Capa |  Editorial |  Sumário |  Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 7 

LUGAR DE MASSACRE, DE JOSÉ MARTINS GARCIA, E TERRA SONÂMBULA, DE MIA COUTO: OLHARES CONVERGENTES SOBRE O AUTORITARISMO1

Evelise de Oliveira Bolzan2
Inara de Oliveira Rodrigues3

RESUMO

Com a falência do projeto lusitano de expansão territorial ultramarina, decorrente das lutas de independência de nações africanas, como Moçambique e Guiné, e a subseqüente derrocada do regime fascista português, em 1974, estabeleceu-se uma literatura de cunho testemunhal, documental e revelador das condições de vida das nações colonizadas. A temática de maior enfoque nesses textos literários é a guerra e suas diversas implicações, como as mais variadas formas de violência sobre os indivíduos. Assim, por meio da análise das obras Lugar de Massacre (1975), de José Martins Garcia, e Terra Sonâmbula (1992), de Mia Couto, busca-se desvelar a maneira como ambos os escritores, de nacionalidade açoriana e moçambicana, respectivamente, representam essa temática, evidenciando-se os distanciamentos, mas, sobretudo, as convergências entre os seus romances. Tal procedimento analítico é desenvolvido a partir, principalmente, de algumas das principais concepções dos teóricos da Escola de Frankfurt sobre as relações entre a história e ficção, bem como sobre o conceito de autoritarismo, problematizando-se a dimensão social e crítica da arte literária.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura - autoritarismo - pós-colonial

INTRODUÇÃO

A preocupação e o interesse por questões relativas à arte literária engajada4 consistem no ponto inicial para a execução desta pesquisa, cujo objetivo central é enfatizar a correlação entre literatura, autoritarismo e história. Para tanto vai-se analisar as relações entre o regime autoritário português e a sua representação nas obras literárias, Lugar de Massacre, de José Martins Garcia, e Terra Sonâmbula, de Mia Couto, romances em que se apresentam fatos históricos reveladores do autoritarismo decorrente da política colonialista lusitana na África.
Ao passar a vigorar como regime político em Portugal, por meio de um golpe de Estado, o fascismo, tendo Salazar como seu maior representante, transformou Portugal em um dos países mais subdesenvolvidos da Europa, alicerçado sobre a colonização africana. Dentro desse contexto, focaliza-se, aqui, por meio das obras explicitadas, duas nações atingidas por este sistema de exploração, Guiné e Moçambique, respectivamente, as quais só chegaram à independência nos anos 70, mas cuja soberania é um processo que se desdobra ainda hoje, devido aos resquícios que as guerras deixaram. Busca-se, assim, caracterizar a representação do autoritarismo nos romances que são corpus desta pesquisa, a partir de abordagens relativas à violência física, social e psicológica, à miséria, à morte, ao racismo e à percepção do mundo dos principais personagens das já referidas obras, articulando-se tal caracterização com os fatos históricos nelas explicitados.
Deve-se evidenciar que a seleção do corpus da presente proposta de análise levou em conta, principalmente, o fato de que essas narrativas dos escritores José Martins Garcia, açoriano, e Mia Couto, moçambicano, foram publicadas justamente após os anos subseqüentes à derrocada do regime salazarista em Portugal, em 1974, e à falência do projeto de expansão territorial ultramarina. Com um caráter testemunhal e crítico, tais romances abordam, em comum, um tema que, até então, era interditado pela censura. A temática central eram as lutas pela independência e suas implicações, representando as vivências traumáticas que foram impostas aos seus participantes. Torna-se relevante, desse modo, apontar o olhar convergente desses autores, de diferentes nacionalidades, sobre o autoritarismo, bem como desvelar suas particularidades estéticas e culturais.
De cunho eminentemente bibliográfico, o procedimento analítico deste trabalho divide-se em quatro partes: na primeira, são feitas considerações de ordem teórica, com vistas a esclarecer conceitos e relações que norteiam a investigação, assentadas nas principais concepções dos teóricos da Escola de Frankfurt sobre as relações entre ficção e história, bem como sobre o conceito de autoritarismo. Subseqüentemente, duas partes intituladas "A história no romance Lugar de Massacre: elementos autoritários", e "Terra Sonâmbula: o resgate do passado africano", têm o propósito de desvelar as formas de autoritarismo representadas nas obras. Na última seção, o diálogo entre os romances, procurando-se demonstrar as suas principais convergências com relação à temática central apontada. Por esse percurso, pretende-se ainda, e finalmente, afirmar a dimensão social e crítica da arte literária.

