o ano de 1835 “em seu rastro luminoso de cometa” (Wierzchowski, 2002, p. 11); o soar das badaladas do relógio “cortando a noite fresca e estrelada como uma faca que penetra na carne tenra e macia de um animalzinho indefeso” (p. 11), “Quando o relógio cessou de soar o seu grito” (p. 11), “quando do relógio não mais se ouvia um suspiro ou lamento” (p. 11), “o ano de 1835 veio pousar entre nós” (p. 12), “a voz de minha irmã Rosário levou embora de meus ouvidos o sopro cruel do vento de inverno” (p. 13), “donde podia ver a noite calma, o céu estrelado e límpido que se abria sobre tudo, campo e casa, derramando no mundo uma luz mortiça e lunar” (p. 13-14), onde se lê, ainda,
[o] ano de 1835 estava entre nós como uma alma, a barra de suas saias alvas acarinhava minha face como um sopro; 1835 com suas promessas e com todo o medo e a angústia de seus dias ainda sendo feitos na oficina da vida. Nenhum dos que ali estavam sequer viu o seu vulto ou ouviu sua voz de mistério, abafada constantemente pelos ruídos dos talheres e pelos risos (Wierzchowski, 2002, p. 13)
Com isso, a personagem Manuela, de início, não só é construída pela própria narrativa como alguém que escreve com competência, como também uma pessoa de extrema sensibilidade diante dos acontecimentos que estariam por vir naquele ano de 1835, a despeito do comportamento, aparentemente, indiferente daqueles que a rodeiam. Grito, dor, lamento, angústia, crueldade, violência: esses são os traços que emanam da natureza, dos objetos e das ações à sua volta. E como mulher, Manuela descreve as mulheres de sua família dentro de uma estrutura patriarcal, divididas entre os afazeres diários no cuidado com a casa e os filhos e das preocupações com os homens:
As mulheres ocupavam-se com seus assuntos menores, seus anseios, não reles em tamanho, pois dessa delicada fímbria feminina é que são feitas as famílias e, por conseguinte, a vida; falavam dos filhos, do calor, do verão, dos partos recentes; tinham um olho posto nas conversas, os risos doces, a alegria; porém, com o outro, fitavam seus homens: tudo o que lhes faltasse, de comer ou de beber, do corpo ou da alma, eram elas que proviam. (Wierzchowski, 2002, p. 12-13)
Todavia, a descrição da cena da ceia no relato de Manuela é invadida por imagens visionárias que antecipam acontecimentos que estão por vir naqueles fatídicos anos de guerra. A sobrinha de Bento Gonçalves tem visões de Giuseppe Garibaldi e da guerra:
À minha frente, Joaquim sorria, contava um caso do Rio de Janeiro com sua voz alegre de moço. Sob a névoa dos meus olhos, eu mal podia percebê-lo. Via, isso sim, agarrado ao mastro de um navio, um outro homem, mais velho, de cabelos muito loiros, não negros como os de meu primo, de olhos doces. E via as ondas, a água salgada comprimia minha garganta, afogando-me de susto. E via sangue, um mar de sangue, e o minuano começou então a soprar somente para os meus ouvidos. O vulto do novo ano, pálido e feminil, estendeu então sua mão de longos dedos. Pude ouvi-lo dizendo que eu fosse para a varanda, ver o céu.
[...] E foi então que vi, para as bandas do oriente, a estrela que descia num rastro de fogo vermelho. E não era o boitatá que vinha buscar meus olhos arregalados, era sangue, sangue morno e vivo que tingia o céu do Rio Grande, sangue espesso e jovem de sonhos e de coragem. Um gosto amargo inundou minha boca e tive medo de morrer ali, postada naquela varanda, aos primeiros minutos do ano novo.
