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Literatura e Autoritarismo
Espaço urbano e experiências de desolação e violência
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 19 

APRESENTAÇÃO

Com o tema “Espaço urbano e experiências de desolação e violência” , este número propõe um olhar atento, a partir de textos literários e não literários, sobre maneiras de falar da cidade e de seus atores sociais diante dos dilemas e tensões do espaço global, da vulnerabilidade e incerteza das identidades sociais a constituir diferentes formulações de crise em nossa contemporaneidade.
Um dos principais motivos para o estabelecimento de cidades, ao longo da história ocidental, foi a necessidade de definir limites, com muros e fortalezas, para garantir a segurança de uma comunidade contra os seus inimigos, mantidos do lado de fora. Hoje, é do seu interior mesmo que se originam o terror e o medo onipresentes1. Esse estado de fragilidade dos sujeitos frente aos riscos sociais cotidianos é reforçado por determinada arquitetura de intimidação e isolamento a qual acentua a indiferença, a descontinuidade do contato humano e a falta de convivência prazerosa dos espaços. Intrinsecamente ambivalente, a realidade citadina expõe e dramatiza muitos dos aspectos não resolvidos em escala mundial, concretizados, por exemplo, nas imagens de superfluidade projetadas sobre sujeitos a experimentarem a fragilidade das relações socioeconômicas e a precariedade da condição humana. Frente a políticas de exclusão e distanciamento social, os sujeitos urbanos de hoje demonstram mais fortemente seus medos e respondem a essa inquietude com atos e gestos inúmeros de agressividade e violência.
Como a Literatura pode representar esses sujeitos que não se ligam a qualquer categoria estável, marcados como supérfluos e inúteis à engrenagem do progresso tecnológico e à configuração de um mundo cada vez mais virtual? Em seu artigo, “Sem trabalho, sem lugar: indivíduos supérfluos na sociedade contemporânea”, Darlan Roberto dos Santos discute exatamente sobre o desafio de o texto literário tratar dos “invisíveis sociais” a partir das obras de Rubem Fonseca. Na mesma linha de reflexão, José Sérgio Custódio, Ricardo Gomes da Silva e William André tratam dos outsiders, com o estudo da peça Éramos todos thunderbirds, do dramaturgo paranaense Mário Bortollotto. Segundo os autores, a presença de personagens que podem ser considerados como outsiders (figuras que se desviam das normas de conduta da sociedade) possibilita ao texto dramático uma espécie de “lirismo marginal”.
As cidades oferecem ainda imagens múltiplas de violência e dor registradas por câmeras e reproduzidas à exaustão pela mídia para incitar determinadas emoções nos espectadores, como já estudou Susan Sontag2. Mas, e a Literatura, como pode dar forma “sensível e inteligível ao horror e à barbárie sem estetizar a violência”? Esta pergunta é feita por André Bueno que reflete sobre o tema no artigo “Alguns contos de Julio Cortázar”, quando estuda ‘os estados de exceção’ nessa produção, em contraponto ao romance Libro de Manuel do mesmo autor.
Esses estados também motivam o artigo de Antonio Andrade ao analisar os movimentos históricos que tiveram lugar na Argentina e em Cuba, de 1960 a 1980. Examinando textos literários e não literários de Néstor Perlongher e Severo Sarduy, o autor problematiza como, nesse período, a repressão à homossexualidade caracteriza os discursos tanto de direita quanto da esquerda.
Na modernização da sociedade brasileira, do final do século XIX e início do século XX, as cidades já encenavam espetáculos de desencontro que matizavam de crítica e melancolia o otimismo do progresso e a promessa científica de felicidade para todos. Júlio França, em seu artigo sobre a representação do Rio de Janeiro em algumas crônicas de Raul Pompéia, busca demonstrar que a faceta decadentista dessas crônicas recupera o horrível e o trágico das cenas urbanas do Rio, desde 1880.
Em outro espaço, a vivência da periferia de São Paulo, nos anos 1920, e as relações entre as classes sociais é, segundo Wilson José Flores Jr., um aspecto central de Os contos de Belazarte, de Mário de Andrade, cujas personagens parecem fadadas à infelicidade, ao sofrimento e à injustiça. Já Victor Hugo Adler Pereira examina diferentes tendências na abordagem da violência urbana na Literatura Brasileira contemporânea e destaca, entre elas, o prestígio das tendências “perfomáticas” e “uma crise de desconfiança das normas de comportamento e das instituições públicas e de outros pilares da ordem social”.
E o canto da cidade ainda pode ser poesia?
No contexto contemporâneo de desolação, dissolução e violência, Marleide Anchieta indaga, em seu artigo, “como poderíamos definir essa violência que chega ao âmbito da linguagem?”, considerando um conjunto de obras poéticas produzidas em Portugal, a partir dos anos 90. Com esse artigo, podemos pensar o lugar que a poesia pode ocupar frente às tensões da cidade, talvez o de resistência, na partilha do sensível.
Com esses estudos, portanto, desejamos possibilitar aos leitores uma reflexão mais densa sobre nossa contemporaneidade e as experiências cotidianas de desfiguração, violência e desolação com que nos deparamos nas grandes cidades de hoje. O questionamento crítico desse quadro em ebulição e a vontade de confrontação talvez sejam os meios possíveis de compreender esse espaço polifacetado que habitamos.
Que as leituras provoquem essa discussão e respondam a essa demanda.

Carmem Negreiros
Ida Alves
(Organizadores)

1 Cf. BAUMAN, Zygmunt.Confiança e medo na cidade.Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2009.
2 Cf. SONTAG, S. Diante da dor dos outros. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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