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Literatura e Autoritarismo
Processos de identificação e políticas da (in)diferença
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 18 

CULTURA E IDENTIDADE: A FORMAÇÂO DOS SUJEITOS A PARTIR DA INTERAÇÃO ENTRE “EU” E O “OUTRO” NA OBRA “CASTELO BRANCO”

João Paulo Pereira Coelho1
Resumo: A partir de uma abordagem literária, o presente texto pretende estabelecer algumas considerações reflexivas acerca da obra Castelo Branco, de Orhan Pamuk. Para isso, o mesmo foi norteado a partir da discussão acerca do processo de compartilhamento das diferenças entre “Eu” e o “Outro”, e as implicações dessa interação para a composição da identidade do sujeito. Para dar encaminhamento a essa questão, buscou-se estabelecer um diálogo entre as discussões acerca das representações sociais nos sujeitos propostas por Sandra Jochlovitch e Jean Piaget. A partir desse aporte teórico pode-se compreender que uma reflexão acerca da obra “Castelo Branco” é um exercício que vai ao encontro da complexidade dos processos de interação e produção de conhecimento.
Palavras-chave: Cultura; Formação do sujeito; Identidade; Alteridade; Literatura
Abstract: From an essayst approach, the present text intends establish some reflective considerations about the work Castelo Branco, of Orhan Pamuk. Thus, the work was guided from the debate about the process of sharing from the differences between “me” and “another”, and the implications of this interaction to the composition of subject’s identity. To give a north to these questions, it searched establishes a dialogue about the social representation in the subjects which were purposed by Sandra Jochlovitch and Jean Piaget. From this theorist contribution can comprehends that a reflection about the work “Castelo Branco” is a exercise that goes to the meeting of the complexity from process of interaction and knowledge production
Keywords: Culture; Subject’s Formation; Identity; Recognition of another; Literature

1. Introdução
A leitura da obra “Castelo Branco”2 leva o leitor a um exercício de reflexão acerca do processo de composição da identidade do sujeito. Na obra, esse é um debate que aflora em um cenário em que múltiplos sujeitos são postos, arbitrariamente, no mesmo espaço de convívio social. Hoja e seu escravo veneziano pertencem a universos sócio-culturais bastante distintos. O que leva os dois personagens a estabelecerem um processo de estranhamento e negação recíproca da perspectiva pela qual o outro constrói suas representações sociais. Um cenário em que o convívio diário irá fomentar tensão e questionamento de suas respectivas identidades: Quem sou eu? Quem é o outro? Em que medida o saber do outro pode influenciar na configuração da minha identidade?

1.2. A construção dos sujeitos a partir do compartilhamento das diferenças
Observa-se que o veneziano passa a vivenciar tais questionamentos quando o navio em que viajava é atacado por conquistadores turcos. A aproximação dos navios turcos anunciam que a sua identidade – que em sua percepção era algo já cristalizado – seria confrontada com condições de privação da liberdade; fazendo-o refletir acerca de sua existência quando privado desse valor tão caro à composição de seu “Eu”.
À medida que a rendição de seu navio se tornava iminente, os escravos turcos - que até então eram usados como remadores na viagem - percebiam que o posicionamento dos sujeitos na esfera pública seriam reconfigurados a partir da inversão da condição de escravizador/escravizado que se anunciava. O veneziano, a principio parece acatar essa mudança fazendo arranjos em sua própria identidade: Como anunciar seu “eu” frente ao outro, diante desses novos padrões de sociabilidade que lhe serão impostos? Se em um primeiro momento a disposição do venezianoem estabelecer identificação frente ao outro parece uma tentativa de aproximação, no decorrer da obra percebe-se que na verdade, essa era, primeiramente, uma ação em favor de sua auto-preservação.
Diante dessas circunstâncias, ele procura cristalizar a sua postura de sujeito centrado, resguardando em suas lembranças a condição de homem veneziano; partindo de uma perspectiva de negação da múltiplcidade de possibilidades dos arranjos sociais que se anunciavam. Contrapondo-se a qualquer perspectiva de abertura ao outro, o veneziano delimita sua identidade como um valor permanente e estático:
Quando eles chegassem (os turcos conquistadores) (que)não pensasse neles nem nas humilhações que me fariam sofrer; queria lembrar-me apenas das cores do meu passado, como nos lembramos pela vida afora das palavras mais queridas de um livro que decoramos de tanto amá-lo. (PAMUK,2007, p.16)
À medida que tomava consciência de sua condição de estrangeiro prisioneiro em terras estranhas, o veneziano principia a estabelecer uma negociação com a sua própria identidade: Ele é um prisioneiro e a sua condição não é tão provisória quanto esperava. Diante dessas circunstâncias, era necessário, em certa medida, aproximar-se do outro; mas desde que isso, ao seu ver, não o descaracterizasse como veneziano. Ter sua identidade preservada seria primeiramente salvaguardar a composição de sua identidade centrada; aquilo que estava estabelecido em sua cultura e em seu meio social.