[...] A estrela de sangue confidenciou-me este terrível segredo. 1835 abria suas asas, ai de nós, ai do Rio Grande. [...], como um pássaro negro que pousa numa janela, trazendo sua inocência e seus agouros. [...] (Wierzchowski, 2002, p. 13-14)
Além disso, através de seu relato, Manuela diferencia a si dos demais que estão ceando pela consciência que tem de enxergar o que os outros não vêem: “Só eu, sentada em minha cadeira, ereta, mais silenciosa do que de costume, somente eu, a mais moça das mulheres daquela mesa, pude ver um pouco do que nos aguardava” (Wierzchowski, 2002, p. 13); e, prosseguindo, se indaga: “Como não percebem?, foi o que pensei com toda a força da minha alma” (p. 14); e lê-se, ainda: “Dentro da casa, a festa prosseguia, alegre. Eram quinze pessoas em torno da mesa posta, e nenhuma delas viu o que eu vi. Foi por isso que, desde essa primeira noite, eu já sabia de tudo” (p. 14).
Sem dúvida, podemos afirmar que as imagens visionárias trazem implicações para a narrativa em relação ao eixo temporal. O olhar de Manuela se projeta do presente ao futuro, de modo que se expressa, por exemplo, como se ela olhasse de um ponto no tempo que ainda não aconteceu, “ao ver uma fresta do futuro...” (Wierzchowski, 2002, p. 14). Ao construir sua narradora-protagonista dotada desse dom, a escritora Letícia Wierzchowski lança mão de estratégias eminentemente ficcionais que afastam a narrativa do discurso histórico. Além das visões nefastas, o temperamento melancólico de Manuela permite ao leitor um olhar diferenciado – diríamos, irrequieto e insatisfeito – diante do que transcorre a sua volta. Não é por acaso que, justamente, Manuela irá se rebelar contra os ditames de sua mãe, D. Maria Manuela, com relação à insistência de que ela se case com o primo Joaquim, filho de Bento Gonçalves, e abandone de vez a paixão que sente por Garibaldi.
Em outro apontamento dos “Cadernos de Manuela” (Wierzchowski, 2002, p. 35-37), datado de 21 de setembro de 1835, surge o tema da espera, por ocasião do testemunho de Manuela da cena do almoço, quando ficou observando a tia Caetana, esposa de Bento Gonçalves:
Tive vontades de sentar ao seu lado e de dizer-lhe que também eu sei do que ela sabe. Sim, pois ela sabe... Ficaremos aqui muito tempo. Mais tempo do que qualquer uma de nós possa imaginar. Ficaremos aqui esperando, esperando, esperando. Da estrela de fogo que vi na noite do novo ano, não falei a ninguém, mas tenho seu recado marcado a ferro em minha alma. (Wierzchowski, 2002, p. 36)
Para a sobrinha de Bento Gonçalves, a imposição dos homens traz o sofrimento a todos, indiscriminadamente. A aparente proteção na Estância da Barra não impede que Manuela reflita sobre a insensatez da guerra e dos anos perdidos com uma vida de violência e de privações para todos, em que as mulheres também tinham um quinhão de sofrimento a pagar:
Sim, sempre os homens se vão, para as suas guerras, para as suas lides, para conquistar novas terras, para abrir os túmulos e enterrar os mortos. As mulheres é que ficam, é que aguardam. Nove meses, uma vida inteira. Arrastando os dias feito móveis velhos, as mulheres aguardam... Como um muro, é assim que uma mulher do pampa espera pelo seu homem. Que nenhuma tempestade a derrube, que nenhum vento a vergue, o seu homem haverá de necessitar de uma sombra quando voltar para a casa, se voltar para a casa... (Wierzchowski, 2002, p. 72)
Nesse sentido, Manuela apresenta em seus “cadernos” o sofrimento das mulheres da família: “Minhas irmãs, por certo, ririam de mim. Dizem-me densa. Densa como a cerração que cobre estes campos ao alvorecer, um manto opaco de água condensada, um manto, talvez, de lágrimas, lágrimas choradas pelas mulheres daqui, por Caetana, quem sabe”. (Wierzchowski, 2002, p. 36) E Manuela ressalta a incomunicabilidade entre as mulheres quando o assunto são os seus próprios sofrimentos: “Mas ninguém terá coragem de formular a pergunta, a terrível pergunta, e os segundos passarão por nós com suas lâminas afiadas de tempo, sem que ninguém interrompa o bordado ou a leitura por mais de um momento que seja, um momento imperceptível. A arte de sofrer é inconsciente... E é preciso fingir que se vive, é preciso”. (Wierzchowski, 2002, p. 36)
Além disso, os cadernos são para Manuela um modo de preencher o tempo de espera e também para que ela preste testemunho da vida das mulheres em tempo de guerra, mesmo que seja apenas para sua própria leitura no futuro: “[...] risadas chegam da sala. E eu estou aqui, quieta, escrevendo estas linhas. Para quem? Para que eu as leia, anos mais tarde, e lembre deste tempo aqui na Barra, destes dias silenciosos que gastamos esperando à beira do Camaquã? Não sei por que escrevo, mas algo me impele, uma vontade toma meus dedos, empurra a pena para a frente...” (Wierzchowski, 2002, p. 71-72).