I. Considerações sobre literatura, história e autoritarismo

Na Poética, Aristóteles coloca: a literatura não tem compromisso com a verdade, mas com o arranjo convincente de seus elementos. Ela precisa parecer e não ser verdadeira. Assim, diferencia-se da História, caracterizada pelo comprometimento com a veracidade dos fatos.5
Com a consagração do gênero romance, permanece, no entanto, essa perspectiva maior de pensar a literatura em relação ao campo da história, pois o romance é uma manifestação em prosa, de cunho narrativo, que constitui um discurso que incide sobre a realidade vivida. Posto que a linguagem está no centro das práticas sociais, é nesse ponto que se encontra o poder social da linguagem e da literatura. O romance, como caso particular do modo narrativo, segundo Reis, "permite algumas conexões com espaços e tempos históricos determinados, cuja evocação é favorecida justamente pelas potencialidades modelizantes da narratividade.6 Ainda, a narratividade pode ser concebida como fator fundamental da representação das etapas de evolução do homem e da sua história,recuperando aspectos da vida cotidiana.
Estruturada em ações, a modelação discursiva, desenvolve uma intriga coesa, traduzindo uma espécie dialética entre sucessividade de eventos e a possibilidade de globalização, que permite o resumo dessas ações.7 Além disso, as personagens apresentam uma série de elementos semânticos (temáticos, ideológicos) dominantes no relato; a integração narrativa das figuras ficcionais solicita sua inserção em espaços que por elas são transformados e completam sua caracterização.
Revela-se, desse modo, fundamental a compreensão das coordenadas espaço - temporais que direcionam as vivências das personagens que constituem o corpus dessa pesquisa, pois trata-se da realidade pós-colonial, entendida como eixo de questionamentos vividos antes, durante e depois das independências da nações enfocadas nos romances em análise. Nesse sentido, afirma-se a dimensão crítica da arte literária, por esse poder de desconstruir, segundo Said, "a natureza do poder colonial",8 e de reverter a imagem que o mundo ocidental tem de si sobre si mesmo e sobre todos os outros, que deles não fazem parte, imagem essa que foi construída por historiadores durante séculos.
Ao questionar a historiografia dominante, segue-se uma concepção benjaminiana, em que a tarefa do historiador seria a de não deixar a memória do passado trágico escapar, mas zelar pela sua conservação, de contribuir na reapropriação desse fragmento da história esquecida pelo discurso histórico oficial.9 Quando se remete essa conceituação de Walter Benjamin, às relações entre história e literatura, logo é possível, por meio das cenas dos romances, Lugar de Massacre e Terra Sonâmbula, desnudar aspectos autoritários do contexto da guerra colonial em Guiné e Moçambique, nações vitimadas pela política colonialista de Portugal, e não permitir que a história dos oprimidos caia no esquecimento.
Para tanto, é necessário orientar o uso dos termos correntes nesse trabalho: ficção identifica-se com fingimento, com simulação de fatos; já, história, é caracterizada, genericamente, pelo comprometimento com a veracidade dos fatos, a partir de uma base documental. O presente estudo possibilita o cruzamento desses conceitos, enfatizando sempre o conceito de autoritarismo como ação repressora e coercitiva oriunda de um grupo de indivíduos sobre outros. Ao cruzar essas conceituações, nos moldes da arte, torna-se possível a representação da vida em sociedade de modo muitas vezes mais esclarecedor e convincente do que naquele que costuma ser evidenciado em relatos propriamente factuais.
De acordo com Gagnebin,10 a historiografia vigente descreve o vasto espetáculo da história universal, mas não a questiona; está, conseqüentemente, bem longe de poder discernir por detrás da história dos vencedores as tentativas de uma outra história que fracassou. As causas desse fracasso não se constituem, via de regra, em objeto de pesquisas e as vitórias são celebradas como manifestações dos mais fortes, sem que se indague a respeito das condições preestabelecidas de uma luta desigual.
Segundo Benjamin, é preciso arrancar a tradição do conformismo,11 construindo uma história que recupere o passado daqueles que lutaram contra a barbárie e não aceitaram ser apenas instrumentos das classes dominantes que justificam seus meios em nome de um falso progresso.
A partir de tais colocações pode-se afirmar que o primeiro romance sobre a guerra colonial, escrito em 1975, Lugar de Massacre, de José Martins Garcia, e Terra Sonâmbula, de Mia Couto, escrito em 1992, viabilizam o resgate da história, do passado das nações africanas Guiné e Moçambique, ao apresentarem forte teor testemunhal, documental e revelador da questão do autoritarismo imposto sobre essas nações oprimidas.
Ambos os escritores apresentam estilos ficcionais que se caracterizam pelo engajamento.12 Esse termo associa uma função social à literatura, em que as obras são vistas como espaço de conscientização, a partir da ênfase em aspectos realistas. Nos textos em análise, trata-se de uma forma de denúncia do massacre ocorrido em Guiné e Moçambique. De acordo com a Revista Paz e Terra,13
Portugal possuía o último dos grandes impérios coloniais. Mas para o manter achou-se envolvido em três guerras coloniais, a milhares de quilômetros de distância. Um exército de 150.000 homens constitui a ossatura do gigantesco aparelho militar que tentou impedir, à custa de muito sangue, a independência das "províncias ultramarinas" de Angola, Moçambique e Guiné.
As obras denunciam a realidade repressora e cruel que se formou e que vai de encontro às intenções e ideais de uma sociedade justa que respeite os direitos humanos. Assim, os romances de José Martins Garcia e de Mia Couto destacam - se por ter a intenção de enfatizar os problemas sociais desencadeados pela guerra colonial, o drama das populações de Guiné e de Moçambique e os desmandos de um regime que desconsidera a liberdade e a vida alheia.
O colonialismo, expressão que aqui permeia as atitudes impostas pelo regime português, caracteriza o modo como ocorreu a exploração cultural e econômica durante os últimos 500 anos, causada pela expansão européia, que nos séculos XV e XVI coincidiu como início do sistema capitalista de trocas econômicas, no qual as colônias foram percebidas como fonte de matérias primas que sustentaria o poder central da metrópole.
A história do pós - colonialismo, de acordo com Bonnici,14 iniciou-se no século XX com um triste panorama composto por dezenas de povos e nações submetidos à exploração européia; por milhões de negros, descendentes de escravos, discriminados em seus direitos fundamentais, pelo poder político e econômico nas mãos de raças brancas e cristãs em países industrializados. Ao mesmo tempo, contudo, isso não significou passividade, mas, sim, uma permanente, ainda que mais ou menos eficaz, luta de resistência e tentativas de independência.
De todo modo, a dominação cultural imposta pelos colonizadores, conseguiu, praticamente até meados do século XX, inviabilizar uma literatura nacional na África, e as criações literárias produzidas seguiam padrões eurocêntricos. Até então,
Um conjunto de textos, consagrados como esteticamente excelentes, era escolhido pelo grupo social e politicamente dominante, e considerado digno de ser lido, com a conseqüente exclusão de outros textos que não coadunavam com o ponto de vista do grupo hegemônico".15
A teoria colonial, segundo Culler,16 constitui-se num conjunto relacionado de questões teóricas que surgem na tentativa de compreender os problemas postos pela colonização européia e suas conseqüências. Nesse legado, as experiências pós - coloniais, se misturam com as práticas discursivas do Ocidente.
Ressalta-se que o autoritarismo, aprofundando-se a definição já explicitada, caracteriza-se como o controle das práticas arbitrárias por parte dos agentes do Estado e da violência ilegal nas interações entre os cidadãos nas transições políticas e sobre os governos democráticos que delas emergiram, além de significar a dominação hierárquica em sociedades extremamente desiguais. A guerra, segundo Benjamin,17 caracteriza uma forma de autoritarismo, pois foge a qualquer economia regida pela inteligência. Em sua razão, existe algo de sobre-humano, desmedido, gigantesco, algo que lembra um processo vulcânico, uma erupção elementar, uma onda colossal de vida, dirigida por uma força dolorosa, coercitiva, unitária, transbordando sobre os campos de batalha, que hoje já se tornam míticos, canalizada para tarefas que ultrapassam os limites do que hoje pode ser compreendido.
Paralelamente à guerra, quando se aborda termos que remetem ao autoritarismo, se faz necessário resgatar ainda aspectos que denotem à questão da memória e do trauma vivenciado por aqueles que foram submetidos a um ambiente de guerra. Pode-se dizer, que a experiência traumática não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre, o trauma é uma ferida na memória, logo, a memória só existe, de acordo com Seligmann,18 "ao lado do esquecimento: um alimenta e completa o outro, um é o fundo sobre qual o outro se inscreve."
Assim sendo, por meio das obras em estudo pretende-se evidenciar as experiências históricas e traumáticas, mostrando-se como elas proporcionam a construção de um espaço futuro ao recuperarem as línguas nativas e sua cultura, via literatura. O processo total de descolonização não se concentra unicamente em livrar-se das amarras do subdesenvolvimento impostas pelo poder imperial, mas procurar alternativas que reprimam o discurso imperialista, e, por esse ângulo, a descolonização literária é um caminho.
De acordo com o que foi colocado, pode-se dizer que o que se busca enfatizar é uma literatura pós - colonial, mesmo sabendo que as nações em enfoque nas obras literárias que constituem o corpus dessa pesquisa, sofrerão por muito tempo ainda com as marcas da dominação e da exploração. Segundo Bonnici, "enganam-se aqueles que pensam que a declaração de independência política produz, por si, a descolonização da mente(...). Ao contrário do que muita gente pensa, a descolonização é uma processo complexo e contínuo".19
A relevância da escrita no processo de libertação e emancipação pode ser avaliado no sentimento expresso por um escravo afro-americano :
Houve uma nova e especial revelação, explicando coisas até então obscuras e misteriosas, contra as quais o meu entendimento juvenil tentava vislumbrar, mas lutava em vão (...) Foi uma grande vitória, estimada por mim sobremaneira. A partir daquele momento, entendi o caminho para a liberdade".20
Ao abordarem em suas obras aspectos violentos da vida em sociedade, os autores conseguem "fazer emergir as esperanças não realizadas desse passado, inscrever em nosso presente seu apelo por um mundo diferente. 21 Tal apelo é o que temos no romance que será analisado a seguir.