Talvez seja essa percepção que tenha feito o veneziano resistir bravamente à conversão ao Islamismo. De modo geral, ele não era uma pessoa religiosa, e mesmo diante das circunstâncias de sua provável morte, ele não recorre àquele sofrimento com o clamor característico de um “bom cristão”: salvação e redenção divina. Em outras palavras, resistir à conversão - para o veneziano - era resistir primeiramente à dissolução de sua identidade.
Converter se ao islã era se “render ao que comumente os que estavam a sua volta definiam como identidade: ser igual; o que, parao veneziano, seria ser igual aos turcos. É necessário reiterar que, embora promovesse arranjos em suas vivências sociais diárias, esse ato não se pautava simplesmente na aproximação “passiva” da cultura do outro. Esse seria um processo que, para o veneziano, acabaria por dissolver por completo sua “verdadeira identidade”.
Diante disso, o veneziano buscava manter a consciência de que era diferente. Uma consciência de diferença que, para ele, não era sinônimo de exclusão; pelo contrário, esse estranhamento garantiria que sua identidade fosse resguardada para quando fosse retomar a sua antiga vida em Veneza.
Estabelece-se, portanto, um processo de estranhamento e tensionamento a partir da perspectiva de um sujeito centrado. Desencadeando uma veemente negação das vivências sociais e culturais que o rodeiam. Um processo dificulta o estabelecimento de trocas entre o “Eu” e o “Outro” (JOVCHELOVITCH, 2008).Em outras palavras, mesmo diante da materialidade das circunstâncias que apontavam a sua permanência em Estambul, ele busca permanecer como o outro: um homem cristão veneziano.
Observa-se que Hoja tem uma compreensão bastante distinta acerca do papel das diferenças no contexto de formação dos sujeitos; delimitando- as como fomentadoras de diálogo. Talvez essa percepção da diferença como promotora do tensionamento e da promoção dos sujeitos, (quando possível estabelecer trocas) tenha feito com que Hoja se interessasse pelo escravo veneziano, levando-o a salvá-lo da morte. Hoja havia compreendido a firmeza do estrangeiro quanto à busca pela preservação de sua posição de estranhamento frente ao outro. Ao ponto de desconfiar previamente que o veneziano não abandonaria a sua fé. Por isso interveio em favor do estrangeiro, fazendo dele, seu escravo doméstico.
O escravo veneziano seria seu “experimento social”, o meio pelo qual poderia estabelecer diálogo com o outro: Quem seria esse sujeito que lhe causava tanta estranheza, mas ao mesmo tempo, uma (in)disfarçada admiração?
Percebe-se ainda que Hoja é uma pessoa reclusa, que não se casou e dedica sua vida à ciência. Seus experimentos e criações são objeto de estranhamento daqueles que o rodeiam. Hoja, não se vê compreendido pelo mundo. Não entendem as finalidades dos objetos que cria, e também não compreendem suas aspirações astronômicas ou filosóficas. Dessa forma, percebe se que a partir do conceito de esfera social (tradicional) Hoja se estabelece como o “outro” em seu próprio meio social.
Assim como seu escravo veneziano, pode-se considerar que esse estranhamento de Hoja em seu próprio meio social resulta da sua condição de sujeito centrado. Promovendo nele a dificuldade em ir ao encontro do pensamento do outro, (MOSCOVICI, 2003) levando-o a taxar os que o cercam de “idiotas”.
Estou pensando nesses imbecis. Por que eles são tão idiotas? Em seguida como se já soubesse qual seria a minha resposta acrecentou: Está bem. Digamos que não são tão idiotas, mas que só está faltando alguma coisa na cabeça deles (PAMUK, 2007, p.55)
Todos aqueles a sua volta eram na verdade limitadores da sua inteligência, pois não detinham capacidade de compreendê-lo, tampouco acrescentar conhecimentos a sua formação. Percebemos que Hoja não concebe a inteligência como um processo de adaptação ao meio. Observamos ao longo da obra que Hoja cresceu acumulando informações, sem buscar agregar às suas ideias a possibilidade de troca de inteligências (PIAGET, 1978). Assim, Hoja atingiu a maturidade com dificuldade de estabelecer um processo de assimilação, acomodação e equilibração das ideias que são apresentadas mesmo pelos seus “iguais”.