Sem dúvida, enquanto unidades textuais dentro do próprio romance, os “Cadernos de Manuela” proporcionam ao leitor o olhar de uma de suas protagonistas, fundamental no processo de releitura ficcional da Guerra dos Farrapos. Eles funcionam como uma espécie de “fio condutor” que, ao mesmo tempo, une e polemiza com os demais segmentos que compõem o romance, ou seja, as cartas e os relatos. Mas isso não significa que os relatos através de uma instância narrativa em terceira pessoa do singular, que compõem cada capítulo, sejam alheios a esse olhar. Podemos constatar esse aspecto na seguinte passagem, em que o ato de tecer é aplicado metaforicamente à natureza:
Na manhã do dia dezenove de setembro daquele ano, sob um céu tão azul e plácido onde, ora aqui, ora ali, finíssimas nuvens de renda branca repousavam, isto formando um conjunto tão delicado quanto o de uma rica toalha de mesa bordada por hábeis dedos e estendida sobre tudo, arvoredo, rios, açudes, bois e casario, a Estância da Barra estava em polvorosa. (Wierzchowski, 2002, p. 17)
Entretanto, em certos momentos ao longo do romance, nota-se uma diferenciação entre a voz narrativa em terceira pessoa e o relato de Manuela em seus cadernos. Na passagem em que Perpétua, prima de Manuela e filha de Bento Gonçalves, é apresentada ao leitor, estabelece-se uma diferenciação da voz narrativa em relação à Manuela e suas “visões”:
Não imaginava ela [i.e., Perpétua] o que o futuro estava reservando à província, nem nenhuma das mulheres o imaginava naquele princípio manso de primavera nos pampas. Perpétua Garcia Gonçalves da Silva tinha esperanças de que o verão já lhes trouxesse a paz. A paz e a vitória. E os bailes elegantes onde desfilaria os vestidos vindos de Buenos Aires e os sapatos de veludo que mandara buscar na Corte. (Wierzchowski, 2002, p. 25)
Em contrapartida, Manuela não só o imaginava como tinha visões sobre o futuro de violência, sangue e sofrimento que se abateria sobre o Rio Grande nos próximos dez anos. Porém, em outros momentos do romance, parece haver uma contradição, na medida em que a instância narrativa se apresenta onisciente, inclusive em relação às visões de Manuela: “Manuela, da sua cadeira, olhava os rostos das tias e da mãe. Sabia o que iriam ouvir, sempre soubera, desde aquela noite... Nunca mais tinha visto a estrela de fogo no céu, mas não pudera esquecê-la. E nem seu rastro, seu rastro de sangue”. (Wierzchowski, 2002, p. 87)
Por sua vez, as visões da guerra por parte daquelas que aguardam seus pais, tios, maridos e filhos são as mais diversas: na visão de D. Antônia, viúva e irmã de Bento Gonçalves, embora a guerra lhe cause “um longo arrepio”, o fato de o irmão ter declarado guerra ao império “a enchia de aflição e de orgulho” (Wierzchowski, 2002, p. 19); já para D. Ana, também irmã do líder farroupilha, a guerra era tempo de sofrimento, de tristeza e de rezas:
Teriam pela frente muitos dias de angústia, à espera de uma notícia, de boa sorte ou de malogro, e então, só então, se fosse o caso, viria a tristeza estar com elas. A tristeza serena que era companheira constante das mulheres do pampa. Sim, pois não havia uma mulher que não tivesse passado pela espera de uma guerra, que não tivesse rezado uma novena pelo marido, acendido uma vela pelo filho ou pelo pai. Sua mãe conhecera a angústia de espera, e antes dela sua avó e sua bisavó... (Wierzchowski, 2002, p. 28)
Entretanto, Manuela não é a única que tem visões, se bem que as suas são de outra ordem, premonitórias. Sua irmã Rosário também tem visões de Esteban, oficial do exército imperial, que a salvou de ser violentada por soldados de seu exército, e por quem Rosário se apaixonou. Após ser ferido mortalmente, Esteban aparece para Rosário em plena estância:
Seus olhos azuis vêem, encostado à estante, o vulto do jovem oficial. Ele não se mexe. Uma bandagem ensangüentada cobre sua testa, e ele está pálido feito as mãos de Rosário, feito a parede que segura a estante. Está lívido, mas sorri. [...] Está assustada, seu corpo não obedece, o cheiro de flores a sufoca, um homem entrou no gabinete sem que fosse convidado, um estranho, um jovem estranho, é verdade, um belo oficial de algum exército desconhecido que lhe fala castelhano. (Wierzchowski, 2002, p. 49)
O delírio de Rosário a leva a degolar Regente, por acreditar que o cãozinho de Manuela perseguia Steban no jardim da estância (Wierzchowski, 2002, p. 397). Por suas atitudes, Rosário seria castigada e enviada a um convento a mando da mãe, D. Maria Manuela, onde morreu em 1845: “A pobre Rosário faleceu com a República que ela mesma tantas vezes reprovou” (2002, p. 328).
Além disso, assim como havíamos constatado um processo de “humanização” em relação à construção da personagem histórica do general Antônio da Souza Netto no romance Netto Perde sua Alma, verificamos o mesmo procedimento em relação à construção das personagens históricas em A Casa das Sete Mulheres. Na passagem a seguir Bento Gonçalves sente-se cansado, abatido e desgostoso pelos rumos da guerra, longe do aconchego do lar:
Essas últimas palavras ficam latejando por muitas horas na sua cabeça. Não haverá a paz. Ainda morrerão muitos, ainda se derramará sangue, embora o povo já esteja cansado de tantas pelejas. Bento Gonçalves da Silva sente o cansaço como uma coisa palpável, há um mundo sobre suas costas exaustas, um mundo ensangüentado e hostil. A febre lhe vem outra vez, grácil como uma cobra, esquiva, devastadora. E ele sente saudades de casa, do abraço morno de Caetana, das longas e silenciosas tardes de inverno da estância. (Wierzchowski, 2002, p. 367-368)
Num de seus vários apontamentos, já no ano de 1890, Manuela reflete sobre o tio e sua imagem derrotada, nada adequada ao mito em torno de sua figura: “Bento Gonçalves da Silva não era perene, não era um deus e nem possuía qualquer arremedo de divindade – era como nós, mortal, sofredor, um iludido com a vida” (Wierzchowski, 2002, p. 476).