II. Lugar de Massacre: autoritarismo e resistência

Lugar de Massacre evidencia as vivências dramáticas que a guerra impôs aos seus participantes; o choque de culturas, a miséria circundante, as privações, os desmandos hierárquicos, o abandono a que estavam relegados os combatentes na fase final da campanha de colonização, a barbárie como resultado da perda de todos os parâmetros de ordem social, física e psicológica e, por fim, o retorno dos soldados portugueses de uma guerra já sem sentido histórico e a difícil retomada das atividades cotidianas a exigir novos posicionamentos numa sociedade que buscava se reordenar.
Algumas situações tornam-se recorrentes na narrativa: a ação bélica coloca em evidência o indivíduo masculino, jovem, obrigado a assumir uma causa da qual nem sempre se sente assegurado.
O romance inicia com a chegada de um dos personagens principais à Guiné-Bissau, o jovem Conde d'Avince, que assim é descrito "Descendente duma família guerreira, cem anos inactiva por imposição da paz e da prosperidade(...) Fizera seu treino com afinco e muita atenção ao espírito traiçoeiro".22 Conde d'Avince foi criado por seus pais, Dom Teodósio, que presidia à Liga para a Salvação do Passado, e por sua mãe, Dona Violante. Sempre foi educado para não se misturar à plebe e não conviver com grosserias; inscreveu-se na Academia das Leis, reprovou em todas as matérias e, com o alastramento da guerra, foi chamado à carreira das armas.
Num primeiro plano, Conde d'Avince, completamente avesso à "plebe", permanece sempre fechado, calando protestos, reconfortando-se com a carta materna que recebia todas as semanas, e mantinha seu padrão de acordo com os ensinamentos recebidos, que era o da mais irretocável educação e presteza. Perturbava-se com o comportamento inverso de seus compatriotas, pois, de acordo com seus pensamentos,
Sexualizavam a indumentária, os objetos cortantes, perfurantes, redondos, rígidos ou flexíveis, bem como as plantas, os animais, os humanos, os monumentos, as tradições, os gestos e as intenções. E os hinos adulteravam-se em paródias indecorosas, enquanto tambores e clarins colaboravam, havendo para cada ritmo um rosário de palavrões, para cada toque uma mnemônica debochada. ( LM, p. 12)
Ao mencionar os pensamentos de Conde d'Avince acerca do comportamento de seus companheiros, deve-se levar em conta que o jovem havia acabado de chegar àquele ambiente. Também, deve-se considerar a descrença dos soldados portugueses no que tange a seriedade dos valores pelos quais estavam lutando.
Abordar a questão do racismo é imprescindível para a compreensão da crítica ao autoritarismo que permeia a obra, pois Conde d'Avince representa o pensamento da exclusão, perpetua o ideário de que existem raças superiores a outras. O personagem caracteriza e julga os seres humanos por sua cor, analisa os combatentes estabelecendo uma hierarquia social e referia-se à raça loura com superioridade, como se esta fosse responsável pelo desenvolvimento da civilização, enquanto os outros, representariam a indignidade e a traição.
Ao refletir-se sobre o posicionamento de Conde d'Avince, é possível perceber o quanto o regime fascista apregoou a idéia da supremacia racial e cultural. O argumento ideológico utilizado era o de que as nações mais desenvolvidas deveriam mostrar sua superioridade atendendo ao apelo dos países menos favorecidos, não para dominá-los, explorá-los, mas para ajudarem a se reencontrarem.
Uma cena em que se evidencia o racismo mencionado desenrola-se quando Conde d' Avince e seu companheiro, eleito por sua raça loura, procuram um alfaiate no centro da cidade, para confeccionar calções para o jovem. Ao saber que o alfaiate era judeu, o Conde manifesta todo o seu ódio e desprezo:
Grande foi a cólera do Conde d'Avince ao saber da raça judaica do alfaiate. -Essa praga! - resumiu para o alcólito. Tinham minado a Europa, estavam minando a América. Haviam jurado destruir a raça loura, o motor da História, pra dominarem o mundo em vez dos legítimos dominadores. Tão resistentes, tão diabólicos que, apesar dos grandes programas para extermínio dessa autêntica praga, pareciam renascer das cinzas. (LM, p. 21. 22)
Ao mencionar "raça loura, o motor da História", o personagem contraria um dos postulados de Walter Benjamin,23 que diz que na luta de classes não é possível entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição do conformismo, e ter certeza de que os mortos, que representam o passado e a memória, não estarão em segurança se o inimigo vencer. De acordo com Benjamin, esse inimigo não tem cessado de vencer.
Esse inimigo são todos aqueles que reforçam a desigualdade, que afirmam o preconceito, caso, além do já mencionado Conde d'Avince, do comandante Porca: ambos relacionavam-se apenas com aqueles que representassem a raça ariana, e o louro soldado Guilherme foi vítima de suas constantes "investidas", era subordinado e, por questões patrióticas, devia respeito aos chefes, "fossem porcos ou cristãos, resistia aos assaltos com heroísmo." (LM, p. 73)
Outro cidadão que foi incumbido de lutar em Guiné pelas tropas portuguesas foi Pierre Avince, caracterizado como um boçal, sem parentesco algum com a família dos nobres Avinces, a qual pertencia seu colega de lutas. Pierre Avince mostrava grande insatisfação em estar naquele ambiente, bebia e não manifestava nenhum interesse em defender a causa pela qual havia sido designado. Perante o comandante Pássaro, que chefiava os Serviços da Conjugação, e suas colocações acerca da selva, parecia estar absorto em pensamentos e idéias quaisquer, menos na cerimônia de fidelidade ao chão, ao ar e à rede hidrográfica, a qual eram submetidos todos os soldados que chegavam nas colônias para honrar a nação portuguesa, e em que os mesmos prometiam tentar conquistar com bravura todos os bens naturais que pertencessem às terras dominadas.
Pierre Avince mostrava-se insatisfeito com o sistema colonialista, circunstância evidenciada na seguinte passagem,
- Um dos piores defeitos da nossa colonização é o anacronismo. Transpõem-se para os colonizadores valores caídos em desuso. Nesse aspecto, a cultura é como a maquinaria: só se vende aos subdesenvolvidos a tralha que deixou de dar lucro. Quando derem a estes gajos uma fábrica de armamento, é porque já foi inventada, para os deuses, uma forma superior de destruição (...). Isto é o mundo que a Europa criou. A Europa e seu falso pudor. (LM, p. 42)
Em Portugal, as colônias constituem o alicerce de uma ideologia cuja prática explica, em parte, a estagnação econômica que por tanto tempo viveu a metrópole portuguesa devido a uma orientação parasitária, que acabou por afetar todos os setores da sociedade portuguesa, freando um desenvolvimento autônomo. De acordo com o pensamento do personagem Pierre Avince, o regime imperialista imposto pela Europa, enquanto continente que exerce monopólio sobre países africanos, norteia para os povos dominados somente valores ultrapassados, que se escondem atrás da exploração material para o enriquecimento da metrópole. De acordo com Bonnici,24 "entre o colonizador e o colonizado estabeleceu-se um sistema de diferença hierárquica fadada a jamais admitir um equilíbrio no relacionamento econômico, social e cultural".
Em uma fala do personagem Pierre Avince presentifica-se a questão do preconceito racial, da triste imagem que o negro carrega com relação à raça branca,
- Um dia todas as espingardas se hão de voltar para trás... E nós veremos as mulheres brancas condenadas por parirem gente branca ... assim gente com a nossa cor de merda. Com cheiro de cadáver, como dizem os negros de Catió. Branco cheira a morto, dizem eles... (LM. p. 74)
A condição traumática da vivência negra confere a eles um apagamento de sua memória, mas não um apagamento de seu passado. Sempre prevaleceu a idéia de que esses homens nunca se elevaram muito acima do animal pelos seus esforços. Em Moçambique e em Guiné, um negro não podia andar pela calçada, entrar em um hotel ou tomar banho em uma praia freqüentada por europeus. Mas o desenrolar dos fatos, principalmente na Guiné, veio provar que esse povo esteve disposto aos maiores sacrifícios para alcançar a independência, movendo-se no palco dos acontecimentos, como peças fundamentais das transformações em curso.
Salazar, pela sua fidelidade intransigente ao colonialismo, se tornou indiretamente responsável pelo aparecimento na história dessas nações africanas que tanto lutaram, e ainda lutam pela liberdade, pois as instituições de violência, como a tortura, o racismo, as prisões, não são transformados pelas transições, mesmo depois de constituições democráticas. Essas instituições, segundo Pinheiro,25 como antes das transições e depois delas, continuam a ter o mesmo papel relevante para a reprodução da dominação hierárquica em sociedades desiguais.
Nessa circunstância, a opressão, o silêncio e a repressão das sociedades pós - coloniais decorrem justamente de uma ideologia de sujeito e objeto mantida pelos colonizadores, em que, segundo Bonnici,26 mantém-se "uma hierarquia em que o oprimido é fixado pela superioridade moral do dominador. (...) Por outro lado, o colonizado é descrito constantemente como sem roupa, sem religião, sem lar (...), em nível bestial".
Com a chegada à Guiné- Bissau do Conde Enxeque, Conde d'Avince encontra um português da elite social e, juntos, ficam incumbidos de vetar a infiltração de plebeus nos Serviços da Conjugação. Ambos questionam a presença de Pierre Avince. Enxeque coloca que, durante anos, a seleção era feita com base na lealdade política, com a remodelação, os Serviços da Conjugação precisavam de pessoas com certo nível cultural, logo, um grande número de "intelectuais" foram convocados a participar da guerra em prol do exército português. Todavia, segundo Conde Enxeque, "esses intelectuais podiam assimilar rapidamente os moldes de funcionamento dos Serviços, mas não ofereciam garantias ideológicas, pois eram produtos da Universidade".(LM, p. 44, 45)
Ao encontro do comentário pejorativo pronunciado pelo personagem Enxeque acerca daqueles que estudavam em universidades, e eram como que obrigados a servirem ao exército português, é possível associar que uma das principais vítimas da política salazarista foi a Universidade, e os principais meios de ação do obscurantismo ocorrido com as universidades foram as demissões isoladas e coletivas de professores. Entre os estudantes existia a necessidade de lutar contra o regime fascista, evidenciando a forma como viviam, como trabalhavam, construindo uma resistência à violência dentro desse regime.
A universidade arcaica e obsoleta, em que os estudantes portugueses estudavam durante o regime fascista, faz com que os mesmos exijam autonomia, reforma e participação. Numa universidade sob regime fascista, exigir autonomia significa exigir a sobrevivência da universidade como instituição cultural, em um país onde não existia liberdade de expressão, em que até a liberdade de pensamento estava comprometida. As associações de estudantes constituíam uma luta diária, eram as únicas associações livres no Portugal dessa época, e, por isso, constante alvo de ataques, na medida em que reivindicavam conquistas intelectuais e, desde cedo, os jovens aprenderam a odiar o fascismo.
De acordo com as considerações acima, é possível associar uma passagem da obra Lugar de Massacre, a um trecho do contexto histórico de Portugal, retirado da obra 43 anos de fascismo em Portugal, em que se evidenciam claramente as relações entre história e ficção. Trata-se da fala do personagem Enxeque, acerca de Pierre Avince, tido por intelectual que não aceita as imposições do regime,
