Capa |  Editorial |  Sumário |  Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 7 

LUZ E SOMBRA: MEMÓRIAS DA REPRESSÃO

Nayara Nunes Salbego1


Este trabalho consiste em uma leitura do conto Luz e sombra, de Caio Fernando Abreu, publicado na antologia Morangos Mofados. Tal estudo tem o fito de desenvolver uma reflexão crítica acerca deste texto pautada na articulação texto literário X conteúdo social. Essa investigação enfoca elementos teóricos não só na área da literatura, mas também sobre história e sociedade. Nesses elementos, configura-se a crítica social da produção artística estudada e sua relação com o contexto de produção. O trabalho também contempla uma reflexão sobre o conflito interior do narrador, com bases na psicanálise, apontando sempre para o contexto histórico e social como principal motivo da repressão sofrida pelo protagonista.
No século XX, o autoritarismo figurou intensamente no campo político brasileiro. Com a ditadura militar (1964-1985), os cidadãos passam a ser vigiados, com liberdades limitadas, não podendo mostrar seu posicionamento e sua insatisfação diante da realidade de opressão e violência. Época também caracterizada pela intensa modernização que melhorou a vida da classe média alta com as tecnologias inovadoras. No entanto, esse "avanço" contribuiu com a marginalização social, pois quem não tinha poder aquisitivo ficava longe das novas invenções. Assim sendo, a nova ordem, não só no contexto brasileiro, mas em âmbito mundial, produziu o caos para a integridade humana e consolidou o autoritarismo, mantendo as relações de desigualdade.
Nesse contexto sócio-histórico, temos o conto Luz e sombra, no qual o autor expressa o antagonismo do sujeito narrador naquele período de caos político. Esse conto tematiza os anos sombrios da ditadura militar, mostrando tensões e conflitos interiorizados em decorrência do contexto histórico repressivo. Assim, as marcas de opressão incorporam-se a uma forma de composição perplexa e com tom confessional, pois o narrador deixa transparecer no texto suas frustrações, suas angústias e suas incertezas. Enfim, o conto gira em torno dessa impotência do ser humano.
A produção de Caio Fernando Abreu, de modo geral, possibilita aos leitores uma pluralidade interpretativa que exige, para este trabalho, a opção por determinado tópico: a repressão devido ao conteúdo histórico-social, expressada através do protagonista do conto. Nessa perspectiva, busca-se destacar a narrativa em questão como forma de resistência à organização autoritária e repressiva tanto da sociedade, como de agentes do poder no contexto brasileiro de produção da obra. Com esse intuito, Alfredo Bosi (2002) reflete sobre a questão da arte literária. O crítico confere a ela um caráter de resistência, sendo que ela pode representar atrocidades camufladas pela ideologia dominante. É nesse viés que tal estudo se justifica. Conforme Bosi, a resistência está atrelada à elaboração estética:
a arte pode escolher tudo quanto a ideologia dominante esquece, evita ou repele. Embora possa partilhar os mesmos valores de outros homens, também engajados na resistência antivalores, o narrador trabalha sua matéria de modo peculiar o que lhe é garantido pelo exercício da fantasia, da memória, das potências expressivas e estilizadoras. (BOSI, p. 122- 123)
Nessa contingência, Caio Fernando Abreu investe num conteúdo em que, não apenas a densidão da narrativa, mas também o elemento formal fragmentário dialogam com as condições de estruturação da sociedade brasileira no período histórico em que ele viveu. A análise que segue solidifica tais concepções.
Luz e sombra inicia com uma indagação, uma espécie de busca pela personagem, de algo que possa determinar uma saída, um sentido para sua luta interior: "Deve haver uma espécie de sentido ou o que virá depois?" (ABREU, 1984, p. 57). Percebe-se, no conto, uma apatia por parte do narrador, pois ele permanece parado numa janela, mesmo tendo consciência das limitações que o meio impõe: " -são coisas assim que penso pelas tardes, parado aqui nesta janela" (1984, p. 57). Esse fato pode ser visto como mecanismo de defesa empregado contra as agressões externas e, evidentemente; um distanciamento das pessoas, da rua, de tudo que possa levá-lo a um envolvimento comum com a realidade.
Dessa forma, pode-se inferir que o protagonista é um ser melancólico, pois se coloca na posição de observador da realidade que o cerca, apenas pensando sobre a situação, sem reagir. Conforme Reinaldo Marques (1998, p. 162), ao apresentar poetas melancólicos do contexto mineiro, entende-se que, nessa condição, o sujeito volta-se para si mesmo, impossibilitado de agir por forças externas, caracterizadas pelo contexto repressivo:
[O] ensimesmamento do eu confrontado com experiências de perda decorrentes de um tempo e um mundo de mudanças e ruínas, uma atitude crítica em relação ao próprio eu, apreendido como insatisfatório, precário; a inibição da atividade em prol de uma atitude contemplativa.