Aliás, através dos “Cadernos de Manuela”, o romance A Casa das Sete Mulheres se entretece a partir de um contínuo jogo de flashback e flash forward, em saltos temporais em retrocesso ou avanço, ou mesmo em adensamentos. E, posteriormente, eles surgem também como releitura, pois, no passado, após a frustração em sua relação amorosa com Giuseppe Garibaldi, num rompante de fúria, Manuela quisera destruir os cadernos, mas foi impedida de tal ato pela irmã, Mariana, que guardou os cadernos e os devolveu aos poucos, décadas depois. Relendo-os, a sobrinha de Bento Gonçalves pouco se reconhecia: “Eu os lia como se não tivessem saído das minhas mãos, linhas traçadas por outra mulher, uma que acreditava no amor, no futuro. Não eu, moça sem horizontes, inundada de saudades que nunca haveriam de se aplacar”. (Wierzchowski, 2002, p. 477) Para Manuela, restaram apenas as lembranças daqueles tempos de revolução nos pampas: “Hoje, sou velha, velha o bastante para contar da Revolução Farroupilha para quem não a viveu e pouco sabe daquele tempo. Hoje sou feita de lembranças. As pessoas me apontam na rua, sou como uma lenda, uma coisa entre o grotesco e o misterioso: a ‘noiva’ de Garibaldi. O quase. Sou aquela que não se concretizou.” (2002, p. 478)
Mas os “Cadernos de Manuela”, por assim dizer, “documentam” não só o seu sofrimento e suas decepções durante a guerra, ou mesmo o sofrimento das mulheres na Estância da Barra com a derrota iminente, como também o sofrimento dos outros. Um exemplo singular é o massacre de negros do Corpo de Lanceiros que combatiam sob o comando de Netto na batalha do Cerro dos Porongos, em 14 de novembro 1844, evento histórico e exemplo da barbárie (Telles, 2004, p. 88-89), notadamente o único momento ao longo romance, em que as personagens negras recebem voz através dos apontamentos da sobrinha de Bento Gonçalves:
A batalha de Porongos foi a última grande tragédia daquela guerra. Não recordo se chorei por essa notícia. Havia já então um adormecimento em minha alma, tantas as tristezas que havíamos passado. Mas lembro que Zefina, criada de D. Ana, sentou no quintal e se lanhou e gritou por um dia inteiro. Tinha um irmão lutando com o coronel Teixeira. Um irmão moço, de dezenove anos, que lutava pela sua liberdade. Morreu em Porongos. Não recebeu nem um punhado de terra sobre a cabeça. (Wierzchowski, 2002, p. 498)
Sem dúvida, a série de passagens do romance, aqui analisadas, demonstra que a obra de Letícia Wierzchowski contribui decisivamente para a apresentação ficcional da Guerra dos Farrapos a partir da perspectiva das mulheres como elemento estruturante da narrativa, através de um olhar, muitas vezes, à margem, seja espacial ou socialmente.

5. Considerações Finais
Releituras ficcionais contemporâneas da Guerra dos Farrapos demonstram certas intenções em relação ao presente. Podemos subsumir essas intenções em relação às obras analisadas mais detidamente neste breve estudo a, especificamente, duas: no romance Netto Perde sua Alma, Tabajara Ruas, por assim dizer, desconstrói o mito em torno de uma das principais figuras do exército farroupilha, tornando-o humano com suas fraquezas, medos e incertezas; no romance A Casa das Sete Mulheres, Letícia Wierzchowski investe no olhar feminino em relação à guerra, geralmente, ausente em relatos ufanistas em torno da “Revolução Farroupilha”. E em ambas as obras, seus autores transmitem uma postura crítica em relação à insensatez da guerra.
Outro aspecto a se destacar com relação às obras de Tabajara Ruas e de Letícia Wierzchowski é o fato de que, em ambas, seus autores lançam mão do onírico – os delírios de Netto e, respectivamente, as visões de Manuela –, estratégia eminentemente ficcional que afasta toda a possibilidade de um relato tradicional, colado ao discurso histórico. Além disso, o jogo temporal em forma de flashbacks e flash forwards, presente em Netto Perde sua Alma e A Casa das Sete Mulheres, também colabora para essa quebra com o relato tradicional.