(...) esses << intelectuais >>, se podiam assimilar rapidamente os moldes de funcionamento dos Serviços, não ofereceram sempre garantias ideológicas. Eram produtos da Universidade. E a Universidade andava contaminada pelo Serviço Traiçoeiro. Assim, dos oito << intelectuais >> recrutados por Pierre Avince, cinco haviam participado de movimentos estudantis de certa envergadura (...) Só posteriormente, graças a minucioso inquérito, se vasculhara devidamente o passado de cada um . (...) Só ficavam secretamente cadastrados os cabecilhas. O Comité decidira enviar os suspeitos para locais onde lhes fosse vedada qualquer doutrinação, ficando os ditos vigiados por alguém de confiança provada. (...) - Pois, um << intelectual a menos>... Sempre é algo positivo. (LM, p. 44, 45)
Com a passagem abaixo, igualmente entrecruzam-se a literatura e a história, percebendo como a literatura resgata elementos históricos com o intuito de assumir um caráter social e comprometido, abrindo espaço para a conscientização:
O preço desta crise acadêmica foi muito grande. Numa só noite são presos 1.200 estudantes. Os que ocupavam a Cantina e os grevistas da fome. Na falta de lugar nas prisões fascistas, lotadas de patriotas, os moços vão para um campo militar, ao ar livre, e as moças para o calabouço civil. A triagem policial conservará apenas algumas dezenas de estudantes em prisão. Depois, vêm os processos disciplinadores que expulsam da Universidade mais de 43 estudantes líderes. Alguns ficam impossibilitados de prosseguir os seus estudos, por alguns anos, nas universidades do país.27
O movimento estudantil, retratado na obra por meio do personagem Pierre Avice, teve um papel importante na desagregação do fascismo. Os estudantes portugueses que viveram nessa época de repressão sabiam que a resolução de seus problemas concentrava-se no fim da ditadura, quer dizer, que o final desse regime passava pela insurreição popular, que para dar lugar à história ofensiva, era necessário responder à violência com violência revolucionária. E Pierre Avince representava essa força revolucionária e intelectual; no entanto, sua ideologia custou-lhe o isolamento e o desprezo de todos aqueles que representavam o autoritarismo e os ideais do regime opressor.
O personagem Capitão Oliveira, o já mencionado Porca, como era chamado por seus subordinados, merece, ainda, um maior destaque. Tal personagem representa o descaso, a descrença, a ironia a uma causa, e essa causa era a guerra colonial. A Porca assumiu o lugar do comandante Pássaro nos Serviços da Conjugação em Guiné, após transferidos todos os poderes, Conde d'Avince reconheceu no comandante um aliado para realizar seus desmandos. O comandante era, segundo o Conde, "rechonchudo e meigo, arcanjo e hermafrodita, a Porca tanto mirava cu como braguilha" (LM, P. 63).
Logo que chegou a Guiné, nomeou sua ordenança o cantor Fernando Laito, era o sublime Laito que cantava na Emissora Nacional, logo encarregado pelo comandante Porca de mudar quotidianamente as bandeirinhas multicolores e heróicas que, sobre o mapa do passado, assinalavam os territórios africanos dominados por Portugal. A partir desse momento, a tabuleta onde se lia "Proibida a entrada" nunca mais abandonou a porta do comandante Porca, "o qual Laito salvaguardava a civilização ocidental e cristã". (LM, p. 63)
A preferência homossexual do Capitão não caracteriza um desrespeito perante a causa que o mesmo representa, o desrespeito se estabelece no momento em que "A Porca" subverte valores e aproveita-se de seu cargo para vivenciar experiências sexuais com seus subordinados. Nessas circunstâncias, é possível verificar desrespeito, em que a causa que permeia a guerra colonial, já não possui subsídios, nem valores, perante os portugueses.
Esse sentido de descrédito da causa que mobilizou a guerra colonial evidencia-se, assim, quer seja pela forma como comandantes, como A Porca, desempenhava suas funções mediante o exército, por meio de ações que depõe contra a validade de suas atitudes, quer seja por personagens como Conde d'Avince e Enxeque, que descaracterizam completamente a ideologia que representavam, pois lidavam com vidas alheias, e , ao mesmo tempo, demonstravam ser superiores racialmente, preocupando-se em recriar na África, o conforto de suas vidas em Portugal, perdiam-se em orgias e festas, e, desrespeitavam e manipulavam o destino de outros soldados, quando estes tentavam manifestar opiniões e posicionamentos diversos aos seus.
O despreparo e a despreocupação dos soldados portugueses caracterizam uma causa sem motivação. A falta de credibilidade da política colonialista constituiu uma das formas mais nítidas de visualizar como o regime de dominação não representava uma causa respeitosa nem para os próprios soldados que, a princípio, a defendiam. O estado de abandono e de decadência das raras povoações litorâneas de Guiné de Moçambique onde havia portugueses era o reflexo do despreparo de Portugal para a aventura colonialista.
Com o passar do tempo, o número de militares portugueses que desejavam abandonar a guerra colonial era cada vez maior; todavia, o fascismo português orientava toda a sua política no sentido de manter e reforçar as estruturas de um capitalismo dependente, cuja arrogância encobriu a subserviência real ante os monopólios que dominavam o país. Portugal sabia que a sua sobrevivência estava ligada à do sistema colonial. E para tanto, "a terra martirizada por uma guerra sem fim, um povo dividido entre os decretos europeus, despóticos e estúpidos, e a ação dos cabecilhas saídos desse mesmo povo, cientes de que as bombas de napalme não conseguiriam roubar-lhes o futuro."(LM, p. 68)
Os soldados que eram contra o regime fascista e contra a exploração colonial, lutavam apenas por imposição, eram enviados para os lugares de maior perigo, já que suas vidas não representavam muito para a elite portuguesa. É o caso de Pierre Avince, como verifica-se na passagem,
Quando as luzes se acenderam, doentes, horríveis, junto ao matagal selvagem , ouvia-se dar vivas a Pierre, , director-geral do Circo Imperial, em boa hora vindo de Bissau para divertir a pobre rapaziada que, heroicamente enfastiada e deprimida, garantia a permanência de uma bolinha azul no mapa da vitória, a qual se chamava Ponta do Inglês, a fim de haver mais uma povoação fiel, onde o inimigo só penetraria por sobre os cadáveres daqueles exemplares defensores do nada. (LM, p. 102)
Os soldados portugueses que lutavam na Ponta do Inglês, segundo a passagem acima, estavam relegados ao esquecimento, apenas representando uma causa perdida e sem justificativas, "a permanência de uma bolinha azul no mapa da vitória".
De acordo com Simões,
As formas de resistência à postura colonizadora, assumida pela ficção portuguesa contemporânea, podem ser vistas assim, como uma questão de discurso, pela ironia, pela dessacralização dos mitos cultuados pelo centro. No primeiro caso, dos focos temáticos, há que ser referido os horrores da guerra colonial: a jovem geração de portugueses que ia morrer numa guerra com a qual não concordava ou acreditava.28
Outras diversas manifestações de contrariedade permeiam a representação da insatisfação dos soldados portugueses com a guerra colonial, como o diálogo de Pierre Avince com Capitão Miguel, "Tenta demonstrar a um colonialista que ele é um chato tão idiota que nem consegue desenvencilhar-se das "malhas que o Império tece". Vais apodrecer numa prisão, se não te fuzilarem. O ser humano é o ser mais estúpido de quantos habitam essa merda de planeta!"(LM, p. 121).
Após experimentar vivências traumáticas em um ambiente de guerra, presenciar a morte de centenas de soldados, ser transferido ainda mais uma vez, questionar o regime, e, mesmo assim, não obter respostas, perder sua juventude, seu trabalho, Pierre Avince continuou vivo. Ao embarcar de volta a Portugal, depois de ter sofrido tantas imposições e martírios, restou -lhe o sentimento alienante, segundo suas colocações, "com um gato podre amarrado à memória", ainda ganhou um tratamento neuropsiquiátrico no Hospital Militar, para que pudesse gozar os benefício "da desintegração psíquica". Seu diagnóstico foi reação vivencial depressiva. Durante anos mais tarde, Pierre Avince continuaria a sofrer os efeitos da guerra, com tristes memórias que denunciavam sua permanência naquele lugar de massacres. De sua vida anterior à guerra, já não lembrava de nada, nem da carreira, nem da universidade, deveria "roer em silêncio, no subterrâneo".
Foi, no entanto, com um brado, "Filhos da puta!" (LM, p. 37), que Pierre Avince deixou o hospital, referindo-se às fardas que encontrou no pátio do hospital, pois era o dia de relembrar os mortos, e os vivos com patentes elevadas. Aqueles que festejavam, eram para Avince, suínos que grunhiam no entrecochar de copos portugueses, enquanto ele, Pierre, era apenas um louco sem condição. Seligmann aborda uma concepção freudiana que vem ao encontro da situação representada pelo personagem Pierre Avince,
A experiência traumática é, para Freud, aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. Os exemplos de eventos traumáticos são batalhas e acidentes: o testemunho seria a narração não tanto desses fatos violentos, mas da resistência à compreensão dos mesmos.29
A desterritorialização, ocasionada pela independência colonial, provocou a revisão do entendimento de nação e de identidade cultural nos ex - colonizados africanos, mas também a provocou nos portugueses: a partir da vivência dos retornados que, de maneira direta ou indiretamente, vivenciaram o processo da guerra colonial, seja partindo da guerra, seja sofrendo as suas conseqüências, seja opondo-se ideologicamente a uma condição centralizadora. De acordo com Said, "a cultura está na frente da política, da história militar e da economia",30 ou seja, o processo cultural posto em marcha com o colonialismo e, sobretudo, na condição pós-colonial, acaba ultrapassando a dicotomia oprimido / opressor, pois ocorre uma descentralização dos sujeitos, um hibridismo nas relações culturais; isso sem contar a própria consciência crítica dos portugueses contrários ao regime fascista e cientes dos absurdos cometidos durante o processo colonizador e as guerras de libertação dos países africanos.
A obra Lugar de Massacre resgata, assim, a problemática vivenciada não apenas pelas nações africanas vitimadas pela exploração colonial, mas também, por aquela parcela da população portuguesa que sofreu com os desmandos autoritários provenientes de uma minoria que possuía o poder. Esses soldados portugueses que lutaram, muitas vezes, por uma causa que nem mesmo defendiam, foram desautorizados em seus direitos mínimos, como o da livre escolha ideológica, afora, questões ligadas à violência física, social e psicológica. Assim como Pierre Avince, centenas de sobreviventes da guerra carregaram esse trauma por toda suas vidas.
Portanto, cabe também à escrita literária, a função de resgatar o passado de todas essas pessoas que, de alguma forma, sofreram com a repressão e com a falta de liberdade. A resistência colonial expressa pela ficção portuguesa contemporânea por escritores que ficcionalizaram as vivências em África, afirma a importância do respeito à diferença e focaliza a história por uma ótica crítica e de denúncia.
A resistência em não aceitar a dominação e a violência persiste na insistência de alguns em não permitirem que a memória se apague ou que a história se faça em branqueamento, escamoteando as vozes daqueles portugueses e africanos que resistiram ao poder ditatorial e colonizador, Tal visão será igualmente abordada na obra que será analisada subseqüentemente, Terra Sonâmbula.