Com efeito, a atitude crítica frente a si mesmo fica destituída de forças para reagir, deixando o ser melancólico num estado de desinteresse pelo mundo. No conto, o protagonista se afasta das relações comuns com a sociedade, numa busca de isolamento e contemplação, mantendo-se "um ser pensante em estado de perplexidade" (MATOS, 1993, p. 167). Seguindo essas reflexões, cabe aqui mencionar o quadro do pintor renascentista alemão Albrecht Dürer, denominado Melencolia I (1508), na qual um anjo, em atitude contemplativa, está acompanhado de objetos geométricos, como um compasso e uma esfera. A representação do artista "sinaliza para a ambivalência da razão cartesiana, abstrata e calculista, e sua teologia do ponto fixo", conforme Reinaldo MARQUES (p.166). Nesse particular, Benjamin (1984, p. 176-178), no seu estudo sobre o drama barroco alemão, faz referências ao estado melancólico deste anjo, atribuindo-lhe uma característica de resistência às posturas ideológicas autoritárias.
Outros elementos do conto sugerem a perspectiva melancólica do narrador, tais como o fato de ele permanecer trancado num quarto, apenas pensando nos problemas, sem reagir e ser "acometido de inspirações e visões, de fantasmagorias" (MARQUES, 1996, p. 167). Isso mostra o isolamento por parte do mesmo, pois ao distanciar-se do mundo real dessa maneira ele atua no "lugar problemático que lhe cabe no espaço da modernidade" conforme MARQUES (p. 159), ou seja, trata-se de um espaço marcado por perdas e inibições, especialmente perdas de vidas, pois vigorava a tortura física, e ainda limitações de expressão. Assim, o artista se coloca numa posição meditativa, atribuindo a sua obra o compromisso social de lembrar ou induzir à memória do leitor fatos ocorridos.
Nesse ponto, a arte pode ser vista como expressão de uma época, pois o conto em questão apresenta a depressão de um sujeito em decorrência do seu contexto histórico-social. No caso, a personagem central caracteriza-se melancólica por estar submetida a um momento repressivo, no qual vigorava a tortura tanto física como psicológica, além de questões de marginalização social em decorrência da restrita industrialização. Márcio Seligmann-Silva, no seu ensaio A história como trauma, apresenta a idéia de impotência lingüística ao narrar um acontecimento de extrema relevância, no caso a Shoah, palavra que tal teórico usa para referir-se ao Holocausto, eliminando seu caráter cultural. Dessa forma, certas obras literárias podem dar conta da importância dos fatos que ficam suplantados no discurso dos historiadores.
O protagonista, em decorrência da situação histórica e social, encontra-se descentrado. Por isso mesmo, não consegue dar legitimidade ao seu texto, sendo este, pois, fragmentado. A narrativa expõe uma consciência social ao apresentar-se densa, desviando, assim, os padrões tradicionais das narrativas, os quais se denominam lineares. Bella Jozef (1998, p. 298) defende que "toda obra é uma forma de escrever-se, de permanecer nos espaços da memória, na arqueologia, na recordação". Assim, o conto de Caio pode atuar na consciência dos leitores para que certas situações permaneçam nas suas mentes, ou para que os provoque a sentir a inquietação de um indivíduo - neste caso, do protagonista - que projeta a situação de muitos cidadãos naquele contexto opressor. "Tomar consciência do passado é atributo humano que confere amplas perspectivas da realidade", afirma BelIa Jozef.
Ao descrever o lugar onde se encontra, o protagonista fala das pombas que às vezes pousam nos telhados, mas salienta que não são "poéticas pombinhas esvoaçantes, arrulhantes." (1984, p. 57). Para caracterizá-las, ele usa palavras como "cinzentas' e "asas de morcego', pois esses termos é que se enquadram no contexto sombrio que ele está vivenciando, caracterizado por situações de conflito. Termos como estes denotam aves noturnas, que sempre se escondem em lugares abandonados, porões. E é do porão escuro da mente, o inconsciente, que eles emergem. Segundo Laplanche e Pontalis,
[N]o sentido tópico, inconsciente segundo Freud, é constituído por conteúdos recalcados aos quais foi recusado o acesso ao sistema pré-consciente-consciente pela ação do recalcamento. (1988, p. 300)
Seguindo, ainda, as idéias dos estudiosos acima mencionados, a repressão se estabelece em função de um recalque que fica no inconsciente. No conto, este aspecto da repressão se manifesta através do recalcamento dos sentimentos da personagem, os quais implicam num conflito interior.
Repressão: operação psíquica tendente a fazer desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno: idéia, afeto, etc. Neste sentido, o recalcamento seria uma modalidade especial de repressão. (LAPLANCHE e PONTALIS, 1986, p. 594)
O narrador do conto se apresenta confuso, não entendendo a sua situação. Suas expressões demonstram que ele tem consciência da situação caótica que caracteriza a realidade, pois ele expressa que se mantém em atitude contemplativa. Tal idéia permite interpretar o estado melancólico do sujeito em questão, conforme já mencionado anteriormente.