Observa-se ainda certo desdém de Hoja quando se refere àqueles que o cercam, motivado por aquilo que ele considera como “falta de espírito curioso” (PAMUK, 2007, p. 93). Talvez a partir do convívio com um diferente – como ele – pudesse desencadear um processo de trocas de conhecimento mais profícuo.
Por mais que tenha se instalado desde o inicio um cenário de rejeição mútua, Hoja e seu agora escravo veneziano observaram reciprocamente certas aproximações: são extremamente parecidos fisicamente, buscam o conhecimento, e também estabelecem uma relação de estranhamento com o mundo que os rodeiam.
A partir dessas “aproximações” Hoja tinha a expectativa de instigar a interação com o outro, buscando desencadear, por meio do diálogo, o desejo de autoconhecer e ser (re) conhecido pelo outro. Algo que por não encontrava entre os seus:
Uma noite, os passos de Hoja fizeram ranger o piso da casa até o meu quarto, e, quando como se fizesse a mais comum das perguntas, ele me disse: “por que eu sou quem sou?, resolvi de repente estimulá-lo, e e tentei dar uma resposta. Depois de responder que não sabia por que ele era quem era, acrescentei que aquela era uma pergunta que os “outros” costumam fazer sempre, e Ada vez mais (PAMUK, 2007, p. 7)
A partir do excerto podemos reiterar que a condição de sujeito centrado, que permeia os personagens, acaba por dificultar a mobilidade e a fluência do diálogo proposto; pois o pensamento requer disposição ao movimento para se desenvolver (PIAGET, 1978). Contudo – embora tenha dificuldade de estabelecer esquemas para acomodar as ideias do outro - é necessário considerar que, nesse cenário, Hoja parece mais disposto a problematizar os argumentos apresentados pelo seu escravo veneziano.
O que o motivou a tê-lo como escravo foi justamente a possibilidade de retirar desse objeto de conhecimento àquilo que lhe pudesse suprir seus anseios intelectuais. Com isso a composição da identidade de Hoja passa a ter mais movimento, estabelecendo com o veneziano um processo de negação do outro, mas ao mesmo tempo – no decorrer da obra - também estabelece uma relação de alteridade.
Assim, entende-se que a resistência ao outro é mais “feroz” por parte do veneziano. Este, ao longo da obra – mesmo estando em condições sociais inferiores – se vê como sujeito detentor de uma formação cultural e religiosa superior a de Hoja.
Muitas vezes, essa inferioridade que o veneziano atribuiu a Hoja, é resultado do desarranjo de seus esquemas mentais de seu amo frente aos novos conhecimentos que lhes são apresentados. Mas esse é um obstáculo para o entendimento (equilibração) que Hoja procura vencer ao longo da obra:
(em Veneza) Não só os palácios de reis, príncipes e nobres, mas também as casas de pessoas comuns eram cheias de espelhos elegantes emoldurados e pendurados nas paredes. Não era apenas por isso que os “outros” progrediram na matéria, como também por pensar constantemente em si mesmo. “em qual matéria?”, perguntou ele, com uma inocência e ansiedade que me surpreenderam. Achei que ele levava a sério demais o que disse, mas em seguida ele sorriu e disse: “Quer dizer que eles passam o dia inteiro se olhando no espelho, desde manhã até a noite?”(PAMUK, 2007,p. 73)
O veneziano vê como um desrespeito aos seus, o comentário jocoso de Hoja sobre a vida rodeada de espelhos, sem perceber o quanto aquela situação ilustrada por ele poderia soar estranho aos conhecimentos do outro. Como o acima mencionado, nesse embate, qualquer esforço em direção ao outro é visto pelos personagens como um processo de negação de sua própria identidade. Mas “O que está em jogo quando encontramos o saber de outros, o raciocínio de outros?”(JOVCHELOVITCH, 2008, p. 212)
A questão fundamental a ser pensada é que a aproximação do outro é sempre um processo complexo. No cenário do livro essa complexidade toma maior vigor devido a composição dos papéis sociais serem configurados a partir da segregação e violência (física e simbólica) mútua. Por mais que trabalhassem conjuntamente, e que a sobrevivência de ambos dependesse da cooperação mútua, a obra evidencia representações que procuram ignorar e desconstruir mutuamente a perspectiva do outro (JOVCHELOVITCH, 2008).