III. Terra Sonâmbula: o resgate do passado africano

É possível definir a literatura produzida em Moçambique, Guiné, ou qualquer outro país ou povo que possua sua herança histórica ligada à colonização, como uma literatura pós - colonial, se este termo for entendido como expressão de uma produção teórica e intelectual que reflete e discute criticamente essa herança e as relações colono - colonizado. Na teoria pós-colonial surge um conjunto de questões teóricas, como a tentativa de compreender os problemas postos pela colonização européia e suas conseqüências, as experiências pós - coloniais, da idéia de nação independente à idéia da própria cultura, misturando-se com as práticas discursivas do Ocidente. A partir da década de 70, uma quantia cada vez maior de obras debate questões sobre a relação entre hegemonia dos discursos ocidentais e as possibilidades de resistência e sobre a formação dos sujeitos coloniais e pós - coloniais.
Terra Sonâmbula, o primeiro romance do autor moçambicano Mia Couto narra, por meio de três personagens principais, a história de Moçambique pós - colonial, enquanto as guerrilhas internas ainda destruíam o pouco que restou após a guerra de libertação. O romance é composto de duas narrativas que, inicialmente, possuem tempos distintos lineares. Existe um ponto de partida que desencadeia os fatos que compõe o romance, que é o machimbombo queimado, um ônibus queimado na beira da estrada que é o ponto de partida das duas narrativas paralelas que seguem. Os protagonistas, fugindo de um campo de concentração, adentram ao ônibus como intuito de conseguir um abrigo para se refugiarem.
Na primeira narrativa, as cenas são mais lentas, pois a Terra está "sonâmbula", a esperar um novo tempo no qual renasceria. No primeiro capítulo intitulado A estrada morta, é apresentado um cenário de guerra, com descrições desoladoras de uma estrada que não possui mais vida, apenas cinzas, poeira, carros incendiados e mortes. Os personagens apresentados pelo narrador são um velho chamado Tuahir e um menino chamado Muidinga, que são sobreviventes da guerra colonial em Moçambique. Ambos fogem na ilusão de encontrar um refúgio tranqüilo, Tuahir recolhera Muidinga quando esse ainda era pequeno, e todos o haviam abandonado, o velho ensinou-o a andar, a falar, a pensar e a sobreviver.
Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.31
A guerra "mata" a Terra e faz com que os habitantes tornem-se estrangeiros em seu próprio território. Mas a Terra, na verdade, não está morta, é como se estivesse em transe, o sonambulismo que faz com que a Terra se movimente lentamente. O tempo nessa narrativa também movimenta-se lentamente, quase parado. Tuahir e Muidinga vivem em um eterno presente, em que não há perspectiva de futuro. Muidinga, o miúdo, e Tuahir, o velho, seguem estrada fora, em busca de um outro continente dentro da África.
Na narrativa desses protagonistas, ambos representam, numa simbologia, a confluência dos velhos e dos novos tempos. Estão dispostos a vencer a morte e transformar aquele cemitério em um lugar habitável, convivendo com os espíritos dos mortos que devem ser enterrados, conforme a tradição, em respeito a todos que morreram injustamente em decorrência de uma causa sem justificativas e, para que os sobreviventes prossigam, preservando a memória dos que se foram, resgatando a identidade e o passado africano. É um resgate da história dentro da história, uma vez que Tuahir e Muidinga parecem lutar contra a indignação por tudo aquilo que vivem e por tudo aquilo que vêem, num desespero de solidão na imensa paisagem.
A história do menino e do ancião não deixa de se configurar em um testemunho doloroso sobre a guerra, de memórias perdidas por Muidinga, mas de muitos sonhos para conquistar, com um passado que não poderá ser esquecido.
Concordando-se com a noção de que as culturas nacionais constroem identidades ao produzirem símbolos e sentidos com os quais nos identificamos e que estão contidos nas memórias contadas e nas imagens criadas sobre uma nação, percebe-se a relevância do interesse de Muidinga em recuperar seu passado, mas com a curiosidade e os sonhos habituais de uma criança. Sempre insistiu para que Tuahir contasse sobre suas origens, sua família, enfim, sua vida, até que um dia, o velho decidiu contar para o menino a maneira como o havia encontrado.
E conta: ele estava no campo de deslocados, vindo de sua aldeia distante. Uma noite lhe pediram para enterrar seis crianças recém - falecidas. (...) Ninguém sabia quem eram, de onde tinham vindo, a que famílias pertenciam. Estavam despidas, suas roupas tinham sido roubadas mal as crianças perderam força para se defenderem. (...) Não havia dúvida, aqueles dedos se agarravam`a vida, lutando contra o abismo. Aquela criança ainda respirava. Era a mais clara e a mais raquítica de todas.