Por fim, ressaltamos a relevância de obras como as de Tabajara Ruas e de Letícia Wierzchowski, por se tratarem de exemplos inequívocos não só da possibilidade de se propor releituras ficcionais de eventos históricos, muitas vezes traumáticos como uma guerra, como também da premência desse tipo de procedimento literário frente aos silenciamentos, apagamentos, interdições, rasuras e mitificações presentes nos discursos hegemônicos em nosso Continente.

6. Referências Bibliográficas

6.1. Literatura Primária

ALENCAR, José de. O Gaúcho. Porto Alegre: L&PM, 1999.
LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos & Lendas do Sul. Porto Alegre: L&PM, 2002.
RUAS, Tabajara. A Carga dos Lanceiros. Os varões assinalados III, Porto Alegre: L&PM, 2005.
RUAS, Tabajara. A República de Anita. Os varões assinalados II, Porto Alegre: L&PM, 2005.
RUAS, Tabajara. Netto Perde sua Alma. Rio de Janeiro: Record, 2001.
RUAS, Tabajara. O País dos Centauros. Os varões assinalados I, Porto Alegre: L&PM, 2005.
VERÍSSIMO, Érico. Um Certo Capitão Rodrigo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WIERZCHOWSKI, Letícia. A Casa das Sete Mulheres. Rio de Janeiro: Record, 2002.
WIERZCHOWSKI, Letícia. Um Farol no Pampa. Rio de Janeiro: Record, 2004.

6.2. Literatura Subsidiária

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed., trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-232. – (Obras escolhidas; v. 1)
DUTRA, Elaine de Freitas. Memórias do cárcere: do livro ao filme, do filme à História. In: FERREIRA, Jorge Luiz; SOARES, Mariza de Carvalho (Orgs.). A História vai ao Cinema. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 147-160.
FAGUNDES, Antonio Augusto. Revolução Farroupilha: Cronologia do Decênio Heróico. 1835 à 1845. 2. ed., Porto Alegre: Martins Livreiro, 2003.
FREITAS, Maria Teresa de. Das relações entre Literatura e História. In: SOUZA, Eneida Maria de; PINTO, Julio C. M. (Orgs.). 1º e 2º Simpósios de Literatura Comparada. v. 2, Belo Horizonte: UFMG, 1987, p. 605-609.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo. 3. ed., São Paulo: Ática, 1987.
MATUTE, Álvaro. História y Literatura: nexo y deslinde. In: SERNA, Jorge Ruedas de la (Org.). História e Literatura: Homenagem a Antonio Cândido. Campinas, SP: Editora da Unicamp, Fundação Memorial da América Latina; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003, p. 385-395.
NUNES, Benedito. Narrativa histórica e narrativa ficcional. In: RIEDEL, Dirce Cortês (Org.). Narrativa: Ficção e História. Rio de Janeiro: Imago, 1988. p. 9-35.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. A Revolução Farroupilha. 3. ed., São Paulo: Brasiliense, 1990. (tudo é história; v. 101)
SCLIAR, Moacyr. A imaginação deve voar. Estado de Minas, 05 Jun. 2005, p. 5.
SOUZA JÚNIOR, José Luiz Foureaux. O narrador, a literatura e a História: questões críticas. In: BÖECHAT, Maria Cecília Bruzzi; OLIVEIRA, Paulo Motta; OLIVEIRA, Silvana Maria Pessoa de (Orgs.). Romance Histórico. Recorrências e Transformações. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2000, p. 27-44.
TELLES, Jorge. Farrapos: a guerra que perdemos. 2. ed., Porto Alegre: Martins Livreiro, 2004.


1 Professor de Língua e Literatura Alemã (graduação) e de Teoria da Literatura e Literatura Comparada (pós-graduação) na Faculdade de Letras da UFMG; membro do Grupo Integrado de Pesquisa “Literatura e Autoritarismo” (UFSM) desde 2000, e do Núcleo de Estudos sobre Guerra e Literatura (UFMG) desde 2009; e-mail: cornelsen@letras.ufmg.br
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