A empreitada do escravo veneziano no decorrer da vida em cativeiro, vai de encontro a desconstrução da identidade do outro; ou seja, subjugá-lo não fisicamente, mas por meio do esfacelamento da identidade de seu amo; o veneziano se sentia confiante quando conseguia instaurar a insegurança acerca da condição e dos saberes de Hoja. Esse é um jogo de desconstrução do outro de forma recíproca, onde a insegurança acerca da identidade tende a se estabelecer para ambos os personagens no decorrer da obra.
Em um primeiro momento, o veneziano consegue se sobrepor a Hoja, quando este - em uma discussão acalorada - chama-o de covarde. Essa acusação leva Hoja a refletir acerca do papel que exerce em seu meio social, vindo à tona expectativas, frustrações. Tal atitude consegue desequilibrar a condição de “eu dominante” de Hoja frente o seu escravo veneziano.
Esse posicionamento levaria Hoja a castigá-lo, fazendo-o escrever sobre todas as suas fraquezas e pecados. Com esse ato, Hoja buscava a destruição das representações sociais que compunham a identidade do veneziano (refinamento, valentia, boa educação). Desse modo, na perspectiva de Hoja, poderia ser restabelecido o (re)equilíbrio de sua identidade, e por extensão, das relações de poder.
Contudo, tal exercício, guardava ainda uma nova reviravolta. Enquanto escreve seus pecados e falhas ao deleite da leitura de seu amo, o veneziano propõe um exercício a Hoja: Por que ele também não escreve sobre seus pecados? Vendo nessa proposta como um desafio, Hoja passa a escrever sobre suas falhas de caráter.
O veneziano acaba por não ler os pecados de seu amo, mas se delicia com a aflição de Hoja diante de tal exercício. Embora não tendo acesso ao que Hoja escreveu acerca de seu pecados, pode-se observar que esse exercício leva-o a reflexão: Será que sou mesmo um covarde ? Será que sou o que escolhi ser?
Com esse exercício de humilhação mútua, cada personagem evidenciam um embate entre a preservação da identidade (eu) e da subjugação e extermínio da perspectiva do outro. Um confronto em que impera em cada personagem “a onipotência do seu eu e seu programa narcisista” (JOVCHELOVITCH, 2008, p. 213), mas ir ao encontro do outro não é resultado da decisão consciente do sujeito (JOVCHELOVITCH, 1995). A composição social e biológica do individuo converge para esse estabelecimento do diálogo e tensão com o outro.
À medida que os anos passam, e a história do veneziano parece não mais comportar a ideia de liberdade e continuidade da vida com sua noiva em Veneza, observamos nele uma maior disposição em estabelecer trocas com a cultura local. As festas as quais passa a frequentar representando Hoja - quando este estava enfadado com a mesmice da vida social da corte - são enunciadas com satisfação; as mulheres, as comidas e a conversa com o sultão - o qual passara a respeitar pela sua inteligência e perspicácia - são fatores que denotam uma maior aproximação com a cultura do outro.
Essa assimilação parece ainda mais contrastante quando o veneziano aborda como tratava os europeus. As histórias que agora contava aos europeus não apresentam mais um prisioneiro em terra estranha. Ao ponto, de cultivar um certo desprezo pela curiosidade dos europeus acerca dos costumes locais. Em outras palavras, podemos observar que com o passar dos anos o veneziano não se anunciava mais como um escravo em busca de sua terra natal. Sua história enuncia agora a vida de um homem que fora escravo e sobreviveu aos intempéries dessa condição, até alcançar o posto que então exercia frente ao sultão e seu amo.
Contudo, é necessário avaliar mais detidamente essa relação que o veneziano passa a estabelecer com Hoja e com o espaço social que os circunda, à medida que envelhecem. Uma vez que o tempo avança, Hoja parece, na verdade, “absorver” a identidade do veneziano; que agora conhece a cultura local, e está habilitado para representá-lo junto ao sultão. Ou seja, o veneziano acaba por tornar o outro uma extensão do “Eu. (JOVCHELOVITCH, 1995.)
Quando os festejos anunciavam o cumprimento das previsões de Hoja sobre a peste, o veneziano busca participar daquele momento como “nossa” conquista. Mas, o escravo na verdade parece mais propenso a considerar que ele compartilhou aquela vitória com Hoja, do que reconhecer que real(i)mente aquele resultado fora o ponto culminante de um trabalho conjunto.