- Parem, aquele miúdo ainda está vivo! (TS, p. 65)
E o miúdo a que Tuahir referia-se era Muidinga, que desde a mais tenra infância já sabia como funcionava a difícil luta pela sobrevivência. Desde então, ambos viviam juntos, a fugir da guerra, a procurar uma África de paz, onde pudessem preservar seus hábitos e tradições. De acordo com as colocações de Seligmann, a questão da memória e do esquecimento após a sucessão de episódios traumáticos pode ser explicada da seguinte forma,
Os sobreviventes e às gerações posteriores à guerra defrontam-se a cada dia com a tarefa de rememorar a tragédia e enlutar os mortos. Tarefa árdua e ambígua, pois envolve tanto um confronto constante com a catástrofe, com a ferida aberta pelo trauma - e, portanto, envolve a resistência e a superação da negação -, como também visa a um consolo nunca totalmente alcançável.32
Em sua trajetória, os protagonistas encontram o corpo de um homem e, junto, uma mala com escritos que contam a vida de Kindzu, o narrador da sua própria história. A partir dessa descoberta, o velho e o menino perambulam por caminhos que mostram uma África que evidencia o que sobreviveu de suas raízes, dos seus rituais e das suas crenças. A narrativa composta pelos Cadernos de Kindzu possui um tempo que se movimenta mais rapidamente, pois os relatos de Kindzu aconteceram antes do tempo de Muidinga e Tuahir, que caminham para o futuro, o tempo da memória, permite que os acontecimentos articulem-se entre si, originando uma cadeia transmissora dos acontecimentos de geração para geração.
A trajetória de Muidinga e Tuahir é intercalada pela história de Kindzu que o menino lê em voz alta para o velho, para que ambos possam esquecer da fome e do medo, as únicas certezas que os acompanhavam. Esses escritos trazem histórias de uma Terra adormecida, na qual o sono, o sonho, os pesadelos e as visões misturam-se na história do narrador, que leva o nome de uma palmeira de onde saía o vinho preferido do pai, o velho Taímo, que o bebia até ficar inconsciente e ter sonhos reveladores.
Kindzu conta que a guerra havia chegado aos poucos: primeiro chegaram as notícias do que acontecia longe, depois os tiros foram avizinhando-se até a morte tornar-se cotidiana. O irmão de Kindzu, que nascera pouco depois da independência de Moçambique, chamou-se Junho, numa relação ao dia 25 desse mês, o mês da independência de Moçambique. Aos poucos, Kindzu via sua família ser desfeita, estavam vivendo na miséria, ficavam a olhar o antigamente, seus corpos haviam emagrecido. Certa noite, Taímo sonhou que um membro de sua família morreria em decorrência da guerra pós-colonial, e esse era Junho; para que tal morte não ocorresse, Taímo esconde o filho em um galinheiro. O menino, símbolo da independência, adaptou-se aquela vida de galinha, até cocoricava com perfeição, coberto por um saco de penas. Essa imagem alegórica remete ao processo de "independência" de Moçambique: certa manhã, Junhito havia fugido, assim como a autonomia moçambicana que, como o menino, não foi respeitada, foi posta de lado, transformada em algo que não condiz com deu significado. A animalização do menino e o seu desaparecimento apontam, ironicamente, para a derrota dos nacionalistas traídos.
Segundo Pinheiro, "a tortura, o racismo, o aparelho repressor, não são transformados pelas transições, mesmo depois de constituições democráticas".33 Tal fato ocorreu em Moçambique, onde a independência não foi respeitada e considerada, como é possível evidenciar no romance Terra Sonâmbula.
Na vila em que Kindzu vivia, restou apenas um único comerciante: Surendra Valá, um indiano que fora trabalhar em Moçambique e muito amigo de Kindzu. Ambos ficavam horas conversando no estabelecimento de Surendra, o qual projeta o discurso crítico do romance sobre a desordem e o autoritarismo. O indiano era vítima de preconceitos raciais, perseguido pelos administradores locais que o expulsam e tomam suas propriedades. Em oposição às práticas de segregação e violência impostas pela guerra, ocorre uma exaltação do conceito de pátria, por parte do personagem Surendrá Valá, em que é criada uma partilha de sentimentos comuns e de um território que transcende as fronteiras nacionais e as diferenças, confrontando, assim, os valores que a guerra carrega. Kindzu se expressa sobre o amigo indiano:
E ele me passava um pensamento: nós, os da costa, éramos habitantes não de um continente mas de um oceano. Eu e Surendra partilhávamos a mesma pátria: o Índico. E era como se naquele imenso mar se desenrolassem os fios da história, novelos antigos onde nossos sangues haviam se misturado. Eis a razão por que demorávamos na adoração do mar: estavam ali nossos comuns antepassados, flutuando sem fronteiras. Essa era a raiz daquela paixão de me encaseirar no estabelecimento de Surendra Valá. ( TS, p. 27)
Essa simbologia do mar estabelece, em Terra Sonâmbula, um contraponto com a terra assolada, assinalando a superação dos conflitos étnicos, postulada pelo indiano pacifista, embora a paz seja uma conquista difícil.
O preconceito de que Surendra é vítima pode parecer inexplicável em um meio que, historicamente, a presença indiana foi sempre expressiva devido à participação comercial e o os laços históricos envolvendo Índia e Moçambique. Todavia, comportamentos segregacionistas existiram em Moçambique, seguindo padrões racistas impostos pela colonização portuguesa. Segundo Bonnici,34 de um modo geral,
Iniciou-se o século XX com um triste panorama composto por dezenas de povos e nações, submetidos ao colonialismo europeu, (...) discriminados em seus direitos fundamentais, pela metade da população mundial vivendo num contexto patriarcal, pelo poder político e econômico nas mãos da raça branca, cristã e rica em países industrializados.
Ao deparar-se, no estabelecimento de Surendra, com um naparama que havia ajudado o comerciante indiano a livrar-se de um ladrão, Kindzu perguntou ao amigo quem era aquele homem que trajava mínimas vestes, mas exibia colares, penas e enfeites. Surendra falou que os naparamas eram guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que lutavam contra aqueles que faziam a guerra, lutavam com lanças e zagaias. Kindzu, então, identificou-se com os guerreiros naparamas, integrados na tradição guerreira que possibilita o reencontro com os antepassados e com seus mitos.
Pelos ensinamentos que recebera, Kindzu considerava Surendra um sábio, pois representava a consciência crítica do excluído e o menino sempre ouvia atentamente as lições do mestre,
Lembrei as palavras de Surendra: tinha que haver guerra, tinha que haver morte. E tudo para quê? Para autorizar o roubo. Porque hoje nenhuma riqueza podia nascer do trabalho. Só o saque dava acesso às propriedades. Era preciso haver morte para que as leis fossem esquecidas. Agora que a desordem era total, tudo estava autorizado. Os culpados seriam sempre os outros. (TS, p. 126)
Posto que Kindzu estava tomado pela vontade de sair mundo afora atrás dos naparamas, já que a guerra havia destruído sua vila, e ele estava tomado pelo senso de justiça, o jovem fora pedir conselhos para o pastor Afonso. Este desempenhava na vila em que o menino morava o papel de professor, proferia sermões que possuíam idéias contrárias às seguidas pelo regime colonial, e Kindzu gostava muito de conversar com o pastor. Todavia, ao chegar lá, Kindzu deparou-se com uma cena chocante, a escola havia sido queimada, restavam apenas ruínas de cinza. O pastor havia sido assassinado e pendurado em uma árvore, além de terem cortado suas mãos e pendurado em galhos, para que nunca mais teimasse em proferir suas lições que tanto perturbavam os detentores do poder. Tal circunstância é possível de ser associada a fatos reais, como verifica-se na seguinte citação,
Bastam estas amostras reduzidas para ver como a Igreja nas colônias ficou subordinada - logo, comprometida - ao Estado. (...) O fato de a Igreja, nas colônias portuguesas, estar dependente, em boa parte, financeiramente, dos donativos do Estado leva este a exigências, de subordinação e de silêncio incompatíveis com a missão libertadora da Igreja.35
Nesse caso, a força política e econômica, o controle ideológico e social deveriam estar centrados nas mãos, unicamente, do Estado. Não era relevante que qualquer discurso, no caso o do Pastor Afonso, viesse a discordar dos ideais perpetuados por aqueles que apoiavam a guerra colonial. Para terminar com o foco de opiniões contrárias, o Estado, no caso explicitado anteriormente, utiliza-se de todo o seu autoritarismo, e encontra uma maneira de silenciar o discurso do pastor, com a sua morte. Mediante o desespero, Kindzu resolve sair de sua vila destruída e ir atrás dos naparamas, para juntar-se a eles e tentar por um fim à guerra que destruiu tudo aquilo de maior valor que ele possuía.