É interessante notar que o questionamento sobre a falta de sentido se repete várias vezes no texto, o que demonstra um anseio febril por uma perspectiva, uma solução, um sentido para tais conflitos. Tal fato induz o desejo do protagonista em manter lúcido seu pensamento para que possa haver algum sentido. Ele sente que deve reagir, mas, por estar melancólico, apenas pensa e reprime seus anseios. O seguinte trecho do conto sugere tais afirmações:
Se pemanecer aqui, parado nesta janela, estou certo que acontecerá uma coisa grave - e quando falo grave quero dizer morte, loucura, que parecem leves assim ditas. Preciso de algo que me tire desta janela, e Iogo após, ainda, do depois. Querer um sentido me leva a querer um depois, os dois vem juntos, se é que você me entende. (1984, p. 58)
A própria personagem responde a sua indagação inicial: "portanto não haverá sentido, portanto não haverá depois." (1984, p. 58). Dessa forma, supõe-se que o narrador infere o caos do contexto no qual estava inserido que se caracterizava por atos repressivos como tortura, censura, preconceito os quais eram a principal causa dos conflitos interiorizados pelas pessoas. Além disso, tal problema não teria solução, pois as mudanças causadas na integridade dos indivíduos perduraria no futuro. O protagonista isola-se, fecha-se, expulsa aquilo que o desagrada, isto é, reprime no seu inconsciente os desejos recalcados de mudar a situação.
No decorrer do seu texto, o narrador usa outros vocábulos negativos como "tarde suja, morte, loucura, verde-musgo, vômito, urtigas", que denotam o pessimismo perante a situação imposta pelos meios repressores e que, de fato, eram responsáveis pelos conflitos interiorizados das pessoas, bem como do protagonista. Este procura justificar-se, perante si mesmo, a situação que vive:
"...você me entende?"
"...não estou conseguindo ser suficientemente claro..."
"...queria que pelo menos você me compreendesse antes, antes de qualquer palavra..."
"...é um terrível esforço para mim."(1984, p. 57-58)
Ele procura dentro de si um motivo, uma razão para entender o que ocorre. Ele sabe que somente mantendo-se lúcido e encarando a realidade, haverá uma saída. Mas, sabe também que não tem força suficiente para transformar a situação presente, pois permanece sem reação e responde negativamente à questão inicial sobre a falta de sentido que permeia a narrativa. No conto, a repressão se manifesta através do recalcamento dos sentimentos da personagem os quais implicam o conflito interior.
"Do outro lado há um muro de pedras. Nada acontece. É por estar descalço que não me atrevo a pisar a terra solta e vermelha da rua." (1984, p. 59) "Faz tempo não tomo chá, e controlo tanto os cigarros que, cada vez que acendo um, a sensação é de culpa, não de prazer..." (1984, p. 57)
A primeira passagem denota a falta de coragem e o receio do narrador. Além disso, o muro que ele menciona pode ser entendido como as imposições da sociedade e de determinados agentes históricos que manipulam os conteúdos sociais, de forma que a repressão, o preconceito, a desinformação se perpetuem como condição dominante. No segundo trecho, a referência que o autor faz ao termo chá, mostra que ele necessita de algo que tranqüilize seus conflitos. Da mesma forma, ao citar o cigarro, entende-se a falta de algo que alivie suas tensões, sendo que o fumo contém uma substância que estimula o prazer.
Concluindo, então, a experiência da repressão, no século XX, levou autores como Caio Fernando Abreu, Ruben Fonseca e João Ubaldo Ribeiro a abordarem em suas obras as experiências individuais de quem sofreu a posição agressiva de uma sociedade autoritária. Violência, massacres coletivos, difusão e naturalização de preconceitos (GINZBURG, 2000, p. 237-238) caracterizaram o conteúdo social desses autores. Destaca-se, nesse momento, as atrocidades responsáveis/causadoras que delinearam tal estudo no que se refere à repressão sofrida pelo narrador.
José Antonio Segatto (1999, p. 201) deixa claro que a realidade social aparece em muitas manifestações literárias. Foi com essa premissa que o trabalho procedeu, além de objetivar uma mobilização no sentido de entender o estranhamento que a narrativa de Caio produz. Esse efeito se dá pela densidade de sua narrativa que concretiza sua função se conseguir fazer com que o leitor perceba uma mudança na apreensão da realidade daquela época. Nesse contexto, é importante citar o crítico lgnácio de Loyola Brandão que, ao caracterizar sua própria narrativa, permite uma alusão ao texto abordado nesse estudo. O pressuposto do teórico reforça um dos pontos levantados sobre a obra de Caio e, ao mesmo tempo, reflete a questão principal analisada como causa dos conflitos do narrador de tal conto.
Sou desordenado, fragmentado, caótico, traduzo e interpreto ficcionalmente a realidade, sou filtro e espelho, capto e me expresso através de símbolos. Sou incoerente e paradoxal, porque aquilo que reproduzo também o é. Trabalho com a transfiguração do real, acrescentando o imaginário. (1994, p. 175)