Hoja passa a ser paulatinamente reconhecido pela corte e pela sociedade, como uma extensão de Hoja. Seu mais novo projeto, que almejava produzir uma máquina de guerra invencível, é visto primeiramente como um projeto do veneziano- embora esse tenha se dedicado apenas às festas e comilanças.
Ao poucos, no fim da vida, Hoja parece não resistir mais a identificação que possui com o veneziano. Quando Hoja se refere aos dois em um sentido coletivo, “nos preservar” “nossos projetos”, já não está delineando os limites de cada um; esse processo se consolida, à medida que a sobrevivência de ambos passa ser questionada. A máquina de guerra construída não trouxe os resultados esperados em campo de batalha. Os soldados exigem que o veneziano (visto como mentor intelectual de Hoja) fosse sacrificado.
Inesperadamente, Hoja se dispõe a fugir, assumindo a identidade do veneziano. Em contrapartida, o veneziano passaria a viver como conselheiro do sultão. Nessas circunstâncias, o espírito fraternal do veneziano para com Hoja parece mais aflorado, pois já não ama mais o outro em suas diferenças. Na verdade ele ama Hoja à medida que este perde suas próprias referências sociais, e passa a vivenciar com o veneziano o sentido da sua própria vida. Assim sendo, o veneziano ama mais a Hoja à medida que esse processo se torna sinônimo de amar a si mesmo, pois já não existem limites ou resistência entre o “eu” e o “outro”.

2. Considerações finais
Ao término da leitura da obra fui levado a pensar sobre as perspectivas que poderia adotar para trabalhar a questão da identidade presente no livro “Castelo Branco”. A principio, problematizar o fato de que Hoja seja o único norteador da história pareceu-me um enfoque pertinente, mas se Hoja procurou escrever sua história sem anunciar previamente a perspectiva pela qual estava sendo contada, comunicar ao leitor tal perspectiva já no início do ensaio, não seria uma desconstrução das verdades que Hoja tão laboriosamente construiu para si?
Diante dessa questão, decidi por seguir a dinâmica da própria obra, ainda que isso significasse, em alguns aspectos, situar o leitor de modo mais descritivo acerca da história; buscando assim, não estabelecer as considerações a respeito do conceito de identidade presente na obra, de maneira desconectada da dinâmica da própria história dos personagens. Em outras palavras, busquei tecer as considerações acerca do livro a partir da cadência da própria narrativa, na tentativa de afastar-me do uso dos personagens apenas como um “pretexto” de discussão.
Nesse sentido, entendo que – assim como foi para Hoja – para escrever sobre a obra Castelo Branco” seria necessário estabelecer um exercício reflexivo acerca das possibilidades e contradições presentes na composição da identidade de todo sujeito (JOVCHELOVITCH, 1995).
Esse é um legado que Hoja nos deixa ao término da obra, uma vez que ele viveu em uma constante busca por transcender os limites (culturais, geográficos, estéticos,) impostos a sua própria condição. Portanto, ele busca justamente questionar as possibilidades de se viver de forma plena a partir das narrativas que lhes são (im)postas . Abordar a própria existência a partir da perspectiva do outro foi justamente um exercício que Hoja estabeleceu na tentativa de problematizar e maximizar seu universo de possibilidades.
Uma dinâmica em que Hoja faz com que os sujeitos sejam revelados em sua forma sempre inacabada (MOSCOVICI, 2003). Esse era o dilema acerca de sua identidade que Hoja parece elucidar ao fim de seus escritos: somos todos ensaios, projetos, possibilidades. A partir dessa inalienável condição de inacabado, somos livres para construirmos nossas narrativas sobre tudo aquilo que pode ajudar a nos completar; só não somos livres para deixar da busca por “acabar-se”. Mesmo que essa seja uma condição inalcançável.

Referências

JOVCHELOVITCH, S. O contexto do saber: representações, comunidade e cultura. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
JOVCHELOVITCH, S.Vivendo a vida com os outros: intersubjetividade, espaço público e representações sociais. In: Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1995.
MOSCOVICI,S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003.
PAMUK, O. O castelo branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.


1 Graduado em História e mestre em educação pelo “Programa de Mestrado em Educação “da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor universitário na área de História da Educação; Interdisciplinaridade FANP/FAAST. Tutor do curso de Pedagogia (UEM).
2 A obra foi escrita por Orhan Pamuk, escritor turco, nascido em 1952 em Istambul. Em 2006 recebeu o prêmio Nobel de Literatura.
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