O percurso de Kindzu foi longo até chegar em Matimati, a terra da água. A cena que presenciou ao chegar caracteriza a fragilidade do ser humano perante situações que fogem ao controle, decorrentes da ganância e das imposições do Estado. Milhares de pessoas se concentravam na praia, vindas do interior já destruído pela guerra. O motivo da aglomeração era o naufrágio de uma embarcação lotada de mantimentos que chegariam em Matimati, e os moradores se lançavam ao mar e tentavam pegar qualquer alimento que fosse para tentar amenizar a fome. Todos sabiam quem eram os responsáveis, os governantes, que queriam as cargas de alimento para si, com o interesse de que a população morresse de fome. Esse episódio do navio naufragado, assaltado pela população faminta que é contida em nome da ordem pública, é um exemplo do desmando oficial perante a carência da população, impedida de se beneficiar do naufrágio, "Os do governo deram ordens rigorosas. A recolha dos bens do navio devia ser organizada. Explicavam eles que apenas se pretendia que os destroços chegassem ao seu destino de forma ordenada e obedecendo às hierarquias". (LS, p. 73). Dentro de um desses navios abandonados, Kindzu encontra uma mulher, seu nome era Farida, estava ali escondida da guerra, havia sido separada de seu filho Gaspar, que gostaria de um dia encontrá-lo. Kindzu prometera que traria seu filho de volta, se apaixonara por Farida, ela tornou-se um dos motivos de sua vida.
Ao retornar à terra firme, Kindzu conversou com Assane, comerciante que estava tentando abrir uma pequena loja em Matimati em parceria com um comerciante indiano; tal a surpresa de Kindzu ao saber que o comerciante era Surendra Valá, que também saíra da vila em que moravam, fugindo da perseguição dos administradores. Kindzu e Assane conversaram a respeito da guerra, a qual, para o povo africano, parecia não ter mais fim, nem justificativa. Assim falaram,
Comentei sobre a eternidade que demorava a guerra. Assane discordou:
- Nem isto guerra nenhuma não é isto é alguma coisa que ainda não tem nome. Se explicou: antes fosse uma guerra a sério. Se assim fosse teria feito crescer o exército. Mas uma guerra - fantasma faz crescer um exército fantasma, salteado, desnorteado, temido por todos e mandado por ninguém. E nós próprios, indiscriminadas vítimas, nos íamos convertendo em fantasmas. - No fundo da latrina não pode haver guerra limpa. (LS, p. 134)
Teoricamente, Moçambique era uma nação independente, contudo, os acontecimentos que sucederam à independência mostraram que as atitudes contrariam a teoria, o povo africano teve, por muito tempo, e, ainda hoje, que lutar por sua liberdade e por seus direitos. A guerra atesta contra o uso da inteligência, justifica-se pelo uso da força, da ignorância, para atingir as metas daqueles que desejam o poder às custas do sofrimento e da exploração de outros povos.
De acordo com Pinheiro,
transição, passagem, mudança de um lugar ou estado ou ato ou conjunto de circunstâncias para outro. Quem já viveu sob uma ditadura ou regime autoritário não tem dúvidas, quando a opressão termina, de que mudanças efetivamente ocorreram. (...) Impossível negar, no entanto, que a reconquista da democracia representativa constitui uma barreira importante ao poder do Estado, abrindo as possibilidades para que as lutas e as resistências populares possam se materializar, aumentando suas condições de autodefesa.36
Quando Kindzu sai de Matimati, em busca dos naparamas e do filho de Farida, Gaspar, no caminho de seus objetivos, Kindzu depara-se com uma África destruída, mas repleta de pessoas e suas histórias, suas maneiras de não permitir que as tradições se percam. Em um campo de concentração, Kindzu descobre Euzinha, tia de Farida. A imagem de um campo de deslocados entristece Kindzu, segundo suas palavras, eram milhares de camponeses que se concentravam, famintos, esperavam a morte, na maior parte dos casos.
De fato, era coisa de pasmar a tristeza. O centro se espalhava como ruínas da própria terra, castanhas da dor do chão. Aquela gente dormia ao relento, sem manta, sem côdea, sem água. Se cobriam com cascas de árvores, vegetantes cheios de poeira. No meio da multidão estava Euzinha, a idosa tia de Farida. (TS, p. 220)
Os campos de concentração caracterizam uma das maiores formas de indignidade com o ser humano, constitui-se num aglomerado de pessoas que sofrem as mais variadas formas de violência, são pessoas separadas de suas famílias, que perdem seus direitos mínimos em nome da ganância dos detentores do poder. Tal circunstância é possível de ser evidenciada na sua forma mais cruel, por meio de um depoimento de um ex-cabo que serviu ao exército português, e fala sobre as atrocidades cometidas:
No interior de cada zona de controle existem campos de concentração. São campos de concentração no sentido tradicional da palavra, cercados de arame farpado. As populações civis são submetidas a trabalhos forçados. Toda pessoa que chega à zona de controle é automaticamente encaminhada para os campos de concentração.37
O autoritarismo presente nas citações acima evidencia o caráter degradante da guerra, esse legado deixado por esta forma de imposição do Estado perante a sociedade civil, evidenciada na obra Terra Sonâmbula. A repressão se reveste de conteúdos hieráquicos autoritários indispensáveis à reprodução das relações de poder, sempre mostrando quem exerce a supremacia, quem são os detentores do poder, de forma violenta e submissa. Segundo Pinheiro, "A ameaça física que pesa sobre cada um é menos impessoal: paradoxalmente à modernização do Estado e de seu aparelho repressivo, a organização monopolista da coerção física age sobre a maioria da população como uma ameaça direta.38
Com a morte de tia Euzinha, Kindzu retorna a Matimati. Lá chegando recebe a notícia de que Farida está morta; logo, nada mais o prendia aquela terra, decidindo, então, tomar outros rumos: entra num machimbombo e segue pela estrada; só que no caminho, os tiros terminam em sangue, Kindzu sai do machimbombo portando seus cadernos, que caem, assim como ele e, ao longe, vê um menino correndo e levando seus cadernos, ele ainda grita: - Gaspar! E, o menino olha, ao mesmo tempo em que cai no chão. Segundo suas palavras, "de sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas da terra". (TS, p. 245)
A mobilidade do espaço remete à utopia da transformação do mundo, enquanto a vida corre perigo, faz-se da leitura dos cadernos uma forma de resistência à morte. Os cadernos de Kindzu contam as histórias de um povo que tenta sobreviver à morte e ao caos, de modo que os dois sobreviventes se identificam com o guerrilheiro desconhecido. A abertura da narrativa de Kindzu prefigura "a mansa ordem, conforme esperas e sofrências", resistindo ao caos através de uma escritura.
Da leitura das estórias lidas pelo menino, desponta a guerra pela perspectiva de um personagem que gozava de alguns privilégios, quando sua vida se vê destroçada. A guerra é vista pelo pai de Kindzu como "confusão de fora, trazida por aqueles que tinham perdido seus privilégios", compondo um inferno que bruscamente se instaura, com um inimigo tão definido como o colonialismo português. Na leitura dos cadernos a sensação que se vive é a de instabilidade permanente, experimentada por Kindzu e pela população em geral, assolada pela guerra, pela fome, pelas epidemias, pela corrupção de uma administração interna que detém privilégios e assalta os minguados recursos destinados a amenizar o martírio dos flagelados.
Durante o caminho de Tuahir e Muidinga, diversos personagens representam o resgate da cultura africana: um velho solitário chamado Siqueleto, que vive em um lugar onde já todos se foram e que pede para o menino gravar o seu nome no tronco de uma árvore para que ela se fecundasse dele; um fazedor de rios que escavava o chão na certeza de que encontraria água. O homem morre num furioso regato formado pelas águas de uma tempestade. E, ainda, mulheres que, em pleno ritual para afastar uma maldição, violentam o menino como forma de castigo pela sua intromissão no ritual.
Nesse espaço marcado por diferenças culturais, lingüísticas e sociais, despontam os personagens de Terra Sonâmbula que se enunciam sob diferentes perspectivas, trazendo à tona os mitos e os sonhos dos mortos ou sobreviventes de uma guerra que, parecia interminável. Nas sociedades africanas, os velhos exercem um grande papel, pois são eles que detêm a sabedoria, contam a história de seu povo, transmitindo seus ensinamentos aos mais jovens. O resgate do passado africano permite, segundo Benjamin, que "a humanidade redimida aproprie-se do seu passado Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos."39