BIBLIOGRAFIA:

ABREU, Caio. Luz e sombra. In:____.Morangos Mofados. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BOSI, Alfredo. Narrativa e resistência. In: . Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
BRANDÃO, lgnácio de Loyola. Literatura e resistência. ln: SCHWARTZ, Jorge; SOSNOWSKI, Saúl (Orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: EDUSP, 1994.
GINZBURG, Jaime; UMBACH, Rosani Ketzer. Literatura e Autoritarismo. ln: vários. 2000 palavras: as vozes das letras. Pelotas: UFPeI, 2000.
JOZEF, BeIla. (Auto)biografia: os territórios da memória e da história. ln: LEENHARDT, Jaques; PESAVENTQ, Sandra (Orgs.). Discurso histórico e narrativa literária. Campinas: UNICAMP, 1996.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
MARQUES, Reinaldo. Tempos modernos, poetas melancólicos. ln: SOUZA, Eneida Maria de (Org.). Modernidades tardias. Belo Horizonte: UPMG, 1998.
MATOS, Olgária. Ulisses e a razão insuficiente: geometria e melancolia. ln:___. O iluminismo visionário: Benjamin leitor de Descartes e Kant. São Paulo: Brasiliense, 1993.
SEGATTO, José Antonio. Cidadania de ficção. ln:____; BALDAN, Ude (Orgs.). Sociedade e literatura no Brasil. São Paulo: UNESP, 1999.

1 Aluna do 4o semestre do curso de Letras Inglês da UFSM, bolsista de Iniciação Científica. Este trabalho é resultado parcial das pesquisas realizadas no Projeto Integrado Literatura e Autoritarismo, sob a orientação da Profa. Dra. Rosani Umbach.

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