IV. Os textos em diálogo: as convergências acerca do autoritarismo em Lugar de Massacre e Terra Sonâmbula.

As obras em análise, Lugar de Massacre, de José Martins Garcia, e Terra Sonâmbula, de Mia Couto, na presente pesquisa possuem uma temática em comum: abordam literariamente a problemática do autoritarismo dentro da realidade pós-colonial dos países africanos destacados.
Em Terra Sonâmbula é representada a situação pós-independência em Moçambique, a procura de uma identidade quando um pacto colonial é desfeito e o espaço entre a cultura que se impôs e a nativa sobrevivente torna-se uma forma de resgatar o passado marcado pela guerra e a cultura local. Mia Couto recria, com três personagens, os espaço geográfico e histórico de seu país, Moçambique, onde o mar, as cores, as tradições fazem parte de um ritual só e, ao mesmo tempo, misturam-se com os horrores da guerra.
É comum se falar em resistência dos povos ex-colonizados, que resulta na retomada das suas raízes naquilo que foi sufocado, embora, no entanto, não se possa apagar algumas assimilações oriundas da convivência com a cultura branca. Tal resistência inclui os portugueses-africanos, como é o caso de Mia Couto que, na obra em foco, não deixa de mostrar os abusos de poder e as atrocidades cometidas na guerra posterior à libertação nacional de Moçambique. É o que se lê na seguinte passagem, em que se percebe a permanência de um discurso autoritário que continua ecoando os desmandos da dominação colonial:
-Às vezes quase desisto de vocês, massas populares. Penso: não vale a pena, é como pedir a um cajueiro para não entornar seus ramos. Mas nós cumprimos destino de tapete: a História há de limpar os pés nas nossas costas"40
No trecho, "a História há de limpar os pés nas nossas costas", é possível verificar quanto o conceito de História está ligado à história dos dominadores. De acordo com Benjamin, essa consideração deve ser desfeita, pois cada momento da história forma uma unidade em si, dotada do mesmo valor que as outras, e que só pode ser compreendida e descrita de maneira adequada se o historiador deixar de lado qualquer opinião preconcebida sobre o curso global da história, para mergulhar sem preconceitos no estudo dos fatos e tentar reviver cada época segundo seus próprios critérios.41
Para Benjamin, a tarefa do historiador será a de saber ler e escrever uma outra história, uma espécie de anti-história, uma história a "contrapelo", como diz, ou ainda a história da barbárie, sobre a qual se impõe a cultura triunfante, pois os dominantes do momento são herdeiros daqueles que uma vez venceram. Portanto, a identificação afetiva com o vencedor beneficia sempre e respectivamente os dominantes do momento.
Na obra Terra Sonâmbula aborda-se a questão da resistência do povo africano, resgata-se a memória daqueles que foram explorados, memória que não consta nos livros de história, mas que possibilita a construção de uma consciência de que se a situação do povo africano, hoje, é de subdesenvolvimento, deve-se a anos de dominação e exploração colonial que não devem ser relegados ou esquecidos.
Em Lugar de Massacre, também evidencia-se o sofrimento dos africanos com a guerra, mas a crítica maior recai sobre, justamente, aqueles que lutaram para manter a dominação portuguesa em território africano, os soldados portugueses que, na maioria das vezes, defendiam uma causa que vai de encontro às suas ideologias. A descrença no regime fascista e o fato de jovens soldados perderem a juventude e a vida lutando pela causa colonialista constituem a crítica nessa obra. A carta escrita por Pierre Avince ao Diretor dos Serviços da Justiça mostra a indignação por toda a causa autoritária que era o colonialismo, uma causa amparada no interesse da exploração,
Ex.mo. Senhor
Tendo chegado ao meu conhecimento que a minha peregrinação por este martirizado território foi motivada por sórdidos interesses que nada têm a ver com a Pátria; tendo mais chegado ao meu conhecimento que alguém cobardemente nos confundiu, dignos e indignos, à sombra do uniforme do Exército Português; atendendo a que tal confusão mancha a minha dignidade de homem e de militar, solicito que V. Ex. se digne ordenar um inquérito referente às condições de da minha peregrinação neste território, para se apurar as razões históricas que podem legitimar o assassinato duma juventude.
Respeitosamente
Aguarda deferimento.42
Portanto, o enfoque crítico modifica-se nas obras, mas elas possuem, em comum, o propósito de retratar e denunciar o autoritarismo exercido durante a guerra colonial em Moçambique e Guiné, quer seja pela população africana, quer seja pela insatisfação dos soldados portugueses que foram obrigados a representar uma causa em que nem mesmo acreditavam.

Conclusão

Seguindo-se algumas concepções da Escola de Frankfurt, bem como as atuais perspectivas dos estudos pós-coloniais, procurou-se demonstrar a convergência de olhares de dois romances inscritos em diferentes realidades culturais sobre o recente passado de duas nações africanas. De um lado, uma criação literária açoriana, debruçada sobre os horrores e abusos da guerra colonial, evidenciando as arbitrariedades vivenciadas no embate entre guienenses e portugueses, enfocando as conseqüências traumáticas que vitimizaram todos aqueles que eram contrários ao regime salazarista. De outro, uma obra literária moçambicana enfocando essa mesma realidade de arbitrariedade e barbárie herdada na realidade pós-colonial de Moçambique.
Dessa conjunção de pontos de vistas, constrói-se uma similar crítica e denúncia sobre o drama da colonização, e os seus alicerces simbólicos: o desejo de possuir o que é do outro, as ameaças, a tentativa de resistência do dominado, a intransigência e, por fim, o poder de mover a guerra. À violência da colonização só se pode responder com a violência da descolonização e a guerra transforma-se na recorrente e triste resposta desse processo.
Distantes espacial e temporalmente, levando-se em conta os dezessete anos que separam a publicação dos romances Lugar de Massacre e Terra Sonâmbula, ambos alicerçam, no entanto, um diálogo que se compõe de diferentes vozes formando um sentido de complementaridade na dimensão crítica que constroem sobre o recente passado da realidade africana e portuguesa. Diálogo que, sobretudo, mantém-se atual na sua importância de não silenciar a memória de uma época que, de outro modo, pode ver transformado seu esquecimento em novos gritos de horror. De forma mais ampla, essas obras atestam o poder da literatura de, diante de inimigos como a injustiça, as desigualdades, os preconceitos, reescrever a vida. Tanto mais que esses inimigos, infelizmente, não têm cessado de vencer.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Desenvolvimento do Projeto Final de Graduação.
2 Acadêmica do Curso de Letras - Português / Inglês do Centro Universitário Franciscano.
3 Professora Doutora do Centro Universitário Franciscano.
4 Esse termo associa uma função social à literatura, em que as obras são vistas como espaço de conscientização, a partir da ênfase em aspectos realistas.
5 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1992.
6 REIS, Carlos. Introdução aos estudos literários. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 353.
7 Idem, ibidem.
8 SAID, E. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 34.
9 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1985. p. 224.
10 GAGNEBIN, Jeanne - Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.65.
11 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1985. p.224.
12 ADORNO, Theodor. Engajament. In: Notas de literatura. 1991. p. 53.
13 PAZ E TERRA - 43 Anos de Fascismo em Portugal. 1989. p.4.
14 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003. p. 208.
15 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003. p.216.
16 CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra G. Vasconcelos. São Paulo: Becca, 1999. p .125.
17 BENJAMIN, Walter. Teorias do Fascismo alemão. Sobre a coletânea Guerra e guerreiros, editada por Ernest Jünger. In: ____ Magia e técnica, arte e política. 1985. p. 64.
18 SELIGMANN, Márcio José. Históruia, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Unicamp. 2003. p. 53.
19 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. 2003. p. 218.
20 DOUGLASS, F. Narrative of the life of Frederick Douglass, an American slave, written by himself. Harmondsworth: Penguin, 1998. p. 78.
21 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: _____. Walter Benjamin: os cacos da história. 1982. p.67.
22 GARCIA, José Martins. Lugar de Massacre. Portugal: Printer Portuguesa. 1975. p. 9. Todas as demais citações foram retiradas dessa edição, passando-se a sinalizar somente os números de páginas, sucedidos de abreviatura LM.
23 WALTER, Benjamin. Sobre o conceito da história. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. 1985. p.224-225.
24 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003.p. 210.
25 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. São Paulo: USP. 1991, p.50.
26 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.) Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003. p. 212.
27 CARVALHO, Joaquim Barradas de. 43 anos de fascismo em Portugal. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1969. p. 79.
28 SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. Resistência e diferença cultural: a ficção portuguesa contemporânea, como exemplo. In: Literatura portuguesa e Pós-colonialismo: Produção, Recepção e Cultura. Santa Maria, 1991. p. 26.
29 SELIGMANN, Silva Márcio (Org). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes . São Paulo: Unicamp, 2003.p.48.
30 SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. p. 225.
31 COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1995. p. 9. Todas as demais citações foram retiradas dessa edição, passando-se a sinalizar somente o número de páginas, seguidos de abreviatura TS.
32 SELIGMANN, Márcio Silva (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Unicamp, 2003. p. 52.
33 PINHEIRO, Sérgio Paulo. Autoritarismo e transição. São Paulo: USP, 1991. p. 50.
34 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs). Teoria literária: abordagens históricas contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003. p. 208.
35 ARAGÃO, Augusto. 43 anos de fascismo em Portugal. São Paulo: Paz e Terra, 1969. p. 93.
36 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. São Paulo: USP, 1991. p. 46.
37 ARAGÃO, Augusto. et al. 43 anos de fascismo em Portugal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. p. 215.
38 PINHEIRO, Sérgio Paulo. Autoritarismo e transição. São Paul: USP, 1991. p. 53.
39 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.p. 223.
40 COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1955. p. 69.
41 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 62.
42 GARCIA, José Martins. Lugar de Massacre. Portugal: Printer Portuguesa. P. 159.

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